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Henri Matisse

 

POEMAS DE STÉPHANE MALLARMÉ



O VIVO, O VIRGINAL, O BELO DIA DE HOJE

O vivo, o virginal, o belo dia de hoje
Por nós há de romper com um golpe de asa louca
Este olvidado e duro lago sob o qual
Assombra o diáfano glaciar dos voos frustros?

De outrora um cisne vem lembrar-se de que é ele
Magnífico mas que sem alento se solta
Por não haver cantado a região onde vive
Quando o tédio do inverno estéril resplendeu.

Seu colo agitará essa branca agonia
Pelo espaço infligida ao pássaro que a nega,
Mas não o horror do sol que prende suas plumas.

Fantasma que o seu brilho a este lugar destina,
Se imobiliza ao frio sonho do desprezo
Que em meio ao seu exílio inútil veste o Cisne.



DOM DO POEMA

Entrego-te a criação de uma noite idumeia [1]!
Negra, de asa sangrenta e fraca, desplumada,
Pelo vidro, queimado entre perfumes e ouro,
Pelo caixilho frio, ai!, entretanto morno,
A aurora se lançou sobre a lâmpada angélica.
Palmas! E, quando revelou essa relíquia
Ao seu pai ensaiando um sorriso inimigo,
A solidão estremeceu azul e estéril.
Ó canção de ninar, com tua filha e a inocência
De teus pés frios, saúda um terrível nascer:
E, tua voz lembrando a viola e o clavecino,
Com o dedo enrugado apertarás teu seio,
Por que flua a Mulher em brancor sibilino
Ao lábio a que dá fome o ar do virgem azul?



[SONETO EM YX]

De unhas puras ao ar dedicando os seus ônix,
A Angústia, à meia-noite, alteia, lampadófara,
Vesperais sonhos requeimados pela Fênix,
Que ânfora cinerária alguma há de apanhar.

Sobre a credência, a sala nua: nenhum ptyx,
Extinto bibelô de inanição sonora
(Porquanto o Mestre foi colher prantos no Styx
Com esse único objeto onde o Nada se honora).

Mas, junto à cruz-moldura aberta ao norte, um ouro
Agoniza talvez segundo esse ornamento
De unicórnios a atear fogo contra uma ninfa,

Ela, defunta nua em pleno espelho, ainda
Que, no enquadrado esquecimento da moldura,
Se fixa de cintilações tão logo o séptuor. [2]



A TUMBA DE EDGAR ALLAN POE

Tal que em Si-Mesmo enfim a eternidade o muda,
O Poeta suscita erguendo um gládio nu
Seu século assustado em não ter percebido
Que triunfava a morte em tão estranha voz!

Num espasmo de hidra, eles, ouvindo já o anjo
Dar sentido mais puro às palavras da tribo,
Gritaram alto que o feitiço foi bebido
Na corrente de um negro e desonroso engano.

Se a nossa ideia pode algum baixo relevo
Do hostil solo e da nuvem, ó pesar!, esculpir
Com que a tumba de Poe ofuscante se adorne,

Calmo bloco aqui vindo de um desastre obscuro,
Que este granito imponha sempre o seu limite
Aos negros voos do Blasfemo no futuro.



O AZUL

Do sempiterno azul a serena ironia
Como as flores oprime indolentes e belas,
O poeta impotente a maldizer seu gênio
Através de um deserto estéril de tormentos.

De olhos fechados fujo, e o sinto escrutinar
Com a intensidade de um remorso destruidor,
Meu ser vazio. Aonde fugir? Que noite horrenda
Lançar, em trapos, sobre o seu desdém brutal?

Subi, névoas! Vertei vossas cinzas monótonas
Com farrapos de bruma estirando-se aos céus
E escurecei assim os pântanos do outono,
No alto estendendo um teto enorme e silencioso.

E tu, levanta-te dos poços leteanos
E, apanhando bambus e lama às suas margens,
Querido Tédio, obstrui, com a mão incansável,
Esses grandes e azuis rasgões que as aves fazem.

Ainda mais! Que sem trégua as tristes chaminés
Cuspam fumaça, e uma masmorra de fuligem
Extinga, sob o horror de suas negras presas,
O áureo sol que se vai morrendo no horizonte!

– Morto é o Céu! – Para ti, matéria, agora eu corro:
Dá o olvido do Ideal cruel e do Pecado
A este mártir que vem compartilhar o leito
Onde o alegre rebanho humano está deitado.

Pois aí quero – que enfim meu cérebro, esvaziado
Como o pote de azeite ao pé de uma parede,
Perdeu a arte de atrair a soluçante ideia –
Bocejar tristemente ante um final obscuro...

Em vão! O Azul triunfa! Eu já o escuto cantar
Nos sinos. Faz-se voz também minha alma, por
Amedrontar-nos mais com a vitória iníqua,
E um ângelus azul sai do vivo metal!

E rola, antigo, em meio à bruma, e cruza o teu
Nativo agonizar, como um gládio pontudo;
Aonde irei, na revolta inútil e perversa?
Sou assombrado. O Azul! O Azul! O Azul! O Azul!



ANGÚSTIA

Não venho aqui vencer, ó besta, nesta noite,
Teu corpo cheio dos pecados de uma raça,
Nem pôr no teu cabelo uma procela triste,
Sob o tédio fatal que os meus beijos infundem:

Peço-te um sono bruto e sem sonhos, entrando
Através dos dosséis alheios ao remorso –
Que tu gozas após tuas negras mentiras,
Tu que do Nada sabes mais que os próprios mortos.

Porquanto o Vício, a roer minha inata nobreza,
Marcou-me, como a ti, com a esterilidade;
Porém enquanto o teu pétreo seio resguarda

Um coração que crime algum pode ferir,
Fujo com o meu sudário, assombrado e vencido,
Com medo de morrer quando durmo sozinho.


Notas:

[1] A Wikipédia dá a seguinte informação sobre o nome Idumeia (derivação latina de Edom, reino localizado ao sul do Mar Morto): “Os edomitas foram um grupo tribal vizinho de Judá ao sul, de língua semítica, habitantes do Deserto de Negev e do vale de Arabá do qual é hoje o sul do Mar Morto e vizinho ao Jordão. A região tem muitos arenitos avermelhados, o que pode ter levado à origem do nome 'Edom'. A nação de Edom é conhecida por ter sobrevivido aos séculos IX-VIII a.C., e a Bíblia o data muitos séculos antes desses. Provas arqueológicas recentes podem indicar uma nação edomita tão antiga quanto ao XI a.C. A nação deixou de existir no decorrer das Guerras judaico-romanas”.

[2] Esta versão é apenas compreensiva e não acompanha, obviamente, a tradicional estrutura de rimas em -yx e -ore, dos dois quartetos, e -ixe e -or, dos tercetos, de sentido simbólico e importante na poesia de Mallarmé (“or” sugerindo, por exemplo, a palavra “or” [ouro] em francês). Algumas informações sobre vocabulário: 1) “lampadófara” (usado aqui, abusivamente, como feminino do termo “lampadófaro” ou “lampadéfaro”, aquele que levava o archote numa corrida de archotes na Grécia antiga); 3) “credência” (“crédences”, no original), designa a mesa ao pé do altar onde se põem os utensílios da missa, entre eles os vasos eucarísticos; 3) “Ptyx”: termo de significação controversa, alguns supõem que indica uma espécie de concha, mas o próprio Mallarmé admitiu, numa carta, que pode não ter significado preciso; aqui, no entanto, parece indicar um objeto sagrado, instrumento musical ou concha, capaz de produzir som; 4) “Styx”: o rio Estígio ou Letes, da mitologia antiga, cujas águas, se bebidas, provocacam esquecimento; 5) Cruz-moldura: uma liberdade minha para traduzir o termo “croisée”, que indica o caixilho da janela em formato de cruz; 6) “Séptuor” (septeto ou setimino), conforme o dicionário Aurélio, designa um “trecho para ser executado a sete vozes ou sete instrumentos” e um “conjunto vocal ou instrumental formado de sete executantes”; refere-se também, segundo alguns, à imagem das sete estrelas mais famosas da constelação da Ursa Maior, localizada ao norte, que formam, para algumas culturas, o conhecido desenho da “caçarola” ou “arado”.



(Traduções de Renato Suttana)


Direitos da tradução reservados ao tradutor. Não pode ser reproduzido sem autorização.

 


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