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Bichos imaginários

 

 

POESIA, CRÍTICA, PALAVRA (II)


(Renato Suttana)


II

Uma crítica que dissesse ao público não saber ou não ser capaz de explicar o que quer que seja seria uma novidade. Mas o que ela explica — todos sabemos — já está explicado de algum modo. E o espectro da sua tolerância nunca se alarga até esse ponto ou até o ponto de admitir a sua ignorância ou falência.

É por isso talvez que tantos escritores se convertem em críticos de sua próprias obras, na expectativa, supomos, de que, antecipando-se à crítica, possam alargar um pouco esse âmbito, de modo que ela venha a acolher o que escrevem. O outro extremo de tal situação é passarem a escrever de modo que seus livros já venham a público em condição de serem acolhidos pelo espectro; ou seja, escrevem de tal maneira que a crítica não possa ignorá-los, porque foram feitos (na medida certa) para agradar a ela.

Quando não é assim, se tornam também (eles, os autores) críticos literários de feição acadêmica, escrevendo livros que não só ilustram suas teorias, como também produzindo uma crítica que parece ajustar-se perfeitamente a esses livros — até o ponto em que se pode dizer (conforme fazem certos ingênuos) que nesses livros a literatura e a crítica estão perfeitamente amalgamadas (quando, na verdade, tudo o que fazem é vestir em trajes de fraca literatura uma crítica cuja inânia vai até o extremo de não perceber a má qualidade ou a fraqueza daquilo que produz).

Esses fenômenos podem ser compreendidos quando se estuda a história da crítica literária conforme se desenvolveu ao longo do século XX no chamado Ocidente. De modo geral, pode-se entendê-la (essa história) como um esforço coletivo e continuado não apenas para compreender as obras literárias — gesto que por si só já seria despiciendo, uma vez que é de se esperar que as obras se deem a entender por si próprias —, mas também para teorizar acerca da sua fatura ou do modo como foram escritas, passando-se então a interpretar escrita e leitura (ou interpretação) como sendo da mesma ordem, tal como se os escritores, em vez de serem autores, fossem os leitores ou críticos de suas criações.

Tal confusão dá o que pensar certamente. A crítica que supõe escarafunchar a intimidade da criação perdeu a noção dos seus limites e da sua história. Não reconhecendo mais o seu lugar e o seu papel como guardiã e custodiadora de livros, passou a assumir atitudes normativas e propedêuticas em relação ao objeto de seus estudos. Pensa-se assim alcançar o seu ideal de ensinar os escritores a escrever, o que lhe garantiu, à crítica, diversos estatutos ao longo dos séculos, não sendo o menos importante aquele de ser ela a única voz abalizada a falar de livros e literatura no universo das ciências e do conhecimento.

Outra confusão que se criou tem a ver com aquilo que se exprime hoje na superstição corrente (nos meios acadêmicos) de que os leitores são também autores ou coautores das obras literárias, e de que estas, devido ao preconceito correlato de serem elas capazes de produzir múltiplos significados (costuma-se dizer sentidos ou significações) na mente dos leitores, os autorizam assim a escolher, entre os significados que atribuem, aqueles que lhes parecem mais convenientes ou apropriados, tal como se faz nos mercados com os itens de consumo disponíveis nas gôndolas. E nisto se funda a ideia de que eles se tornam coautores — quando nada mais são que intérpretes da obras, indecisos entre opções discordantes ou díspares. (Em muitos casos se verifica aquela situação — assaz desagradável — da crítica que tenta soar também como “poética”, conforme se vê nos abundantes escritos que jorram todos os dias das revistas universitárias, com seus títulos extravagantes e longos.)


(Parte 3)


 

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