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Rapinário

 

 

POESIA, CRÍTICA, PALAVRA (III)


(Renato Suttana)


III

O modo como se avançou nessa direção é compreensível e até explicável. Primeiramente, à pergunta de Drummond sobre a instância “de onde vêm nossos poemas” se respondeu com um argumento redutor: se os poemas são basicamente artefatos feitos de palavras, nada mais natural que concluir que são também artefatos de linguagem, isto é, que são meros resultados de um certo modo de empregar as palavras ou a linguagem — tratadas aqui como substância ou matéria que se modela para produzir tais artefatos. O que parece óbvio à primeira vista, no entanto, contém um erro básico, derivado da própria redução, o qual é semelhante àquele de supor que para mover o dedo mínimo podemos dispor de mecanismos (ou podemos isolá-los) que se destaquem do todo do complexo cerebral dos indivíduos, incluídos neste o sistema nervoso, o sistema muscular e evidentemente o condicionamento psicomotor do organismo.

Assim, a poesia (e a literatura em geral) passou a ser vista como alguma coisa que se tornaria compreensível à medida que se estudavam seus mecanismos, fossem esses quais fossem. Entendendo-a como uma espécie de efeito ou de resultado de um certo modo de empregar as palavras, abriu-se um esperançoso caminho para teorias que, cedo ou tarde, acabariam por desvendar os seus segredos ou o seu mistério mais profundo — o que parece ter se imposto à mente dos crédulos também como uma promessa de que, uma vez desvendado o enigma, a porta de entrada estaria franqueada, de uma vez por todas, para que qualquer um se tornasse poeta. Não o digo com menosprezo daqueles que acreditaram em tal promessa, mas com a consciência de que isso nos ajuda a entender o processo (ou o modo como a crítica profissional procedeu para angariar e reforçar os seus estatutos).

Tudo se passou como se de repente começássemos a acreditar que alguém poderia aprender a mover o dedo mínimo antes de aprender a mover os outros dedos da mão ou a própria mão, ou que alguém poderia aprender a andar antes de ter conseguido se equilibrar sobre as duas pernas, e assim por diante. Mas o fato é que a descrição de um relógio feita a partir das suas partes e do seu mecanismo jamais alcança nos dar a ideia do que seja um relógio, a saber: que não se pode passar da substância ao conceito sem que este preexista a todo o processo da reflexão e, desse modo, oriente a caminhada (o esforço de passagem) rumo à sua compreensão. (Encontrar um relógio em meio ao mecanismo, sem saber o que é um relógio, seria não menos que impossível.)

Por outros termos, é o mesmo que dizer que, no conceito de relógio, tudo é relógio, embora, tomadas isoladamente, suas partes possam sugerir a existência de outras coisas ou possamos pensar que elas estejam ali por acaso ou que foram agrupadas ao acaso e tenham redundado ocasionalmente, ao serem reunidas, num objeto que nos parece útil para medir o tempo. Mas não é assim que acontece, e do mesmo modo não é o que se passa na literatura. Por menos boa vontade que os críticos tenham em reconhecer esse fato, não se pode deixar de afirmar que em poesia tudo aquilo com que identificamos o poema já é, de algum modo, poesia — sendo impossível isolar as suas partes e, tomando-as separadamente, acreditar que sejam de fato partes de alguma coisa e que, destrinçando-as, estudando-as e reunindo-as depois, chegaremos outra vez ao poético.

Ocorre porém que só o que pode nos levar à poesia é ela mesma. Toda vez que partimos em seu encalço, traçando para nós um roteiro, é a poesia que nos orienta, é ela que nos mostra a direção; e, quando chegamos a algum lugar, tudo o que fizemos foi caminhar em círculo, porque o ponto de partida, aqui, é também o de chegada, sendo ambos uma coisa só. Assim, ao postular a existência do poema como um artefato de linguagem e ao supor que a instância adequada para estudá-lo pertence ao âmbito dos estudos da linguagem (o que permitiu, por exemplo, a um pensador como Roman Jakobson afirmar num escrito famoso que a poética nada mais era que um ramo ou um setor da linguística), a crítica literária abriu caminho para muitas ousadias. Uma delas foi autorizar as gentes a crerem que, estudando a crítica literária, se poderia entender realmente a literatura ou ter dela uma experiência mais elevada (como a daquele sujeito que disse certa vez que já não tinha interesse em livros de poesia ou de ficção porque lhe bastavam os de crítica, dos quais ao longo da vida se embebera e se fartara à repleção). Outra ousadia foi a que apontei acima: acreditar que, estudando a crítica, os autores também se tornariam criadores razoáveis de literatura, sendo o seu corolário (algo abusivo) a crença, esposada por alguns, de que sem um bom conhecimento de crítica ninguém estaria habilitado a se tornar um bom escritor.

Tudo isso contribuiu para a proliferação desses pequenos escritores que, tendo frequentado universidades, se lançaram também à aventura da criação, chegando mesmo a angariar certo renome nos meios onde o que escreviam tomou vulto e recebeu acolhida (como é o caso do sr. X — escritor indubitavelmente menor, que os seus pares no entanto tratam como se fosse não menos que um novo Machado de Assis). E contribuiu para nos dar esse sentimento de regressão ou de que, atolada na menoridade, a literatura retrocedia sobre seus passos, tornando-se assunto para adolescentes atrevidos ou para eruditos irreverentes
quando não se tornou questão de cursos e diplomas (até o pondo de se poder supor que fosse necessário conceder aos poetas algum tipo de certificação oficial para atestar, por escrito, a sua condição de criadores de literatura.)

Tal é o estado de coisas, que ainda precisamos elucidar, mas é provável que, para compreendê-lo, tenhamos de sair da universidade. Talvez necessitemos abandonar a crítica acadêmica à sua sorte, como um tipo de velharia do século passado, para só assim caminharmos em outras direções, passando a entender a literatura como fenômeno do espírito ou como expressão da existência humana (o que quer que compreendamos por esses dois termos: espírito e existência). Para isso teremos de abandonar também o nosso arsenal de conceitos e, sobretudo, pôr de lado a mágica das novidades, cujo afloramento se dá na forma dos neologismos que aparecem e desaparecem cotidianamente nos lugares onde a crítica é praticada — além do hábito de achar que seja esta mesma a missão da crítica: inventar novas fórmulas e palavras ou cunhar expressões para nomear coisas que nunca se compreenderam bem.


(Parte 4)


 

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