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Nicolau Saião

 

ESBOÇO DE UMA SERPENTE

 

(Paul Valéry)

 

Entre a árvore, a brisa acalenta

a víbora que hei de vestir;

um sorriso, que o dente espeta

e de apetites vem luzir,

sobre o jardim se arrisca e vaga,

e o meu triângulo de esmeralda

atrai a língua do reptil...

Besta sou, porém besta arguta,

cujo veneno, embora vil,

deixa longe a sábia cicuta!

 

Suave é este tempo de prazer!

Tremei, mortais, ao meu valor

quando, sem me satisfazer,

bocejo e quebro o meu torpor!

A esplendidez do azul aguça

esta cobra que me rebuça

de uma animal simplicidade:

vinde a mim, ó raça aturdida!

Que estou prestes e decidida,

semelhante à necessidade!

 

Ó Sol, ó Sol!... Falta estupenda!

Tu que mascaras o morrer,

sob o azul e o ouro de uma tenda

onde as flores vão se acolher;

em meio a mil delícias baças,

tu, o mais feroz dos meus comparsas,

dos meus ardis o mais perfeito,

aos corações não deixas ver

que este universo é só um defeito

na puridade do Não-Ser!

 

Ó Sol, que soas as matinas

do ser, e em fogos o acompanhas,

que num fatal sono o arrepanhas

todo pintado de campinas,

fautor de fantasmas risíveis

que prendes às coisas visíveis

a presença obscura da alma,

sempre me agradou a mentira

que tu sobre o absoluto espalhas,

rei das sombras tornado pira!

 

A mim o teu calor brutal,

onde a minha preguiça gelada

vem devanear sobre algum mal

próprio à minha índole enlaçada...

Este amável lugar me seduz

onde cai a carne e produz!

Aqui meu furor amadura;

e eu o aconselho, e eu o refaço,

e me escuto, e em meio aos meus laços

minha meditação murmura...

 

Ó Vaidade! Causa primeira,

que domina os Céus e os conduz,

de uma voz que já foi a luz

abrindo o cosmo sem fronteira!

Lasso de Seu puro espetáculo,

o próprio Deus rompeu o obstáculo

de tão perfeita eternidade;

ele se fez O que dispersa

em conseqüências Seu começo,

em estrelas Sua Unidade.

 

O Céu, Seu erro! E o Tempo, a ruína!

E o abismo animal alargado!

Queda naquilo que origina,

fagulha em vez do puro nada!

Mas o primeiro som do Seu Verbo,

EU!... dos astros o mais soberbo

que disse o louco criador –

eu sou!... Eu serei... E ilumino

esse diminuir divino

dos fogos do grão Sedutor!

 

Radioso objeto de minha ira,

Tu, que amei de um amor flamante,

e que da geena decidiste

conceder o império a este amante,

nos meus escuros Te remira!

Que ao veres Teu reflexo triste,

troféu do meu espelho negro,

tenhas tão funda comoção,

que sobre a argila o Teu ofego

seja um suspiro de aflição!

 

Em vão moldaste nessa lama

a prole dos fáceis infantes

que dos Teus atos triunfantes

a eterna louvação proclama!

Tão logo secos – e perfeitos,

são da Serpente já desfeitos,

filhos que o Teu criar produz.

Olá, lhes diz, recém-chegados!

Homens que sois, e andais tão nus,

animais brancos e abençoados!

 

Odeio-vos, que do execrado

à semelhança fostes feitos,

tal como ao Nome que tem criado

esses prodígios imperfeitos!

Eu sou o agente da mudança,

retoco o peito que se afiança,

de um dedo exato e misterioso!

Transformaremos essas obras

e as evasivas, moles cobras

em répteis negros, furiosos!

 

Meu intelecto inumerável

toca no humano coração

o instrumento de minha raiva,

que foi feito por Tua mão!

E Tua Paternidade alada,

todo aquele que, na estrelada

câmara ela acolha que a afague,

sempre o excesso dos meus assaltos

lhe traga uns longes sobressaltos

que seus propósitos estrague!

 

Vou e venho, deslizo, enfronho,

desapareço em peito puro!

Houve jamais seio tão duro

onde não possa entrar um sonho?

Quem quer que sejas, não sou esta

complacência que te requesta

a alma, desde que ela se ame ?

Ao fundo sou de seu favor

este inimitável sabor

que de ti em ti se derrame!

 

Eva! que eu tenho surpreendido

em seus primeiros pensamentos,

o lábio aos hálitos rendido

que das rosas se evolam lentos.

Quão perfeita me apareceu,

de ouro coberto o flanco seu,

sem temor ao sol nem ao homem;

ofertada aos olhos da brisa,

a alma ainda estúpida, tal como

perplexa ante a carne, indecisa.

 

Oh, massa de beatitude,

és tão bela, prêmio veraz

para toda a solicitude

das almas boas e das más!

Para que aos lábios teus se prendam,

basta que a um sopro teu se rendam!

Tornam-se piores os mais puros,

logo se ferem os mais duros...

Também a mim teus dons encantam,

de quem vampiros se levantam!

 

Sim! De meu posto entre a folhagem –

réptil que de ave se fingia –,

enquanto a minha pabulagem

uma armadilha te tecia,

eu te bebi, surda beldade!

Prenhe de encanto e claridade,

eu dominava, sem tremer,

fixo o olho em tua lã dourada,

tua nuca obscura e carregada

dos segredos do teu mover!

 

Presente estive, qual odor

que a alguma idéia corresponda,

cujo fundo, insidioso negror

não se elucida nem se sonda!

Pois eu te inquietava, ó candura,

carne molemente segura,

sem ter de mim nenhum temor,

a tremer em teu esplendor!

Logo eu te tinha, eu te levava,

e tua nuança variava!

 

(A soberba simplicidade

demanda infinitos cuidares!

Sua transparência de olhares,

tolice, orgulho, felicidade

guardam bem a bela cidade!

Procuremos criar-lhe azares,

e traga o mais raro artifício

ao peito puro o seu motim.

Eis minha força, o meu ofício,

a mim os meios do meu fim!)

 

Ora, de uma baba ofuscante

fiemos os suaves assaltos

que façam com que Eva, hesitante,

se envolva em vagos sobressaltos.

Que sob a seda da surpresa

palpite a pele dessa presa,

acostumada ao azul puro!...

Mas de gaze nem uma trama,

nem fio invisível, seguro,

além da que meu estilo trama!

 

E ditos, língua, redourados,

dá-lhe os mais doces que conheças!

Alusões, fábulas, finezas,

e mil silêncios cinzelados,

emprega tudo o que a seduza:

nada que a não bajule e induza

a se perder nas minhas vias,

dócil aos declives que guiam

para o fundo das azuis bacias

os veios que nos céus se criam.

 

Oh, quanta prosa sem parelha,

quanto espírito não recoso

e lanço ao dédalo sedoso

dessa maravilhosa orelha!

Penso: lá nada é sem proveito,

tudo importa ao suspenso peito!

O triunfo é certo, se o propor,

da alma espreitando algum tesouro,

como uma abelha a alguma flor,

não deixa mais a orelha de ouro!

 

“Só o que o meu sopro lhe confere,

a ela, é a própria voz divina!

Uma ciência viva fere

o corpo do fruto maduro!

Não ouças o Ser velho e puro

que a breve mordida abomina!

Que, se a boca se põe a sonhar,

a sede que à seiva se atreva,

esta delícia por chegar,

é a eternidade fundente, Eva!”

 

Ela bebeu minha mensagem,

que tecia um estranho arranjo;

seu olho perdeu algum anjo

por penetrar minha ramagem.

O mais hábil dos animais

que se ri de seres tão dura,

ou pérfida e cheia de males,

é só uma voz entre a verdura!

– Mas Eva muito séria estava

e sob o galho ela a escutava!

 

“Alma, eu lhe disse, doce pouso

de tanto êxtase condenado,

não sentes este amor sinuoso

que foi por mim ao Pai roubado?

Tenho esta essência celestial

a fins mais doces do que o mel

reservado tão suavemente...

Apanha o fruto... Oh, que se estenda

a tua mão e, ardentemente,

te faça dele uma oferenda!”

 

Que silêncio – o bater de um cílio!

Que sopro no peito soçobra,

que a árvore mordeu de sua sombra!

O outro brilhava qual pistilo!

Silva, silva! – ele me cantava!

E eu sentia fremir as mil

dobras do meu dorso sutil,

saindo então do meu abrigo:

rolaram atrás do berilo

de minha crista, até o perigo!

 

Ó gênio! Ó comprida impaciência!

Eis chegado o instante em que um passo

em direção à nova Ciência

fluirá de um fino pé descalço.

Aspira o mármore, o ouro enjambra!

Tremem as bases de sombra e âmbar

na véspera do movimento!...

Ela vacila, a grande urna,

de onde emana o consentimento

dessa aparente taciturna!

 

Do vivo prazer que antegozes,

belo corpo, cede aos apelos!

Que a sede de metamorfoses

em torno da Árvore dos Zelos

engendre a cadeia de poses!

Vem, sem vires! Ensaia passos

vagos, como ao peso de rosas...

Não penses! Dança nos espaços...

Aqui há causas deliciosas

que bastam ao curso das coisas!...

 

Oh, quanto é infértil a fruição

que me ofereço, com demência:

de ver tão suave compleição,

fremir em desobediência!...

Breve, emanando seu sustento

de sabedoria e ilusões,

toda a Árvore do Conhecimento,

esguedelhada de visões,

no amplo corpo que investe rumo

ao sol, bebe do sonho o sumo.

 

Grande Árvore, Sombra das Alturas,

irresistível Árvore de árvores,

que os sucos amáveis procuras

na fragilidade dos mármores,

ó tu, que os labirintos cevas

por onde as constrangidas trevas

se percam no marinho lume

da sempiterna madrugada,

doce perda, brisa ou perfume,

ou pomba já predestinada,

 

Cantor, secreto bebedor

das mais profundas pedrarias,

berço do réptil sonhador

por quem já Eva tresvaria,

grande Ser, pleno de saber,

que sempre, como por mais ver,

ao alto apelo de teu cimo

cedes, e ao ouro puro os braços

estendes, teus esgalhos baços,

de outra parte, cavando o abismo,

 

Podes o infindo repelir,

feito só de teu crescimento,

e, da tumba ao ninho, sentir

que és inteiro Conhecimento!

Mas este velho amante do impasse,

de uns secos sóis no inútil ouro,

vem em tua copa enroscar-se –

seus olhos fremem teu tesouro!

Frutos de morte, de incerteza,

de desespero ali sopesa!

 

Bela serpe, suspensa aos céus,

sibilo, com delicadeza,

ofertando à glória de Deus

o triunfo da minha tristeza...

Basta-me, nos ares tranqüilos,

que a ânsia do amargo fruto os filhos

do barro ponha em desvario...

– A sede que te faz tamanha

até ao Ser exalta a estranha

Toda-Potência do Vazio!

 

 

(Tradução de Renato Suttana)

 

 

N.T.: Agradeço a Sephi Alter pelas valiosas sugestões a esta tradução.

 

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