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TRADUZIR
UM POEMA É ESCREVER UM POEMA NOVO?
(Ruy
Ventura)
Posiciono-me
perante a tradução de poesia na qualidade de leitor e nunca como
tradutor profissional que viaja permanentemente entre duas línguas.
Interessam-me sobretudo as emoções e as experiências que recebo
de uma construção poética. Há alguns anos que venho vivendo a
comoção de um viajante que vai chegando a uma infinidade de mundos
novos sempre que abre um bom livro de poemas. Hoje como ontem, vou
seguindo por um caminho de amor em direcção às palavras –
fazendo, quando é necessário, o transporte material para levar ao
outro lado da fronteira linguística um pouco de maravilha, de
pensamento, de angústia ou de reflexão.
Quando
observamos o mundo interior e exterior que rodeia o nosso corpo,
quando escrevemos o calor e o encanto, o horror e o desespero que
esse mundo cria em nós, quando tentamos transpor para outra língua
um poema que nos comoveu, nada mais fazemos do que uma leitura múltipla
e irrepetível. Decompomos e recompomos o universo peculiar que nos
rodeia, para criar neste mundo onde temos que habitar um pouco de
beleza, ainda que estranha, dionisíaca e nocturna, difícil de
compreender e de integrar nos alicerces da casa que habitamos.
Traduzir
um poema é escrever um poema novo? Não sei responder a esta
pergunta. Ninguém saberá talvez responder. É difícil raciocinar
quando o objecto sobre o qual nos debruçamos foge de nós como
areia entre as mãos.
Vladimir
Nabokov, escritor bilingue que, como Fernando Pessoa, conheceu na
vida o trabalho cimeiro da leitura – a tradução permanente –,
indica num texto seu que somente a tradução literal é genuína,
uma vez que apenas ela transmite rigorosamente o significado
contextual do original. Desta forma, o leitor que traduz um poema
apenas consegue fazê-lo quando procura uma fidelidade crescente que
deseja completa. Caminha ao encontro de outra entidade: uma entidade
dupla, corporal e verbal, que recebe no seu coração e tenta
transmitir ao mundo com a máxima integridade. O tradutor
despersonaliza-se. O tradutor sofre uma lenta mutação das suas células,
a metamorfose do seu corpo total – ao realizar uma viagem total
para que chegue sem mancha ao outro o objecto que guarda nas suas mãos.
Para procurar comover o leitor do texto traduzido, como supõe que o
poema original terá comovido os seus leitores ou os contemporâneos
de sua criação, ou como emocionou o leitor que traduz.
Será
isto possível? As dúvidas permanecem no pensamento. Tenho sempre
na memória a certeza de que todas as palavras têm cinco sentidos e
algumas contêm mesmo o infinito, como refere o Zohar. Quem poderá
garantir que uma tradução é fiel ao original? É tão difícil
quanto dizer com segurança que a leitura literária de um poema é
fiel ao pensamento de quem o escreveu. O verbo poético engana,
mente para criar uma verdade em cada leitor, uma verdade provisória
e mutável. Noutra língua, o poema original é apenas um simulacro.
O corpo pode ter a mesma estrutura, uma pele semelhante, mas os
olhos e o cabelo têm já uma cor e um odor diferentes, os órgãos
vitais trabalham de forma distinta, a melodia que produz
modificou-se de forma inexorável.
Tudo
se passa, suponho, como na literatura oral e tradicional, onde um
texto original vai criando múltiplas versões, árvores diferentes
que crescem da mesma raiz. Não creio que um poema bem traduzido
seja um poema novo, separado do original. Tenho a convicção de que
é um simulacro, uma representação desejada mas nunca concluída
do objecto original.
(Apresentado
no encontro de poesia de Yuste)
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