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SOBRE SEBASTIÃO DA GAMA
(Ruy Ventura)
Ruy Belo – um dos autores que melhor entendeu a
poesia de Sebastião da Gama, em textos tão significativos quanto o
prefácio de Pelo sonho é que vamos ou o ensaio publicado em
1969 no seu livro Na Senda da Poesia – não gostava que a
apreciação do autor de Serra-Mãe se ficasse pela atribuição
do título de “Poeta da Arrábida”.
Considerando-o, tal como muitos outros ensaístas, um “poeta
integral”, não podia vê-lo confinado a uma poesia localizada.
Afigurava-se-lhe “pelo menos desorientador chamar a Sebastião da
Gama o poeta da Arrábida e, não contente com isso, esfregar as mãos
de alegria, como quem já disse tudo”. Embora considerasse que “A
localização de um poeta no espaço é um elemento de interpretação da
sua poesia”, não deixava no entanto de verificar os perigos
desse veículo de entendimento, que bem se pode tornar num “obstáculo
para a sua compreensão.” Para o autor de Aquele Grande Rio
Eufrates, se “Ver um poema é como ver um rosto. [...] Podemos
saber que é belo, mas não sabemos porquê”, então “A
localização de um poeta na sua paisagem servirá para ver essa
paisagem. Não ao contrário.” Ruy Belo concordava decerto com um
dos pensamentos de Pascal, esse filósofo tão caro a Sebastião da
Gama: “Não é do espaço que eu devo esperar a minha dignidade, mas
do acerto do meu pensamento. [...] pelo espaço, o universo abarca-me
e submerge-me como um ponto. Pelo pensamento, abarco-o eu.”
Pela mesma razão, apesar de podermos referir com
justiça a ligação de Teixeira de Pascoaes à Serra do Marão, de
Francisco Bugalho ao Alto Alentejo ou de Fernando Pessoa a Lisboa,
nunca poderemos fazer depender disso a sua posição central na vasta
cidade da Poesia. A grandeza de uma obra literária não depende do
espaço nem sequer da matéria, mas da maneira como conseguiram
transfigurar, através da Arte com que trabalharam as palavras, o
universo que os rodeou durante as décadas em que existiram sobre a
terra. Porque, como registou o escritor de Amarante no seu onírico
São Paulo, “A beleza das coisas não é inerte; insinua-se,
em nós, como um segredo, e pretende assenhorear-se do lugar.
Conquista-o e transfigura tudo, em volta dela. Derrama-se como a luz
na sombra”, permitindo ao ser humano esse transporte que o torna
ser luminoso, o transporte que eleva o Homem de uma mera existência
natural, instintiva, animal, até à liberdade e imortalidade da
verdadeira vida.
E contudo, apesar de tudo isto, nenhum de nós poderá
negar a Sebastião da Gama o título de “Poeta
da Arrábida”, embora me pareça cada vez
mais justo pensarmos seriamente em invertermos as palavras,
modificando a toponímia até chegarmos ao ponto de chamarmos àquelas
montanhas debruçadas sobre o Sado e o Atlântico a “Arrábida dos
Poetas” –
juntando assim à memória, mais recente, de Sebastião a de outro
importantíssimo autor da poesia de todos os tempos, Frei Agostinho
da Cruz, permanente referência do escritor de Campo Aberto a
precisar de uma homenagem condigna.
Como muitos saberão (e nunca será fastidioso
repetir, tanto mais que terá sido esse o motivo principal que levou
a Câmara Municipal de Setúbal a colocar no aniversário natalício do
poeta de Azeitão o “Dia Municipal da Arrábida”, que hoje
comemoramos), foi Sebastião da Gama um dos primeiros cidadãos – se
não mesmo o primeiro – a alertar o país para a importância do
património natural contido na sua Serra-Mãe, não olhando a
meios para lutar em prol da sua defesa e preservação. A Luiz Forjaz
Trigueiros, director do extinto Diário Popular, escreveu uma
carta reveladora:
“[...] como Amigo da paisagem, depois como
Poeta (é a primeira vez que invoco a
missão, mas assim é necessário), [...] venho pedir hoje a sua ajuda
para um caso urgente. Trata-se, nada mais nada menos, de o facto de
estar sendo destruída a Mata do Solitário [...] sendo, até metade,
propriedade do senhor José Júlio da Costa, entende ele que tem por
isso o direito de convertê-la em lenha. Eu entendo que não. Eu e
toda a gente de aqui. Eu e o senhor. Eu e todos que se não contentam
com os prazeres do estômago. / Conto consigo para defender a causa
do Solitário, que é também de Herculano e de Frei Agostinho.”
Um bilhete dirigido ao engenheiro Miguel Neves é
ainda mais revelador da postura ética de Sebastião da Gama, na
defesa da prevalência do bem comum sobre a satisfação dos desejos
individuais ou dos instintos da ganância e do lucro:
“Socorro! Socorro! Socorro! O José Júlio da Costa
começou (e vai já adiantada) a destruição da metade da mata do
Solitário que lhe pertence. Peço-lhe que trate imediatamente. Se fôr
necessário, restaure-se a pena de morte. SOCORRO!”
(As palavras do poeta, escritas em 1947,
interpelam-nos. Apesar do seu grito – que serviu de alavanca a
Carlos Baeta Neves, professor no Instituto Português de Agronomia,
para a criação em 1948 da Liga para a Protecção da Natureza –
continuam, infelizmente, a ser necessárias um pouco por todo este “país
desgraçado” que se auto-devora e, especialmente, na sua Serra da
Arrábida, que não conseguiu ainda livrar-se desses outros Costas que
a mutilam todos os dias a tiros de dinamite. A vegetação tem
mecanismos naturais que permitem uma, ainda assim lenta,
regeneração. O calcário, infelizmente, nunca mais voltará ao
lugar...)
Sebastião, “poeta integral” e cristão
assumido que não dispensava uma ética de responsabilidade em todos
os momentos da sua vida, escreve – e com razão – num poema de
Itinerário Paralelo intitulado “Mordaça”:
“Puseram-lhe na boca uma mordaça...
Mas o Poeta era Poeta
e tinha que falar.
Fez um esforço enorme,
puxou a voz como quem golfa sangue,
e a mordaça soltou-se-lhe da boca.
Porém, não era já mordaça:
– Agora,
era um poema a queimar
os ouvidos das turbas inimigas
que, na praça,
o tinham querido calar.”
Não sendo abundantes, não são raros os textos em que
Sebastião da Gama deixa emergir da sua obra uma figura de cidadão
comprometido. Sem ter sido nunca um “poeta social” ou um “escritor
engagé” (no sentido mais restrito destas expressões),
considerava-se obrigado ao uso público da palavra, ao testemunho, na
medida em que Poeta e Cidadão são duas faces do mesmo ser bifronte,
inseparáveis num ser humano que aceitou a missão de construir pontes
entre todas as dimensões da Vida e até da Existência, entre todos os
seres que habitam o Universo, entre esses homens e mulheres e o
Mundo que os rodeia. “[...] [S]ó se é
Poeta na medida em que se é homem, que o mínimo acto
do homem-Poeta, o mais prosaico, o mais comezinho, o mais grosseiro,
o mais em desacordo com o seu ideal, é tanto a massa da sua poesia
como o seu voo mais arrebatado”, escreveu
ele na sua tese de licenciatura.
O poeta – quando o é de verdade – é sempre um
instrumento de religação, logo um ser ético. Sebastião – autor de um
dos mais lúcidos ensaios que conheço sobre a chamada “Poesia
Social”, um texto humilde que conseguiu suplantar os
constrangimentos de Academia, a que se submeteu, para se elevar
enquanto colóquio inteligente e criativo – sabia, contudo, que os
termos nem sempre se confundem, que o contrário nem sempre se
verifica:
“A indignação activa contra as injustiças da
sociedade, o carinho pelos oprimidos, qualquer homem de bem os pode
ter; mas isso não é suficiente para ser
Poeta; isso, que num homem qualquer é tudo, é no
Poeta só um pretexto. [...] Um legítimo Poeta que não tenha escrito
senão contra as injustiças sociais seria um Poeta na mesma se não
existissem essas injustiças, Então, seriam outros os temas; outros
os pretextos.”
As suas palavras referiam-se, sobretudo, aos poetas
portugueses de oitocentos – Herculano, Garrett, Junqueiro, Gomes
Leal, Cesário... –, autores daquilo a que chama, com justiça, “Poesia
Social”. Nas veias do seu pensamento corria no entanto o sangue
mais universal das ideias defendidas pelos directores da revista
presença, principalmente José Régio, defensores intransigentes
da liberdade inteira dos criadores contra a submissão da Arte a
ditames político-sociais, por mais justos que parecessem. As
considerações tecidas por Sebastião da Gama não perderam ainda
actualidade. Com ele, devemos continuar a defender – nesta época em
que um neo-naturalismo militante procura que todos escrevam e leiam
pela mesma cartilha – que “a nobreza da Poesia [...] está [...]
nisso de se procurar e se encontrar em todos os lugares em que se
está”. Como referiu num esboço de ensaio sobre António Sardinha,
incluído por Matilde Rosa Araújo em O Segredo é Amar, “não
há temas poéticos e temas que o não são; nem há temas sequer: há
sentimentos, há momentos da alma e momentos da paisagem, há
acontecimentos, há coisas – e há poetas em face de tudo isso”. O
autor de Serra-Mãe, é bom sublinhar, não rejeitava a “poesia
social”, como não recusava qualquer forma de expressão poética
que se instituísse enquanto Arte em Liberdade ao serviço da
comunicação entre os seres humanos. Aí reside também a sua postura
ética. Sabia distinguir num poema, como leitor clarividente, as suas
diferentes dimensões: de um lado o seu valor humano, que em geral
conduz a uma maior realização comunicativa; do outro, o seu valor
poético, artístico. Um poema escrito em linguagem obscura poderá
conduzir, na sua opinião, a uma maior dificuldade no entendimento
imediato, mas isso não significa para Sebastião da Gama que a Poesia
(ou seja, a Beleza) não permaneça lá, “inviolada, esperando a
vinda dos que a descubram”. Segundo escreveu, “O seu valor
humano será menor e terá, por conseqüência, uma realização limitada.
Mas isso não impede que o seu valor absoluto se não melindre.”
Um dos poemas mais interessantes do escritor cuja
memória hoje nos reúne é, quanto a mim, o que vem em quarto lugar no
livro póstumo intitulado Pelo Sonho é que Vamos. Escrito em
Estremoz no dia 10 de Fevereiro de 1951, um ano antes do falecimento
de Sebastião, mostra bem quanto era consciente o seu entendimento do
fazer poético, quanto percebia que a poesia é apenas expressão do
sentimento e das emoções, veículo de pensamento, concretização dos
instantes fugazes, único e imperfeito instrumento de conservação de
fragmentos de um mundo sempre a perder-se, vítima constante das
múltiplas erosões que o atacam sem cessar. “Viesses tu, Poesia...”:
“Viesses tu, Poesia,
e o mais estava certo.
Viesses no deserto,
viesses na tristeza,
viesses com a Morte...
Que alegria mereço, ou que pomar,
se os não justificar,
Poesia,
a tua vara mágica?
Bem sei: antes de ti foi a Mulher,
foi a Flor, foi o Fruto, foi a Água...
Mas tu é que disseste e os apontaste:
– Eis a Mulher, a Água, a Flor, o Fruto.
E logo foram graça, aparição, presença,
sinal...
(Sem ti, sem ti que fora
das rosas?
Mortas, mortas pra sempre na primeira,
morta à primeira hora.)
Ó Poesia!, viesses
na hora desolada
e regressara tudo
à graça do princípio...”
Seja qual for a Arrábida que nos mova, as injustiças
que nos façam escrever, as paisagens que nos encantem, as figuras
que nos interpelem, os sonhos e imagens que nos obriguem, os
sentimentos que se estabeleçam, os pensamentos que queiram ver a luz
da expressão – é preciso passarmos (parece sugerir Sebastião da Gama
neste poema e noutros textos) da representação à apresentação do
mundo e dos seus seres, da observação à investigação da realidade,
da prospecção dos vestígios de um tempo e de um espaço fugidios e
irrepetíveis à sua escavação e interpretação. Apresentar,
investigar, escavar e interpretar serão sempre os verbos que moverão
o trabalho poético de quem escreve porque não pode deixar de criar
em Arte. “Transfiguração” é a palavra-chave. O poeta pergunta
num dos seus parágrafos: “a Poesia – mesmo quando pretende ser
realista e crua – não será sempre uma deformação da realidade no
sentido da Beleza?” A resposta, que alumia, é ele quem a dá: “Pode
a beleza que sugere não ser a beleza amável [...]; de toda a maneira
é inegável essa deformação, que desvulgariza a coisa observada pelo
Poeta, que lhe empresta um poder de
comover ou lho descobre.”
Cada um de nós tem presente um Sebastião da Gama que
lhe é próximo. Haverá quem guarde sobretudo a sua memória de Homem e
de Cidadão (onde se inclui o seu desempenho como professor), outros
privilegiarão as suas intuições pedagógicas, um pequeno grupo
lembrará o seu cristianismo alegre e esclarecido (com laivos da
mística de São João da Cruz), muitos recordam sobretudo o poeta e,
entre estes, existirão aqueles que valorizam sobretudo o valor
humano dos seus textos, enquanto um número indeterminado de leitores
realçará a qualidade artística dos seus poemas, sobretudo daqueles
que o farão permanecer no futuro, conservando a solidez do seu lugar
no vasto território da Poesia Portuguesa do século XX. Todas as
facetas deste ser poliédrico, exemplar, merecem a nossa admiração. O
que não significa que passemos à canonização; a pior coisa que pode
suceder a um escritor intenso como ele é não ser discutido, não ser
constantemente avaliado nas suas atitudes e nas suas produções. Não
tenhamos dúvidas: o futuro recordará Sebastião da Gama como Poeta,
sobretudo como Poeta, mas isto não significa que uma devoção
acrítica nos impeça de ver que a sua poesia foi um ser em
crescimento, em maturação.
Na sua justamente célebre “Alegoria”, o
escritor sai de cena e apresenta-se enquanto figura que finge “A
dor que deveras sente”. Vale a pena recordar na totalidade um
dos seus mais emocionantes poemas:
“Junto do Mar canta a Cigarra.
Canta, p’ra iludir
a fome e a solidão;
p’ra fingir que tem pão
e p’ra fingir que está acompanhada.
Tremeluzem os Astros no céu nítido:
Dona Cigarra faz serão.
Como há-de ela dormir, se a vida é
curta?
Cigarra que
se preza, quando morre
não deve estar
a meio da canção.
Ninguém pára a
saber por que é que canta.
Ninguém lhe dá ouvidos nem conforto.
Melhor, assim:
assim, não perde tempo
quem não pode
cantar depois de morto.
A parte que lhe coube por destino,
tem de morrer
deixando-a já cantada.
Que faz que a
não escutem nem lhe acudam?
É preciso é
sentir que se está vivo.
É preciso é
que as asas que sosseguem
o tenham
merecido.
Canta a
Cigarra à sombra da montanha
e à sua voz a
solidão alastra,
deixa-a mais
longe, sempre, dos que dormem.
Só a noite a
entende e agasalha.
Mas a voz não
acusa nem se cansa
nem laiva de
azedume ou amargura.
Ei-la
crucificada de indiferença.
Serve-lhe a
Noite de mortalha.
Morno ainda do
Canto,
seu coração
evola-se em ternura
que vai poisar
no sonho dos que dormem...”
Com Ruy Belo iniciei estas palavras, com Ruy Belo as
termino. Se concordo com ele quando afirma que Sebastião da Gama “vinha
melhorando surpreendentemente de livro para livro”, não sei até
que ponto ficou “a meio da canção” (na medida em que uma
parte substancial da sua obra em prosa e em verso ainda permanece
inédita). Há no entanto uma convicção que partilho com o autor de
Terra da Alegria: “[...] não é que não tenha interesse a
biografia, mas o que inequivocamente tem primordial importância são
os textos, os positivos textos. Só de quem foi poeta na obra
interessará saber se foi poeta na vida. [...] De resto o poeta sabia
que assim era e desejava que da sua obra falassem ‘objectivamente,
friamente’.”
Convosco partilharei a certeza de que Sebastião da
Gama foi poeta na vida e na obra. Por isso aqui estamos. Por isso
assumimos como dever preservar e divulgar, num olhar claro, todos as
faces da sua memória.
Quinta do Conde / Cotovia, Abril de 2008
[Lido no dia 10 de Abril de 2008 no Salão Nobre da
Câmara Municipal de Setúbal.]
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