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PROSÉLITOS DO NEONATURALISMO
(Ruy Ventura)
De
vez em quando, em Portugal, surge nas discussões aparentemente
poéticas o tema da abstracção. O repúdio por esta – ultimamente
expresso por João Luís Barreto Guimarães nas "Correntes d’
Escrita" levadas a efeito na Póvoa de Varzim, conforme relatou
o Diário de Notícias de 10 de Fevereiro –
leva no entanto água no bico.
Ao
contrário do que parece, esta posição constitui um ataque contra
toda a poesia que não use uma linguagem neonaturalista, pois se
virmos bem são muito poucos os verdadeiros exemplos de abstracção
poética que, mesmo assim, só existem negativamente quando constituem
um estéril jogo verbal.
Fora da abstracção estão as linguagens hermética e simbólica e a
reflexão sobre realidades imateriais, intangíveis ou enigmáticas,
reveladoras de uma aproximação ao concreto muito mais intensa do que
se pensa.
Mas lembremos Vitorino Nemésio. Nem concreto nem abstracto são
propriamente poesia...
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João Luís Barreto Guimarães não foi o primeiro autor a atacar aquilo
a que chamou a "poesia abstracta" – nem será, decerto, o
último a fazê-lo.
Infelizmente, o desdém nunca tem sido suficientemente claro para que
entendamos o que pensam ser a tal abstracção poética. Partindo do
princípio de que não confundem conceitos tão diferentes quanto os de
"abstracção", "hermetismo", "surrealidade"
ou "simbolismo", então os prosélitos desta batalha têm
produzido juízos propositadamente ambíguos, ferramentas propícias
para lançarem o anátema sobre todas as formas poéticas que não
partilhem do “neonaturalismo” (expressão feliz de Levi
Condinho) que vêm adoptando como veículo dos seus poemas. Alguns dos
recém-convertidos não hesitam mesmo em repudiar pela calada várias
obras suas, como por exemplo o supracitado autor de Rua
31 de Fevereiro, subscritor no início do seu trânsito
pela república das letras de três bons livros que, nos seus
critérios, podem ser considerados "abstractos"...
Este proselitismo neonaturalista – revestido sempre de boas
intenções ("generosas", como diriam os sequazes mais
ortodoxos do neo-realismo militante luso dos anos '40 – '50) – vem
sendo agarrado (ou reinventado) pelos chamados "poetas sem
qualidades", integrados num apostolado falsamente realista que
tem como guru Joaquim Manuel Magalhães, mas, no fundo, bem no fundo,
se reveste de um subreptício epigonismo de certas linhas mais
facilitistas de alguma poesia anglo-saxónica e da "poesia da
experiência" hoje divulgada e fabricada nalguns meios
espanhóis.
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“Poetas
sem qualidades” –
assim se auto-intitularam alguns neonaturalistas num esclarecedor
livro colectivo, prefaciado por Manuel de Freitas –, com
fragilidades detectadas em primeira mão pelo olhar lúcido do poeta e
ensaísta Gastão Cruz, em artigo publicado na revista
Relâmpago, revelam uma qualidade poética muito irregular,
que vai de propostas válidas e interessantes a uma imitação mal
disfarçada de modelos endógenos e exógenos. Curiosamente, são os
poemas que mostram mais evidentes qualidades estilísticas – as que
os jovens neonaturalistas e seus padrinhos afirmam rejeitar –
aqueles cuja estrutura se mostra mais sólida e duradoura. Há,
portanto, incongruências (felizmente insanáveis) entre a “teoria”
propalada e a sua prática versificatória...
O
que é grave neste anacrónico proselitismo neonaturalista não é, no
entanto, a qualidade (ou falta dela) dos poemas assinados pelos seus
apóstolos, mas as posições sectárias que vêm assumindo com um
crescente descaramento, desejando pôr em prática uma estratégia de
terra queimada, ao quererem achincalhar todas as demandas artísticas
em torno da palavra escrita que não passem pela simples “mimésis”
narrativa ou descritiva de um “real” que olham apenas pelo
lado mais estritamente materialista. Como afirmaria José Régio,
nesse “real” "há mais mundos..." Existe,
sobretudo, uma multiplicidade de instrumentos artísticos e verbais
de que o poeta pode e deve socorrer-se com liberdade para construir
os seus textos.
Nisto tudo não são, porém, originais. Para além das influências
nascidas fora de portas, que já apontámos, há semelhanças flagrantes
entre as suas propostas fundamentalistas e as assumidas pelo
realismo marxista que dominou uma parte substancial da literatura
portuguesa no segundo e terceiro quartéis do século XX. Não fosse a
(aparente?) ausência de enquadramento político-ideológico de teor
marxista-leninista-estalinista, estaríamos na presença de um
neo-neo-realismo ou realismo socialista recauchutado. Não é preciso
muito esforço para encontrarmos semelhanças entre, por exemplo,
alguns textos de Manuel de Freitas e os assinados por Álvaro Cunhal
contra o autor de Poemas de Deus e do Diabo, numa
polémica célebre dos anos ‘40.
Não terão talvez uma “angústia da influência”. Quiçá não
terão até consciência dos elos que os ligam a essa parte da história
da literatura portuguesa contemporânea, a esse braço do poder
soviético que visava tornar a arte num instrumento ao serviço
daquilo a que chamavam “luta de classes”. Há, de igual
modo, um relativo desprezo pelos poetas que, nos últimos cento e
cinquenta anos de poesia em língua portuguesa, sem serem sectários
nem fundamentalistas, cultivaram um verdadeiro realismo, aquele que
parte dos elementos concretos do universo e da vivência humana para
os transfigurar através das palavras. Não consta que, para além de
Joaquim Manuel Magalhães e de mais dois ou três nomes, reivindiquem
abertamente as heranças de, por exemplo, Guilherme Braga, Cesário
Verde, Irene Lisboa, Manuel da Fonseca, Vitorino Nemésio, Carlos de
Oliveira, Nuno Guimarães, Ruy Belo, Fiama Hasse Pais Brandão,
Armando Silva Carvalho, Carlos Garcia de Castro, Mário Cesariny,
José do Carmo Francisco, Adélia Prado, João Candeias, Nicolau Saião,
Ruy Cinatti ou Fernando Assis Pacheco. Seria bom que o fizessem, que
os lessem e aprendessem algo com o seu realismo onírico,
impressionista ou reflexivo. Reparariam que a roda, cuja invenção
parecem querer reclamar, foi há muito inventada – e que todos
quantos escrevem fazem parte de uma corrida de estafetas; recebem um
testemunho que devem transmitir muito melhorado. Se assim não for,
não vale a pena. Chegariam ainda à conclusão de que quem deseja
refazer a roda, que é redonda, corre o risco de construí-la
quadrada...
Se
lessem com frequência, por exemplo, Ruy Belo, teriam de concordar
nomeadamente que toda a verdadeira palavra poética é “abstracta”
porque “universal”, e que sem esse universalismo nunca
poderá existir uma verdadeira polissemia, condição indispensável
para a transfiguração verbal (logo, existencial) contida na
multiplicação de sentidos que confere ao leitor uma inteira
liberdade de interpretação e de pensamento.
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O
proselitismo neonaturalista, na sua luta contra a “abstracção”
(eufemismo que, como já vimos, esconde todo um conjunto de formas de
expressão que não compactuam com a facilidade de leituras unívocas
da realidade tangível que nos envolve, mas estruturam olhares
infinitos sobre tudo quanto nos rodeia, visível ou invisível,
existente ou imaginário, concreto ou abstracto), preocupa-se em
atacar toda a poesia diferente da sua porque, alegadamente (como
declarou Barreto Guimarães), “não comunica, não faz leitores, é
um nado morto à partida”, uma vez que “só o autor sabe o
que significam os seus poemas e, muitas vezes, nem eles próprios”
(relevando no entanto deste “pecado” Herberto Helder
porque, segundo escreveu há tempos Manuel de Freitas, a um “génio”
“tudo se perdoa”).
Ecoa nestas e noutras atoardas a necessidade de uma poesia “ao
serviço do povo”, defendida outrora pelo realismo socialista,
pretexto invocado sempre que se tratava de nivelar por baixo e
reduzir esse mesmo povo à indigência metal, facilmente manipulável.
Numa época pós-moderna, cheiraria a bafio falar em “povo”,
numa arte que “o povo entendesse”... Os objectivos podem
ser até diferentes nos dias que correm, mas os fundamentos
infelizmente são os mesmos. Em certos estômagos é muito pesado o
ecumenismo poético, aquele que defende serem admissíveis todas as
formas poéticas, desde que sirvam a palavra e não se sirvam dela,
desde que transfigurem o mundo e não se limitem a devolvê-lo aos
leitores tal qual o encontraram. Bem intencionados ou não, os
propósitos de ontem e de hoje redundam num rebaixamento da
capacidade de entendimento artístico, logo num empobrecimento mental
dos sujeitos leitores que conduzirá, necessariamente, a uma maior
alienação perante o mundo (físico, social ou espiritual) que os
envolve.
Ninguém nega aos prosélitos neonaturalistas a liberdade de
escreverem e publicarem poemas que se limitam à narração de
episódios ou à descrição de cenários (embora consideremos que essa
linha estética é na maior parte das vezes redutora e limitadora do
desenvolvimento de potencialidades imaginativas e/ou racionais do
ser humano). Temos no entanto o dever de denunciar a estratégia de “partido
único” que vêm adoptando, ao tentarem queimar tudo quanto não
reze pelo mesmo breviário, beneficiando umas vezes de um acesso
privilegiado a certos areópagos para atacarem a liberdade criativa
dos seus semelhantes, noutras ocasiões impedindo nos sítios certos a
publicação de obras diferentes das suas ou então aproveitando a sua
influência junto de certa comunicação social para escavarem um muro
de silêncio em torno de propostas poéticas que os incomodam, que não
compreendem e/ou não querem compreender.
Há
poucos anos uma escrevinhadora de narrativas sentimentais urbanas
sem conteúdo afirmou num jornal que redigia os seus textos sem
quaisquer exigências de estilo (ou de sintaxe, acrescentaria eu...)
porque lhe interessava que todos compreendessem quanto escrevia (e,
infelizmente, continua a escrever). Digamos, sem rodriguinhos:
nivelou muito por baixo para vender os seus textículos, cuja melhor
parte será a do papel em que foram impressos... Não acredito que, à
semelhança desta produtora de pseudoliteratura, os prosélitos do
neonaturalismo pretendam conscientemente instituir como via única na
cultura portuguesa dos nossos dias uma poesia “light”
(propósito, aliás, impossível de realizar, na medida em que poesia e
ligeireza são realidades que mutuamente se excluem). Mas que
disfarçam muito bem, lá isso disfarçam...
Sesimbra, Fevereiro / 2007
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