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NA CALMA E NO SILÊNCIO DE
DEUS
(Ruy
Ventura)
Senti
pela primeira vez a calma e o silêncio do bosque quando iniciei a
tradução para a nossa língua do livro de Anton van Wilderode. Na
voz do poeta e sacerdote nascido na Flandres, encontrei um lugar
onde a paz interior surge concretizada em palavras serenas e
profundas. Longe das inquietações do poder e do mundo, a partir da
sua varanda virada a sul, Carlos V saboreia a tranquilidade que o
envolve: “Dif’rente a calma que tenho encontrado. / O silêncio
de frutos d’ oliveira, / de carvalho, da sua madeira, / de mármore
e pedra no lajeado”.
Mosteiro
e palácio nasceram da procura dessa calma e desse silêncio. Em
1407 três solitários de Plasencia procuraram no sopé da serra de
Gredos um lugar de encontro consigo próprios – origem da
comunidade de monges jerónimos ainda hoje existente. Em 1557 Carlos
V entra no seu derradeiro refúgio para construir dentro de si a paz
que raramente tivera enquanto governante.
A
17, 18 e 19 de Outubro tive o privilégio de poder tocar essa calma
e esse silêncio. Contemplando a pedra e o tijolo dispostos com
austeridade, os carvalhos serenos e seculares, pude receber uma ínfima
mas intensa parcela do “espírito de Yuste” que
outros, antes de mim, souberam entender e apresentar aos vindouros:
um espírito de paz que Deus desejou apresentar aos Homens naquele
lugar da comarca de La Vera, um espírito de procura interior através
da palavra e da aproximação à Natureza, mas também um espírito
de concórdia entre os povos para a concretização espiritual e
material do bem comum.
“Dichter
en Dichter” se chamou o encontro internacional de poetas
em que tive a honra de participar. “Dichter en Dichter”
– “cada vez mais próximos”, na língua flamenga
em que Wilderode escreveu, encarnando a personagem do imperador que
regressa à humildade da terra onde falecerá em 21 de Setembro de
1558. A voz dos poetas que aí convergiram de toda a Europa foi
realmente a da proximidade. Nem sequer a barreira de línguas tão
distantes foi suficiente para separar o que Deus ali quis unir. Em
castelhano, em português, em francês, em inglês, em polaco ou em
finlandês, mas também em italiano e flamengo, a voz de cada um foi
escutada e compreendida, porque todas procuraram concretizar a essência
daquele lugar: um espírito de união na diversidade. Tudo pode ser
resumido nas palavras enraizadas de Frei Francisco de Andrés,
ourives e prior do Real Mosteiro de Yuste, que – ao sair da sua
clausura especialmente para nos receber – a dado passo referiu:
“Procuramos todos o mesmo destino: meditar sobre o mundo
onde Deus nos colocou, saborear a sua essência na Palavra e através
da Palavra, torná-lo melhor pela acção do Espírito”.
Visitar
a casa de Carlos V e o mosteiro foi compreender a essência daquele
lugar. A austeridade dos quatro compartimentos parcamente mobilados,
a nudez da pedra na igreja e nos claustros, a larga abertura ao
firmamento e ao denso bosque fizeram compreender o silêncio e a
calma que habitam ainda hoje aquele lugar.
Há
imagens que guardamos no coração. Junto de Carlos, o retrato de
Isabel de Portugal, cujo rosto apresenta uma idade impossível –
porque o imperador quis ver envelhecer junto de si a mulher que
tanto amara, levada do mundo ainda na juventude. A porta entre a
igreja e o quarto do soberano, para que mesmo doente este pudesse
assistir aos ofícios divinos. O primitivo túmulo do monarca, onde
foi sepultado de maneira que o celebrante tivesse sempre os pés
sobre a arca do seu peito. No dia da partida, sob o nevoeiro, frei
Francisco caminhando com os seus irmãos por entre os carvalhos; a
chuva fina, penetrante, fertilizando a floresta; a calma e o silêncio
de Deus envolvendo a viagem e o caminho.
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