POEMAS
(Rafael Rocha Daud)
II
O que faz um homem
que atravessou os séculos
pela porta dos fundos
e entra no último
por uma de escritório?
Que lhe diz respeito
a humanidade,
essa fileira de cidadãos,
um uísque, um carro
e ele mesmo?
Que tal uma batida,
um acidente
um erro crasso,
uma presença inefável, uma ausência,
uma seriedade — vital — ao menos?
Uma curva e uma garrafa —
é preciso uma morte para existir?
III
Mesmo que eu não saiba o que se esconde
e eu busque uma solução gramatical
e um fazer poético
e uma facilidade orgânica
e eu me revolte contra a completude
e eu me desfaça de meus braços
e um exército, um exército,
ainda após muitas noites
e eu suporte essa redenção
— porque algumas palavras
mereciam bastar
e apenas o grande bastardo
as tinha por obrigação —
Quando a redenção, um juízo,
nenhum tormento
— uma briga e um tiro —
é preciso muito muito barulho
antes de se ouvir
silêncio
XII
para a Jo
Preciso de uma imagem
para fazê-los entender
minha amiga deixa-me feliz
como se me hospedasse em outro país
Pergunta-me se eu peguei chuva e de
imediato
eu me lembro de cada uma das minhas
andanças
Não há maneira mais convincente que a
dela
quando diz que eu estou em casa, e não
estou
Ela tem o olhar da invencível quando
está quase vencida
e ouve-se a manhã na sua voz
emudeço como se perdesse meu nome
e falo em nome dela
emudeço e ela substitui com sua voz
as hesitações do meu espírito
e nunca tremo ante o fim
pois ela abarca o fim em cada alento.
XV
Faz-se clara em meu espírito a
exigibilidade de uma meta.
Quando se ilumina em minha presença uma
suspeita de morte,
O primeiro inimigo será benvindo, e
quando não, uma sombra
Colossal testemunhará sozinha o
abrigar-se de um corcunda e a brevidade
De um sonho, o arrazoar-se que prepara
uma extravagância guerreira,
Um disputar para todos os lados e
dispensar de forças até que uma nuvem,
Soprada pelo sol, balance meus arcos e
me solte no escuro.
XVI
Uma luz vaga, grave, percorre a sutura
entre o pico e o céu, como se houvesse
neblina.
A distância que separa os opostos do
vale não se revela,
graças talvez à magnanimidade da
cordilheira.
Se é possível iniciar uma caminhada, que
belo convencimento,
qualquer ave de asas enormes, invisível,
não o encoraja.
Meu companheiro, sem imaginá-lo, estende
os braços a meu ombro,
e quase tropeça, não só nossos olhos
adquiriram dimensões engraçadas.
Eu me sento, deito-me e até passo a
noite acordado nesta colina,
e nem o luar me revela qualquer nitidez
no horizonte.
Se eu pudesse agarrar, penso, aquele
pico entre um dedo e o indicador,
ou se eu pudesse gabar-me de assoviar
nuvens em anéis,
Mas nem a pequenez da montanha, nem a
feiúra dos traços deformados,
nem a jornada extenuante que me trouxe
aqui,
Nada dimensiona uma direção, um andar em
círculos, um olhar para baixo com a cabeça erguida.
(In Poemas para o século XX)
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