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QUESTÃO DE VÍRGULAS E
MAIÚSCULAS: SABER E SER
(Renato Suttana)
(Páginas de um diário íntimo)
Não sei quem pôs na cabeça dos poetas vivos que escrever
sem usar maiúsculas ou pontuação é mais adequado à
poesia do que utilizar tais convenções. Também é de
perguntar se os versos livres e prosaicos são melhores
que os versos medidos, e seria sempre conveniente
mostrar aos jovens que, sim, é possível escrever
lançando mão de todos os recursos disponíveis nos
manuais de gramática, inclusive as maiúsculas e as
vírgulas. Mas nossa época parece pensar diferente: a
arte se torna melhor quanto menos recursos emprega,
muito embora a impressão produzida no fim seja a de uma
coisa incompleta. Sabemos que ter somente uma perna não
é mais interessante ao indivíduo que ter duas, e que
enxergar com um olho único só nos cria dificuldades
(para quem tem visão monocular). Não se trata, pois, ao
que parece, de vantagens. Além do mais, escrever sem
vírgulas não torna um escrito mais profundo, mais belo
ou mais interessante, podendo quando muito facilitar o
trabalho de quem não sabe empregar esses sinais ou
pretenda baratear os custos de revisão. Também não
estamos a dizer, claro, que escrever sem maiúsculas ou
pontos não esteja em questão — até porque não queremos
parecer conservadores ou ranzinzas, e cada um faz
conforme lhe apetece. Cumpre somente estar atento e não
converter em automatismos certos tiques de expressão que
se generalizam atualmente, tornando-se comuns e, no
final, perdendo a capacidade de comunicar.
*
Por outro lado, prevalecem, nos
escritos de muitos, as imprecisões vocabulares e um
conhecimento aparentemente precário da significação das
palavras e seus usos — do seu alcance vernáculo, como se
diz. Vemos um autor famoso escolher um termo qualquer
para expressar uma ideia, e o achamos correto, mas no
fundo sabemos que havia palavra mais apropriada para
esta ou aquela situação, bastando para isso ter
consultado o dicionário. Tal coisa com frequência se
escamoteia sob os apelos a uma inefável linguagem de
recorte coloquial (sempre bem-vindo à literatura, mas só
até certo ponto), que denuncia, quase sempre, um
desagradável à-vontade na fatura do escrito, cujo efeito
é, no fim, apenas atordoar os leitores, disfarçando a
exiguidade de meios ou o domínio precário dos recursos —
os quais um pouco de estudo poderia corrigir — com
apelos à familiaridade e à descontração cujo valor ainda
não está de todo provado. Conhecer o léxico não faz mal
a ninguém, eis a verdade, chegando a ser inclusive uma
coisa boa, para dizermos o mínimo, quem sabe até
recomendável. Dominar a sintaxe também o é, se levarmos
em conta que se trata de dominar um material e um
instrumento; e saber onde uma frase começa e onde
termina só nos ajuda a sermos mais claros ou mais
precisos em nossos esforços de comunicação.
*
No entanto os limites entre
omitir voluntariamente e desconhecer vão se tornando
vagos. Mais uma vez, caberia a pergunta quanto a serem
tais procedimentos — linguagem desleixada, léxico
estreito e versos cacofônicos — os mais adequados aos
poetas, ou se eles devem mesmo passar a vida fingindo-se
de incultos e bárbaros. É mais fácil recorrer a
imediatismos quando não se tem um conhecimento seguro
dos meios. Sobretudo, é um modo de contornar
dificuldades e, às vezes, disfarçar um mau emprego dos
termos e a incapacidade de determinar o que convém a
cada situação — coisa que nos atormenta a todos desde o
início do mundo. A poesia pode ser o reino do ambíguo e
do vago, mas não deveria ser o do impreciso. Tentar
parecer fácil e familiar deve ter o seu valor em algum
ponto, porém cabe estar atento aos efeitos que isso
causa sobre a inteligência. Ademais, as ilusões da
facilidade costumam relacionar-se muito mais com o fato
de o registro coloquial, sendo aquele em que
permanecemos na maior parte do tempo, nos parecer
apropriado à expressão de nossos pensamentos — embora
saibamos que conhecimentos parcos de dança ou de direção
de veículos não geram bailarinos ou pilotos
profissionais. Nossos pensamentos não querem ser
coloquiais — é o que sabemos — e tampouco devem estar
desatentos à sua própria expressão. Ter muitas coisas a
dizer parece desejável (sendo às vezes o caso), mas a
tarefa não ficará nem um pouco mais fácil se não
soubermos como dizê-las ou se é realmente adequado
dizê-las da maneira como achamos que podem ser ditas ou
com as primeiras palavras que nos vierem à cabeça.
*
Como se dizia antigamente,
cresce a má vontade para com o acabamento e a etiqueta.
Escreve-se como quem, num desses restaurantes que servem
comida em bufê, escolhe as iguarias ao acaso,
empilhando-as no prato sem levar em conta as possíveis
consequências de tal desordem para a digestão. A isso
tentamos chamar de liberdade de expressão e arbítrio,
quando não de atitude descolada e inovadora. Mas uma má
digestão dificilmente nos deixa livres para muitas
coisas; e, por certo, más escolhas e mau emprego de
recursos não nos tornam mais hábeis e eficazes, sendo
que, na poesia, não tornam os poemas mais expressivos e
tampouco mais cativantes. Além do mais, o arbítrio não
pode se exercer sobre aquilo que não se conhece:
escolhas feitas entre opções cuja implicação escapa ao
nosso conhecimento não são escolhas conscientes, pois
não sabemos de fato que tipo de efeito podem ocasionar
(muito embora se deva considerar a margem de
desconhecimento e mistério que existe, sempre, em nossa
relação com todas as coisas).
*
Entendemos que a arte deva criar
constrangimento para os seus autores — e,
frequentemente, cria dificuldades para os seus
apreciadores. Não obstante, uma ausência de conhecimento
quanto ao que sejam (e onde se situem) tais
constrangimentos torna inútil dar conselhos a quem não
quer ou não pode aprender. É preciso estudar para
aperfeiçoar-se. Numa época em que “escrever difícil” se
tornou um problema para muitos — e não porque as
exigências da arte imponham dificuldades em si mesmas (é
da sua natureza ser artificial e exigir de quem a
pratica um certo domínio de técnicas e recursos, sem os
quais a criação se torna impossível, mesmo nos níveis
mais primários de elaboração) — a impressão que se tem
é, simplesmente, de que tudo se tornou difícil de uma
hora para a outra, até o ponto da saturação, e isso de
todo modo nos obriga a pensar sobre algumas situações. O
fácil, às vezes, é difícil para quem nada sabe ou sabe
pouco. Dirigir um automóvel pode ser coisa relativamente
simples para quem aprendeu, mas será extremamente
difícil para aqueles que nunca se sentaram ao volante de
um veículo. Assim, nenhuma vantagem se obtém quando se
foge à dificuldade, escamoteando-a mediante
subterfúgios.
*
A ideia de democratizar a arte
eliminando seus entraves nos deixa à mercê de novos
problemas, a ponto de suspeitarmos que ela (a ideia)
seja apenas ilusória. O que se obtém eliminando entraves
é uma arte da qual o artístico parece ter se ausentado —
muito embora, por prudência, não se deva identificar o
artístico com o elemento técnico ou com o meramente
difícil. Essas noções não se confundem, assim como a
técnica de construção de uma casa não se confunde com a
ideia de morar nela ou com a habilidade do pedreiro em
edificá-la. A arte segue o seu caminho, é o que sabemos.
Seus recursos — compreendendo esse termo tudo aquilo
cujo domínio implica certo grau de dificuldade — são uma
condição de sua existência; tornam-se, portanto, um modo
de comunicação consigo mesma: um tipo de linguagem. Um
escritor que estudou a língua e aprendeu a conhecê-la em
profundidade faz arte, com certeza, mas sobretudo está a
nos dizer alguma coisa a respeito disso. Seu modo de
usar o idioma é mensagem também, correspondendo a uma
decisão cujas repercussões atingem sua própria maneira
de ser e de existir.
13-7-2021
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