"Desespero"
e outros poemas de H. P. Lovecraft
DESESPERO
Sobre
os charcos noturnos ululando,
entre
os negros ciprestes suspirando,
nos
vendavais da noite remoinhando,
demoníacas
formas noturnais;
contra
os galhos desnudos se ferindo,
junto
aos poços estanques estrugindo,
nas
penhas, sobre o mar, repercutindo,
do
desespero as sombras infernais.
Certa
vez (ainda o vejo em pensamento),
antes
que se estendesse um céu cinzento
sobre
o meu juvenil atrevimento,
houve
tal coisa como ser feliz;
o
céu que agora é negro refulgia,
límpido
e safirino resplendia,
mas
logo vi que em sonhos é que eu via
tudo
isso – no fatal torpor de Dis*.
Mas
o rio do tempo, a transcorrer,
traz
o tormento do desconhecer,
sempre
fugindo, em seu cego correr
em
direção àquele prado arcano;
enquanto
o viajante enxerga aflito
do
fogo-fátuo o fulgor esquisito
e
do petrel maligno escuta o grito,
a
vogar impotente para o oceano.
Asas
malignas pelo éter batendo,
abutres
que o espírito vão roendo,
vultos
negros que passam, percorrendo
eternamente
um céu de escuridão;
contornos
espectrais de ida ventura,
cruéis
demônios da aflição futura
se
mesclam numa nuvem de loucura
e
fazem da alma a sua habitação.
Assim
os vivos, sós e soluçantes,
nos
amplexos da angústia palpitantes,
são
vítimas das fúrias repugnantes,
que
à noite e ao dia vêm a paz roubar;
mas
para além da dor e do lamento,
de
uma vida de tédio e de tormento,
há
de coroar o doce Esquecimento
tantos
anos de inútil procurar.
*Cidade
invisível, mencionada num livro de Clark Ashton Smith e presente na "Demonologia de
Cthulhu".
O
JARDIM
Existe
um jardim antigo com o qual às vezes sonho,
sobre
o qual o sol de maio despeja um brilho tristonho;
onde
as flores mais vistosas perderam a cor, secaram;
e
as paredes e as colunas são idéias que passaram.
Crescem
heras de entre as fendas, e o matagal desgrenhado
sufoca
a pérgula, e o tanque foi pelo musgo tomado.
Pelas
áleas silenciosas vê-se a erva esparsa brotar,
e
o odor mofado de coisas mortas se derrama no ar.
Não
há nenhuma criatura viva no espaço ao redor,
e
entre a quietude das cercas não se ouve qualquer rumor.
E,
enquanto ando, observo, escuto, uma ânsia às vezes me invade
de
saber quando é que vi tal jardim numa outra idade.
A
visão de dias idos em mim ressurge e demora,
quando
olho as cenas cinzentas que sinto ter visto outrora.
E,
de tristeza, estremeço ao ver que essas flores são
minhas
esperanças murchas – e o jardim, meu coração.
OS
GATOS
Babéis
de blocos que se elevam para os céus,
futilidade
a arder em chamas junto ao chão;
sobre
cada tijolo ou pedra um fungo mau;
lâmpadas
a oscilar e luz na escuridão.
Por
sobre rios de óleo hediondas pontes negras,
cabos
que em profusão de redes se entretecem;
profundezas
de caos cuja desordem mana
fluxos
que, à luz do sol, fétidos apodrecem.
Esplendor
e matiz, doenças e decadência,
uivos,
gritos, clamor e um rastejar insano;
exóticas
ralés orando a estranhos deuses;
misturadas
de odor que à mente causam dano.
Legiões
de gatos que das vielas noturnais,
furtivos,
a gemer para o clarão da lua,
plangendo
dos jardins de Pluto a cantilena,
exprimem
o futuro em gritos infernais.
Compridas
torres e pirâmides ruinosas,
vôos
de morcegos sobre ruas que a erva esconde,
pontes
nuas de Arkham erguidas sobre rios
que
fluem em silêncio enquanto essa horda ronde.
Campanários
que mal se sustentam ao luar,
bocarras
de antros pelo musgo recobertas;
e,
para responder ao vento e à água, só os gatos
que
vagueiam, a miar, tais paragens desertas.
NÊMESIS
Através
dos portões assombrados do sono
para
além do noturno abismo, tenebroso,
tenho
vivido minhas vidas incontáveis
e
sondado com a vista a multidão das coisas;
e
me debato e grito antes do amanhecer,
enlouquecido
pelo medo.
Rodopiei
com a terra em seu alvorecer,
quando
o céu era só uma poeira de fogo;
e
vi o bocejar do sombrio universo,
por
onde giram sem propósito os planetas,
por
onde giram num terror que ninguém ouve,
sem
consciência, brilho ou nome.
Tenho
vogado sobre mares infinitos,
sob
uns sinistros céus que as nuvens enegrecem;
que
fende, a serpentear, o raio coruscante,
e
que ressoam com os histéricos lamentos,
com
os gemidos de demônios invisíveis
que
se elevam das águas verdes.
Como
um cervo, atirei-me através das arcadas
do
bosque primordial, vetusto e esbranquiçado,
onde
o carvalho sente a presença que marcha,
pisando
um solo onde ninguém ousou pisar;
e
fujo de uma coisa estranha que me envolve
e
olha, lá do alto, de entre os galhos.
Perambulei
pelas montanhas cavernosas
que
se erguem da planície, estéreis e desertas.
Bebi
das fontes cujo odor era o do sapo,
que
fluem lentamente até o pântano e o oceano;
e
em lagos quentes e malditos vi as coisas
que
nunca mais quero rever.
Vasculhei
o palácio encoberto pela hera,
atravessei
o seu vestíbulo deserto,
onde
a lua que sobe e avança sobre os vales
exibe
as formas dos tapetes das paredes,
estranhas
formas, que o delírio entreteceu,
as
quais não lembro sem tremer.
Espiei
através das folhas das janelas
para
as florestas decadentes de ao redor,
para
essa aldeia cujos tetos numerosos
sofrem
a maldição de um solo tumular;
e
de entre o mármore entalhado das colunas
escuto,
à espreita de algum som.
As
tumbas freqüentei das eras incontáveis.
Nas
asas do pavor, voei às regiões
onde
arrota fumaça o Érebo, e ao longe surgem
montes
que a neve encobre, enevoados e lúgubres;
e
aos reinos onde o sol do deserto consome
o
que jamais há de alegrar.
Eu
era velho quando os faraós ocupavam
seu
opulento trono às margens do amplo Nilo;
eu
era velho já nessas prístinas eras,
quando
eu, e somente eu, fui vil; e o Homem ainda,
em
bem-aventurança, imáculo, habitava
a
ilha do Ártico longínquo.
Oh,
grande foi de meu espírito o pecado,
e
de sua sentença o alcance imorredouro;
não
pode redimi-lo a clemência do Céu,
nem
sua falta ser aplacada no túmulo:
vêm
batendo através dos éons infinitos
as
asas da impiedosa treva.
Através
dos portões assombrados do sono
para
além do noturno abismo, tenebroso,
tenho
vivido minhas vidas incontáveis
e
sondado com a vista a multidão das coisas;
e
me debato e grito antes que o dia nasça,
enlouquecido
pelo medo
(Traduções
de Renato Suttana)
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