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Henri Matisse, Interior com harmônio

 

BREVE RELANCE SOBRE A MÚSICA

 

(Nicolau Saião)

 

A música, imagem da alma, como referiu com propriedade Frederich Herzfeld, tem sido uma segura acompanhante do Homem embora só tardiamente o tivesse sido da sociedade. Com efeito, este é um dado de base que importará desde já esclarecer. Se nos lembrarmos que a primeira escola de música – ainda estabelecida em termos muito artesanais – foi criada em mil e nove por Saint-Gall e que o primeiro público musical (ou seja, reunido com o fito de ouvir a música por si mesma) só começou a existir no ano de 1725, com a criação por Philidor dos chamados “concertos espirituais”, começaremos a perceber que, como uma âncora profundamente fixada no mar societário, a música enquanto fenómeno ou, para dizer doutra maneira, a música enquanto entidade criadora de acontecimentos partilhados por milhares ou por milhões é um dado relativamente recente, tanto mais que os meios técnicos de difusão só neste século se tornaram uma presença quase absoluta.

 

Nos dias de hoje, em que vivemos rodeados de sons e de timbres organizados de forma lógica (e relembro que foi somente no séc. XVIII, com Mozart, que o timbre começou a ser utilizado de modo significativo e criativo) é-nos difícil entender quanto a música estava afastada das grandes massas populares como fruição habitual e quotidiana. Como refere apropriadamente Konrad Riemann, para o geral da população havia, nos dias de semana, as frases musicais ritmadas ao jeito de pequenas canções que sublinhavam o trabalho feito ou a fazer; no domingo era a canção entoada quando havia festas mas, acima de tudo, a presença do canto religioso, frequentemente expresso mediante a monódia gregoriana.

 

Antes disso – e a memória mais afastada vai só até 40 mil anos, documentados no fresco de Ariège, na gruta dos Três Irmãos em França – a música seria um sublinhar de fastos mágicos ou ritos religiosos, pois era coisa de deuses e de alguns homens que se haviam subtraído ao seu presumido controle.

 

A música era apanágio do mago, do sacerdote ou do monarca, fracção espiritual que proporcionava um contacto directo com as divindades e os seus áulicos.

 

Contudo, no nosso tempo a música espalhou-se pelo imaginário, dando azo a muitas figurações sociais, políticas e psicológicas. Goebbels, por exemplo, com a sua fina intuição de patifório esclarecido, conhecia bem o peso que tem, ante os basbaques, o desfilar dum cortejo precedido duma poderosa charanga e fez disso um uso infernalmente manipulador. Também os nossos meios de comunicação de massas manejam bem esta matéria: repare-se na forma psicologicamente bem estudada com que nos bombardeiam os ouvidos, repetindo até à saciedade temas de sucesso entoados por vedetas que eles próprios criam. Aliás, o consabido ambiente musical dito ligeiro dispensa-me de maiores comentários.

 

Seja a música – como alguns pretendem – uma variante da linguagem ou, como outros defendem, a abstracção da linguagem levada às últimas consequências, a verdade é que constitui um dado incontornável do nosso tempo. É, em suma, um dos componentes do grande imaginário actual para além de ser, nos casos mais exemplares – como por exemplo em Bach, Mozart ou Schubert – talvez um sinal com que a “música das esferas” chega até nós para nos dar testemunho profundo do rosto secreto da eternidade.

 

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