SAI
DE CASA
Rasga
este poema depois de o leres.
E
depois espalha os bocados
Pelo
vasto mundo
Ou
então na tua rua, vai à aldeia, à praia,
Atira-o
ao mar, deita-o ao lixo,
Para
que venha o vento, o sol, a chuva, os homens do lixo,
Acabar
com ele de vez.
Passado
um dia,
Sai
de casa e procura
Encontrá-lo
de novo.
DENTES
PORTUGUESES
Adeus,
adeus, meus dentes! Só mais outro dia,
E
vai-se acabar todo o conflito entre nós,
Divórcio
que a dentista estrangeira oficia
Num
desconsentimento total e feroz.
Essa
fidelidade tão à portuguesa,
Feita
de tanto golpe baixo, tantas fintas,
Com
que me temperaste o prazer da mesa,
Fruto
de fero amor, tão vero e troca-tintas,
Ficai
com ela, que eu dispenso despedidas.
A
culpa é toda minha, devo confessar
Que
não tinha dinheiro e descurei medidas
Evidentes
no plano mais elementar.
O
remorso católico arde-me feridas
No
sítio que Calvino gosta de brocar.
POR
EXEMPLO
Por
exemplo: os cheiros não têm nome
–
Nem as nossas penas e alegrias.
Como
separar o cheiro da alfazema, da urze, do beijo, dos corpos,
Da
alfazema, da urze, do beijo, dos corpos?
As
palavras cobriram com o seu mar
A
maior parte da terra
E
lá dentro já só vivem peixes mudos
E
plantas meio descoradas,
Mas
Ameaçadoras
Ou
aduladoras
Embateram
impotentes
Contra
as falésias onde
Começa
o reino dos cheiros e da emoção.
Como
dizer
O
cheiro da alfazema, da urze,
Dos
beijos ou dos corpos,
Ou
disso tudo junto?
Só
estando lá.
SONETO
PARA O AMIGO MORTO
Preferiste
morrer pois assim seja
Amém,
adeus, meu velho amigo morto
Cá
dentro desprendido te revejo
E
apronto-me a compor um canto absorto
Já
sei que para ti deus te proteja
Não
queres funerais nem o conforto
De
choros e de lágrimas na igreja
Mas
um simples caixão e um anjo torto
A
perguntar o tonto “E agora, Zé?”
Mas
tu morreste mesmo e eu aqui
A
compor rimas fúteis fúteis
pés
Já
sei há tanta morte por aí
Tanta
gente morrendo aos pontapés
Mas
como tu tão morto nunca vi
Nota
– O autor destes poemas, extraídos do seu livro “O mundo clamoroso, ainda” (Angelus Novus Editora), é uma das figuras cimeiras da
tradução portuguesa. A sua versão, directamente
do grego, da obra de Odysseus Elytis “Louvado
seja”
recentemente dada a lume em Portugal, é uma verdadeira obra-prima
como tal reconhecida na pátria de Camões, Pessoa e tantos outros.
De
salientar, ainda, a sua ligação à brilhante equipa da revista
“Diversos”, dada a lume em Bruxelas por escritores portugueses
ali exercendo as suas profissões. (Nicolau
Saião)
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