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Opinionautas  
BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A ATUALIDADE DE RENATO SUTTANA: OPINIONAUTAS

(Maria da Conceição Paranhos)

Ironia e mordacidade são a marca de Opinionautas (doravante ON), esse livro de Renato Suttana (doravante RS), uma epopeia. Sem perder o lirismo.

Como é de conhecimento comum, ON, escrito em oitavas rimas, escolhe uma viagem pelo imaginário. Acerca-se de assuntos filosóficos e políticos do mundo hodierno. Pelo aparecimento da comunicação planetária, é uma arguta amostra do que o poeta sabe fazer com a linguagem — marca de sua íntima relação com a palavra.

Imaginemos que estou falando para o leitor leigo. Vamos ver o que significa epopeia.

Epopeia significa “poema épico”, vem da palavra grega epopoia (epos = verso heroico + poiein = fazer).

A epopeia é a mais antiga das manifestações literárias. Há a presença de um narrador que conta a história vivida de terceiros. Os verbos e pronomes quase sempre se apesentam na 3ª pessoa. Mais adiante, os textos épicos implicam a presença de um ouvinte ou de espectadores, que estariam ouvindo o narrador. A epopeia perpetua lendas e tradições remotas que foram guardadas por meio do tempo pela tradição oral.

A epopeia é a imitação de homens superiores. Estrofes, com o mesmo metro e configuração narrativa. As epopeias não têm fronteira de tempo ou espaço, tornando-se ilimitadas, diferindo assim das tragédias, que possuem tempo determinado, como por exemplo o período de um dia inteiro, segundo Aristóteles.

As principais epopeias da cultura ocidental são a Ilíada e a Odisseia, atribuídas ao poeta grego Homero, a Eneida, do poeta latino Virgílio, e Os Lusíadas, do português Luís de Camões.

A Ilíada desenvolve-se em torno da Guerra de Troia e dos guerreiros Aquiles e Ulisses. A Odisseia narra as aventuras do herói Ulisses, em seu retorno para casa, finda a Guerra de Troia. A Eneida descreve a saga de Eneias, um troiano — salvo dos gregos em Troia. Os Lusíadas, poema épico, celebra os acontecimentos marítimos e os feitos guerreiros de Portugal. Contém os gêneros épico, trágico e lírico em determinadas passagens.

Os gêneros têm sido identificados por diversos critérios, como menção, alusão e associação por paralelos formais. Estudos teóricos sobre “mescla” ou “cruzamento de gêneros” vêm se desenvolvendo através de vários teóricos. As mesclas dos gêneros denomino, simplesmente, de gêneros híbridos — o que foi dito também.

A sistematização da presença de outros gêneros poéticos nos corpora de ON abarca a identificação de aspectos (temáticos e formais), dentre os quais mais de um gênero surge ou manifesta-se. Uma reflexão sobre a possibilidade de, a partir da observação das convenções poéticas, com que ele brinca em seus textos, faz pensar em uma poética imanente em RS.

Daí o caráter épico-satírico de RS, sem que em ON falte o gênero lírico, num impressionante empreendimento de 239 páginas (Livro 1) e 218 páginas (Livro 2) = 572 páginas. E já está pronto o Livro 3, pelo que sei.

Eu acrescentaria sarcástico. Em muitas situações, o sarcasmo pode ser visto como um mecanismo de defesa. Defesa contra quem? Pelos fatos que compõem o sistema político, por consequência, social em que vivemos contemporaneamente.

Segundo o escritor russo Fyodor Dostoievsky, o sarcasmo é o último refúgio de pessoas de alma modesta e casta quando a privacidade da sua alma é invadida coerciva e intrusivamente....

Vejamos:

Filhos meus, a alegria de aqui ter-vos
não se compara a nada neste mundo;
o prazer que me toma de rever-vos
não há nada que seja mais profundo,
nem mesmo a beberagem que os meus nervos
acalma, num brevíssimo segundo,
quando o marxista, obscuro e maquinante,
seu reúne em seu Foro lá distante.
[...]” (ON, Canto 1, 28)

Certo é que Camões, mesmo numa epopeia que se propõe a exaltar as Grandes Navegações, dá o verbo aos que resistem ao projeto expansionista. Portanto, o Velho do Restelo representa a oposição passado x presente, antigo x novo. O Velho avoca de vaidosos aqueles que, por ambição ou ânsia de glória, por sua ousadia ou coragem, se lançam às aventuras além-mar. Simboliza a preocupação daqueles que anteveem um futuro sombrio para a Pátria.

 Comparando com Camões, o Velho do Restelo fala:

Qual vai dizendo: “Ó filho, a quem eu tinha
Só para refrigério, e doce amparo
Desta cansada já velhice minha,
Que em choro acabará, penoso e amaro,
Por que me deixas, mísera e mesquinha?
Por que de mim te vás, ó filho caro,
A fazer o funéreo enterramento,
Onde sejas de peixes mantimento?
” (Os Lusíadas, Canto 1, 90)

Dá o que pensar. Pois bem, em 2012, os livros 1 e 2 deste romance épico-satírico-sarcástico-lírico contam, em 15 cantos, a primeira parte da viagem dos aventureiros Estragoneias, Harada, Anacruso e Netzelsperger rumo à ilha de Cuba. Os quatro aventureiros se encontram a bordo do batel Opiniônia, protegidos pelo deus Baal — o único personagem que aparece com o próprio nome, discordando dos Lusíadas, em que Bacco era contra a viagem, assim como Netuno. Em Camões, Vênus e Marte eram favoráveis.

A ação decorre, como em Camões:

proposição — introdução, apresentação do assunto e dos heróis;
invocação — o poeta invoca as ninfas e pede-lhes a “inspiração” para escrever;
dedicatória — o poeta dedica a obra a Cronavelhos — o tempo e seu transtorno e decadência (Camões, ao rei Dom Sebastião);
narração — a narrativa da viagem. Explica o que aconteceu na “Terra mãe” (Canto 1, 5) até o momento na viagem, à história contemporânea;

Os navegadores acontecem passar por bandas das cidades de Argumentina e de Binárdia, o país dos designers Desineia, e pelo castelo do Conde Bolorento. Dois cavalos falantes são seus acompanhantes.

Quando o sol despontou sobre a cidade,
lançando morna luz sob os telhados,
não demorou que Sua Majestade
fizesse com que fossem convocados;
ao que, com pressa calma e brevidade,
os ânimos da noite renovados
com o concurso do sono, os estrangeiros
ao palácio chegaram, prazenteiros.
” (ON, Canto 2, 1)

Aqui como alhures, versos iniciais demonstram o lirismo de RS.

Vamos adiante. Risaldicto, depois da narração, fala em 1ª pessoa:

De minha parte, muitas vezes quis,
recorrendo à polícia ou ao direito.
inventar uma fórmula feliz
ou sortilégio para dar um jeito
de expulsar o gentílico, infeliz,
de intuito obsceno e cérebro imperfeito,
do seio santo da democracia,
que a meu ver só de uns poucos se fari
a [...].” (ON, Canto 1, 58)

Uma importância deve ser dada aos nomes do romance. Nada ali é gratuito.

No romance de José de Alencar, “Iracema” porta um significado qualificado de análise etimológica da palavra. O nome quer nomear, popularmente, “a virgem dos lábios de mel”. Porém, há estudiosos que acreditam que o nome Iracema seja na verdade um anagrama de América. Esta “brincadeira” teria sido criada por José de Alencar para representar a figura da índia sul-americana, que foi conquistada pelo europeu.

Machado de Assis que o diga: “Ora, é sabido que os nomes valem muito. Casos há em que valem tudo. De um ou de outro modo, a influência dos nomes é certa” (A Semana, 10 de janeiro de 1897).

“Identidade” surge do Latim medievo identitus-átis, cuja raiz equivale ao mesmo, à mesma coisa. Dentre as acepções possíveis, registra-se aquela que especifica um “conjunto de características e circunstâncias que distinguem uma pessoa ou uma coisa e graças às quais é possível individualizá-la” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 1565).

Nomes — prenomes, sobrenomes, cognomes — são pistas que se abrem para os que se lançam na aventura de investigação da criação literária.

Assim é que nos ON há uma riqueza de nomes próprios atordoante: Cronavelhos; Argumentina (“a sábia”); Livúxia (“edificada sobre a palha”); Binárdia (“que trava uma batalha”) contra o monstro Khalahmar; Deus Farfalha (Netuno?); deusa Gaianarda (deusa “Vênus”, protetora dos mercadores e banqueiros); Libertopia (a intrépida) — “quase em véspera — creio — de alçar voo, / ou no estacionamento de algum shopping [...]”; Titilídia (cuida dos “pequeninos / [...] que pensamentos lídimos e finos!)”; Tacitúrnia (“de valor”) e Logogrífia (“encantada”); Estragoneias; Berenice; Netzelsperger; Nopir; Oupe, o Mago...

Enfim, todos o conduzem (as musas e deuses) ao Paraíso do Argumento e ao condado do Conde Bolorento; e é sem fim o número de personagens que o narrador evoca, evidenciado seu desconsolo do eu-poemático diante do "desconcerto do mundo" e do declínio de seu país.

Caushio aconselha Harada a ver “em pormenor” (Canto 9, 20). Harada vê, com seu binóculo, os “homenzinhos minúsculos” (Canto 9, 22). Ele vê, com os navegantes, o que o Mago instruiu:

“[...] Em que tão pouco somos exigidos
e podemos deixar correr à solta
a língua, entre os assuntos sugeridos,
que, graciosa e levíssima, se solta.
E os que nele serão bem-sucedidos
se tornam, pela ação da viravolta
que se processa em sua compleição,
senhores do fingir e da invenção.
” (ON, Canto 8, 54)

O Conde Bolorento fala:

“[...] Por que desesperar do mau destino,
vituperando a sorte e seu valor,
se na guerra teológica o Divino
é o único, inconteste, vencedor?
— Que o cavaleiro corra, peregrino,
para os braços da dama, cujo amor
é fresco e novo e, como flor que viça,
muito mais que Paris, vale uma missa!
” (ON, Canto 15, 62)

E, por falar em dama, Anacruso fala, em redondilha maior, em sete estrofes, das quais destaco uma, para provar o caráter cômico (mais um gênero?) de ON:

“[...] Ela, a donzela bretã;
e eu aqui, dançando um xote.
Ela, o pudor genebrino;
eu,
latin lover, ladino,
sem a franguinha huguenote!
[...]”

E é de Harada, “que não temia nada” (Canto 14, 48), o lirismo destes versos:

“[...] Se fosses dele o vidro, a cornalina,
a feiticeira, a deusa, a namorada,
manga rosa, caju, cintura fina,
a malva, a amêndoa, a amiga, a amante amada;
se fosses dele a corça, a Carolina,
a casa nova, a praia ensolarada,
a prometida, a chuva cintilante
a repartir a luz, como um brilhante;
[...]” (ON, Canto 14, 54)

São 11 estrofes (48 a 59) de uma percepção lírica, que revela bem o poeta que RS é, sem dúvida.

Contrastando com esse lirismo, o Conde Bolorento, vocifera:

Sois uns filhos-da-puta muito grandes,
debochados, bundeiros e maricas,
sugadores putíssimos de glandes,
cujos cus, escavados pelas picas,
engoliriam Himalaias e Andes
ou, pelo menos, postes e barricas,
conforme vosso pai vos ensinou
e vossa mãe, que sempre o praticou;
[...]” (ON, Canto 15, 80)

Gregório de Mattos está em boa companhia. RS leva o verbo à loucura da dicção poética.

E assim termina a viagem, derrotado o Conde, rumo ao lugar incerto, “chegar à ilha de Cuba” (Canto 15, 111 e final), por enquanto.

Setembro de 2016


Publicado com autorização.

 

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