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Nicolau Saião, Mariana 6

 

DUAS VOZES DO RECÔNCAVO: DAMÁRIO DA CRUZ E CARINE ARAÚJO

 

(Miguel Carneiro)



A possibilidade
de arriscar
é que nos faz homens.

Vôo perfeito
no espaço que criamos.

Ninguém decide
sobre os passos que evitamos.

Certeza
de que não somos pássaros
e que voamos.

Tristeza
de que não vamos
por medo dos caminhos.

 

(In Todo risco, de Damário da Cruz)

 

 

São muitos os “eus” que povoam o universo lírico do poeta Damário da Cruz, em seu livro Segredo das pipas, publicado sob os auspícios do Banco Capital, única instituição financeira do nosso Estado, a promover o universo das artes na Bahia.

 

Esse belo livro, ilustrado pelo mago Fernando Oberlaender, é pleno de beleza e candura. Nesses tempos em que falar de poesia parece uma temeridade, abraçar o ofício de poeta periga de se enquadrar no universo dos “desvairados”, após o poeta lavrar com o suor do seu rosto o fruto do seu trabalho, o qual poderá ser fatalmente excluído e execrado pela corriola que detém o poder de manipular a cultura desses tristes trópicos, abaixo da Linha do Equador. Basta que se seja poeta de verdade e isto o poeta Cruz o é.

 

Sua criação inclui versos duros que atingem o alvo de toda essa desordem instaurada no país pela gangue palaciana. Para essa gente, poetas só são “os zezés de camargos e lucianos cantando dor de corno”, ou “os gilbertos gils da mediocridade”, que lambem os sujos sacos e aceitam suas malas de dinheiro como forma de patrocínio:

 

Quanto mais eu sonho

com Cachoeira

mais amanheço em Nove York

 

Quem o diz é Damário.

 

Poetas vivos brasileiros não passam de cerca de oito mil num universo em que a totalidade da população brasileira atinge a casa dos cento e oitenta milhões de habitantes. Mas aqueles que com o seu sacrifício adquirem o pão nosso de cada dia com a sua poesia não chegam a quatro ou cinco.

 

No entanto, contrariando esses dados de uma sociedade perversa e neoliberal, está estabelecido na estrada desse campo literário o poeta cachoeirano Damário da Cruz, que há trinta anos faz poesia de primeira plana, alheio à safadeza capitalista.

 

Conheci-o em décadas passadas, quando com Daniel Cruz Filho e meu amigo Márcio Salgado, poeta também lá de Monte Santo, autor de Indizível, lançaram  uma coletânea na Facom, ainda no bairro do Canela, dali o poeta Dámario saiu diplomado.

 

Da Cruz já viu o mundo. Fotógrafo premiado, percorreu vários países captando na lente de seu olhar paisagens e gentes. No Pouso da Palavra, em sua terra natal, mantém um espaço cultural, abrigando conterrâneos e turistas, ávidos por cultura genuína, brasileira. O poeta faz parte da irmandade dos membros do grande templo da linda sacerdotisa Fon, a nossa saudosa e eterna Luiza Gaiaku. E evocar a cidade heróica sem ligá-la a Damário da Cruz, que tanto canta sua aldeia, é cair no lugar comum.

 

Damário é um poeta paradoxal, dentro da síntese de seus versos, indicadores de brilhos e imantação cuja poesia sintética eclode lírica em meu coração.

 

Enfeitem

todos os bregas da Montanha

todos os prostíbulos do Maciel.

 

Ornamentem

de camisinhas de Vênus

e ampolas de antibióticos

os pequenos salões de espera

os grandes quartos de amor.

 

Nas janelas

é preciso estender

as calcinhas perfumadas

de pinga e gozo,

é preciso estender

os lençóis manchados

de sangue e choro.

 

Nas portas

é fundamental afixar

o preço da nossa esperança

e a hora sempre retardada

da comida na mesa posta.

 

(Pequeno Fabrico)

 

O livro Segredo das Pipas, segundo Cristina Rodrigues, “[...] é servido em cinco momentos poéticos que representam, através de unidades temáticas, o processo de exposição da vida explicitada do homem, que empresta essa sua vida e seu corpo para deixar vir à tona a voz do eu-poético”.

Em “O homem revelado” sete poemas abrangem o universo do ser humano em que os sonhos e a realidade se confrontam em recordações, desnudamento e revelações:

 

(Se não for possível

em muitas manhãs)

rouba teu filho

nas tardes de domingo.

 

E na fala mais simples

conta no ouvido pequeno

o segredo das pipas,

os caminhos dos duendes,

as formas das cidades,

o mistério dos amores...

 

E não te preocupes.

 

Sobre as coisas ruins

muitos tentarão

sem êxito ensiná-las.

 

(Segredo das Pipas)

 

Pássaros e pipas alçam vôos, cruzam destinos, levam mensagens povoadas de esperanças:

 

Telefono para o poeta

Daniel Cruz Filho.

 

Sua amada fala

numa voz de sonho:

- Meu amor saiu pela janela

no sol da manhã,

e só retornará em hora duvidosa

quando a liberdade dos meninos

é lavada nos banheiros.

 

(Recado aos pássaros).

 

Extraído desse belo livro, Segredo das Pipas, que mais se parece com um libelo de liberdade, um canto de amor aos homens e à vida, há, na segunda parte, a seção “Do tempo reinscrito”, composta de sete poemas em que a tentativa de condensar o próprio tempo torna-se tarefa para o autor e nos quais de maneira agônica os seus  versos se delineiam como mandados extraídos de uma linha invisível onde o poeta Damário da Cruz tenta condensar o mundo. Dessa parte extraímos o sintético “Cozinha Diária”:

 

Acorda

e prepara a comida

do teu sonho.

 

Teu desejo

não mora longe

e a vida

no teu sonho

te estabelece.

 

 

 

* * *  

 

 

Continuar a falar de poesia nesses tempos de barbárie em nosso país, ceifando milhares de vidas inocentes, é quase uma ousadia. O fazer poético perpassa uma entrega de corpo e alma, uma espécie de renúncia, semelhante ao que Santa Teresa de Ávila (1515 – 1582) cantou: “Nada te inquiete, / nada te assuste; / pois tudo passa, / Deus nunca muda. / A paciência / alcança tudo. / Quem Deus possui / nada lhe falta. / Só Deus nos basta.”.

 

E quando um poeta como Carine Araújo vem a lume, mostrando o seu labor poético, no céu surge mais uma estrela a brilhar. Então, a poesia renasce, muda de tom, cria ritmos, encanta nossos ouvidos e se acomoda em nossos corações combalidos de tantas desesperanças.

 

De Muritiba, no Recôncavo Baiano, região de vates valorosos e ternos ao meu coração: Castro Alves, Mateus e Dadinho, Lui Muritiba, Damário da Cruz, João de Moraes Filho e tantos outros, chega-nos a poesia dessa  moça,  impregnada de um estilo próprio, de um jeito novo de cantar o mundo que aos nossos olhos arde em chamas. O poeta alemão Goethe costumava afirmar que “poemas são beijos que a pessoa dá ao mundo; mas de simples beijos não nascem crianças” . A poesia de Carine Araújo ganhará decerto o mundo, terá muitos filhos publicados, pois tem dicção própria e é encharcada de ternura, adornada de setas de fogo a flechar nossos corações de leitores, ávidos por uma poesia que seja de primeira plana, que tenha marca e se insira, sem pedir licença, na seara da literatura que se produz nessa terrinha, repleta de falsos poetas e fazedores de versos quebrados.

 

A poeta muritibana tateia nessa longa estrada, distribuindo seus versos, tentando mudar a face perversa deste mundo, e que, como a poeta maior da Bahia, Maria da Conceição Paranhos, afirma: “Tebas, tem Cem Portas!”. E, daqui do meu canto, imerso em torvelinho, engolindo sapos ao amanhecer, rogo aos deuses que a poesia de Carine Araújo seja sempre eterna, perene, que se afirme e inunde esse mar da Baía de Todos os Santos com as águas do Rio Paraguaçu,  e que muitas portas se abram e que em breve sua obra seja impressa, distribuída por Pindorama e o mundo, em definitivo, para engrandecer a galeria dos verdadeiros poetas baianos. Saúdo-te, com alegria, minha irmã,  “Bathé buru uaá orê guaracy, guajaná!”. Eis alguns poemas de Carine Araújo:

                                                                                  

 

Poema de aniversário

 

Passei muito tempo acreditando em átomos

Vendo Deus onde não havia

Vendo diabo onde havia deus

Não nasci de nove meses

Nem de sete

Só duas décadas depois

Abro os olhos

Ver todo

Saber tudo

Querer tudo

Um bebê

Me pegam pelo braço

E me esmurram a cara

Choro

Mas estou vivo

 

 

Procissão

 

A imagem vai seguindo

Entre casarões dourado-desbotados

E os milagres

(Pecados?)

Vão ficando no caminho

Como num quadro de Rony Bonn

 

 

Antes da metade

 

Elefantes engaiolados

dentro de uma mente insana

Que trilha caminhos sem saída

Comem lixo desnatado

Xorume light, diet, cool

E por um instante nessa noite

Em meio a delírios desejados

Parece que há vida atrás das paredes

Pulsando como um conto de Poe

 

 

Diadorim ressurrecta

 

Abriu-se a Cachoeira das volúpias

A febre que me esquenta a pele

Já não vem de dentro

Conquista-me pedaços

Bandeirante

Finca no espírito

Ávido por propriedade

Hoje – não – sou dona de mim

 

 

Lugar Nenhum

 

O descanso de tuas palavras

Tem uma luz mansa

De abajur

Frágil, intocada

Luz, no leve perpassar do tempo

Embaraçando cabelos

Desatando mentes

Cá na imensidão do mundo

 

 

 

A rebeldia que nos alimenta

Vem talvez do fel

Derramado pela serpente adâmica

Vem talvez da morte

De heróis que não se sabiam

Vem talvez da dor

De crianças desnascidas

Vem talvez de nós

E dessa vontade incontrolável

De ser

 

 

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