OS NOVOS DEUSES -
fragmento II
(E. M. Cioran)
O politeísmo
corresponde melhor à diversidade de nossas tendências e de nossos
impulsos, aos quais oferece a possibilidade de expressar-se, de
manifestar-se – cada um deles estando livre para buscar, de acordo
com sua natureza, aquele deus que melhor lhe quadra no momento.
Porém como lidar com um deus único? Como afrontá-lo, como
utilizá-lo? Na sua presença, vivemos continuamente sob pressão.
O monoteísmo inibe nossa sensibilidade: aprofunda-nos porque nos
estreita. Um sistema de constrangimentos que nos fornece uma
dimensão interior ao custo do florescimento de nossas forças
constitui-se num bloqueio, impede nossa expansão, tira-nos dos
eixos. Por certo, éramos mais normais quando tínhamos muitos deuses
do que somos agora, com apenas um. Se a saúde é um critério,
que embaraço o monoteísmo!
Sob o regime de
vários deuses, o fervor é compartilhado. Quando se dirige a um deus
somente, ele se concentra, se exacerba e termina por converter-se em
agressão, em fé. A energia já não se dispersa, é inteiramente
focalizada numa direção. O que havia de mais notável no paganismo
era que nele não se fazia nenhuma distinção radical entre acreditar
e não acreditar, entre ter fé e não ter. A fé é uma invenção cristã,
supõe um desequilíbrio tanto no homem quanto em Deus, desequilíbrio
que um diálogo dramático e desordenado estimula. Daí provém o
caráter frenético da nova religião. A antiga, tão mais humana,
permitia a você a possibilidade de escolher entre o deus que você
queria; e, já que não lhe impunha nenhum, ficava a seu critério
inclinar-se para um ou outro. Quanto mais caprichoso você fosse,
mais precisaria mudar de deuses, passar de um para outro, estando
quase certo de encontrar os meios de adorar a todos no curso de uma
única existência. Além do mais, eles eram modestos, queriam somente
respeito: você os saudava, não se ajoelhava diante deles. Eram
idealmente apropriados para o homem cujas contradições não se
resolviam nem podiam resolver-se – para a mente inquieta e
atormentada. Quão afortunado era ele – esse homem –, na sua confusão
itinerante, em poder experimentá-los a todos e poder estar
quase certo de topar com aquele de que mais precisava na ocasião!
Após o triunfo da Cristandade, a liberdade de manobrar entre os
deuses e de escolher algum, ao seu talante, se tornou inconcebível.
Teria algum esteta, exausto mas ainda não inteiramente desgostoso do
paganismo, aderido à nova religião se houvesse adivinhado que esta
se estenderia por tantos séculos? Trocaria o capricho apropriado a
um regime de ídolos intercambiáveis por um culto cujo Deus iria
gozar de uma longevidade tão assustadora?
Ao que parece, o
homem se deu os deuses por uma necessidade de se ver protegido,
garantido – na realidade, por uma gana de sofrer. Desde que
acreditou na sua multiplicidade, abriu espaço para uma liberdade de
escolha, para evasões. Na seqüência, limitando-se a um deus, passou
a ser afligido por um suplemento de amarras e embaraços. Certamente
não há outro animal que se ame e se odeie tanto, até o limite do
vício, e que se daria o luxo de uma sujeição tão pesada. Quanta
crueldade para com nós mesmos – unir forças com o grande Espectro e
fundir o nosso fardo ao Dele! O único Deus torna a vida
irrespirável.
A Cristandade
lançou mão do rigor jurídico dos romanos e das acrobacias
filosóficas dos gregos, não para liberar a mente, mas para
acorrentá-la. E, acorrentando-a, a Cristandade obrigou a mente a se
aprofundar, a descer ao fundo de si mesma. Os dogmas aprisionam-na,
traçam-lhe limites externos que ela não pode ultrapassar de modo
algum. Ao mesmo tempo, deixam a mente livre para explorar seu
universo particular, para escrutinar sua própria vertigem e, a fim
de escapar à tirania das certezas doutrinais, para procurar o ser –
ou o seu equivalente negativo – nos confins de toda sensação.
Experiência da mente enjaulada, o êxtase é, por necessidade, mais
freqüente numa religião autoritária do que numa liberal: isso
acontece porque o êxtase é um salto para a intimidade das
profundezas, um recurso à introversão, uma fuga em direção ao eu.
Não tendo tido,
por tão longo tempo, nenhum refúgio além de Deus, mergulhamos tão
profundamente Nele quanto em nós mesmos (um mergulho que representa
a única exploração autêntica que fizemos em dois mil anos). Sondamos
o Seu abismo e o nosso, erodimos os Seus segredos um por um,
enfraquecemos e comprometemos a Sua substância pela dupla agressão
do conhecimento e da prece. Os antigos não sobrecarregavam seus
deuses: eram demasiado elegantes para aborrecê-los a esse ponto ou
para convertê-los em objeto de estudo. Desde que a transição fatal
da mitologia para a teologia ainda não se fizera, eles nada
conheciam dessa tensão perpétua, presente tanto nos arroubos dos
grandes místicos quanto nas banalidades do catecismo. Quando a terra
se torna sinônimo do impraticável, e quando sentimos que o contato
que nos prende a ela é fisicamente cortado, o remédio não está na fé
ou na negação da fé (ambas expressões da mesma fraqueza), mas
naquele diletantismo pagão, mais precisamente na idéia que
temos dele, na idéia que forjamos.
A desvantagem
mais séria que um cristão encontra é aquela de não ser capaz de
servir conscientemente a mais do que um deus, embora tenha
latitude bastante para aderir, na prática, a muitos (o culto aos
santos!). Uma adesão salutar que permitiu ao politeísmo prosseguir,
apesar de tudo, indiretamente. Sem ela, uma Cristandade
excessivamente pura desembocaria, com certeza, numa esquizofrenia
universal. Com o devido respeito a Tertuliano, a alma é
naturalmente pagã. Qualquer deus, quando responde às nossas
necessidades imediatas, representa para nós um acréscimo de
vitalidade, um estímulo, o que não é o caso quando esse deus nos é
imposto ou quando não corresponde à necessidade. O erro do paganismo
foi não ter aceitado e acumulado muitos deles: morreu por
generosidade e excesso de compreensão – morreu por falta de
instinto.
Se, para vencer
o eu, essa lepra, não nos fiamos em nada mais, a não ser nas aparências,
é impossível não deplorar o recuo de uma religião sem cenas,
sem crises de consciência, sem incitações ao remorso – uma religião
igualmente superficial nos princípios e nas práticas. Na
antiguidade, a filosofia, e não a religião, é que era profunda; na
época moderna, a Cristandade foi a causa única da “profundidade” e
de todas as dilacerações que lhe são inerentes.
São os períodos
que não têm uma fé específica (o helenístico ou o nosso) que se
ocupam em classificar os deuses, enquanto se recusam a dividi-los
entre verdadeiros e falsos. A noção de que todos os deuses valem
alguma coisa – de que cada um vale tanto quanto o outro – é, pelo
contrário, inaceitável nos intervalos em que prevalece o fervor. Não
podemos orar a um deus que é provavelmente verdadeiro. A
prece não se rebaixa com sutilezas nem tolera distinções dentro do
Supremo: mesmo quando duvida, só o faz em nome da verdade. Não
exortamos à nuança. Tudo isso passou a importar depois da
calamidade do monoteísmo. Para a piedade pagã, as coisas eram
diferentes. Em seu Octavius, Minúcio Félix, antes de defender
a posição cristã, faz com que Cecílio, seu representante do
paganismo, diga: “Vemos os deuses nacionais sendo adorados: em
Elêusis, Ceres; na Frigia, Cibele; em Epidauro, Esculápio; na
Caldéia, Baal; na Síria, Astarte; em Tauris, Diana; Mercúrio entre
os gauleses, e em Roma todos os deuses juntos.” E acrescenta, acerca
do deus cristão, o único a não ser aceito: “De onde vem ele, esse
deus único, solitário, derrelito, não reconhecido por nenhuma nação
livre, por nenhum reino...?”
De acordo com um
antigo decreto romano, ninguém deveria adorar exclusivamente deuses
novos ou forasteiros, se eles não fossem admitidos pelo Estado, mais
precisamente pelo Senado, a única instância competente para decidir
quais mereciam ser adotados ou rejeitados. O Deus cristão,
aparecendo na periferia do Império, chegando a Roma por meios
indeclaráveis, cobraria mais tarde uma revanche terrível pelo fato
de ter sido obrigado a entrar na capital mediante fraude.
Uma civilização
é destruída apenas quando seus deuses são destruídos. Os cristãos,
não ousando atacar de frente o Império, emboscaram sua religião.
Deixaram-se perseguir apenas para poder arremeter contra ela de modo
mais efetivo, a fim de satisfazer o seu apetite irrefreável por
execração. Quão miseráveis seriam se ninguém se dignasse a
promovê-los à categoria de vítimas! Tudo no paganismo, inclusive a
tolerância, os exasperava. Fortes em suas certezas, não podiam
entender a resignação à probabilidade, própria do paganismo,
nem a adesão a um culto cujos padres, simples magistrados designados
para as formas perfunctórias do ritual, não impunham a ninguém o
fardo da sinceridade.
Quando nos damos
conta de que a vida só é suportável se podemos mudar de deuses, e de
que o monoteísmo contém em germe todas as formas de tirania,
deixamos de ter pena da velha instituição da escravidão. Era melhor
ser escravo e poder adorar uma forma escolhida de divindade do que
ser “livre” e se confrontar com uma única variedade do divino.
Liberdade é o direito à diferença; plural, postula a
dispersão do absoluto, sua resolução numa poeira de verdades,
igualmente justificadas e provisórias. Há um politeísmo subjacente
na democracia liberal (chamem-no de politeísmo inconsciente);
inversamente, cada regime autoritário compartilha de um monoteísmo
disfarçado. Curiosos os efeitos da lógica monoteísta: um pagão, ao
tornar-se cristão, tendia à intolerância. Melhor naufragar com uma
horda de deuses acomodatícios do que prosperar à sombra de um
déspota! Numa época em que, por falta de conflitos religiosos,
presenciamos os ideológicos, a questão que se coloca para nós é, com
efeito, a mesma que atormentou a antiguidade decadente: como
renunciar a tantos deuses em nome de um? – ressalvado que, no
entanto, o sacrifício que se nos exige se situa num nível inferior,
não mais aquele dos deuses, mas o das opiniões. Tão logo uma
divindade, ou uma doutrina, exige supremacia, a liberdade é
ameaçada. Se vemos um valor supremo na tolerância, então tudo o que
lhe faz violência deve ser considerado como um crime, a começar por
esses empreendimentos de conversão nos quais a Igreja se mantém
inigualável. E, se ela exagerou a gravidade das perseguições a que
foi submetida e inchou absurdamente o número de seus mártires, ela
precisava encobrir seus crimes com pretextos nobres: deixar sem
punição doutrinas perniciosas – não teria sido uma traição àqueles
que se sacrificaram por ela? Assim, foi num espírito de lealdade que
a Igreja se lançou à aniquilação dos “desviados”, e que pôde, depois
de ter sido perseguida por quatro séculos, tornar-se perseguidora ao
longo de quatorze. Esse é o segredo, o milagre da sua
perenidade. Nunca houve mártires vingados com tão sistemática
tenacidade.
Tendo coincidido
o advento da Cristandade com o do Império, certos padres (Eusébio,
entre outros) sustentaram que essa coincidência tinha um significado
profundo: um Deus, um imperador. Na realidade, tratava-se de abolir
os empecilhos nacionais, da possibilidade de circular através de um
vasto estado sem fronteiras, o qual permitia à Cristandade
infiltrar-se, tornar-se audaciosa. Sem essa oportunidade de se
expandir, teria permanecido como uma simples dissidência dentro do
judaísmo, em vez de se tornar uma religião invasora e, o que é pior,
uma religião da propaganda. Todos os meios se justificavam para
recrutar, para reforçar e para expandir até mesmo essas bajulações
diárias cujo aparato era uma ofensa tanto para os pagãos quanto para
os deuses olímpicos. Juliano observa que, de acordo com os
legisladores de outrora, “desde que a vida e a morte diferem
completamente, os atos relativos a uma e à outra devem ser
executados separadamente”. Essa disjunção, os cristãos, em seu
proselitismo fanático, não estavam dispostos a aceitá-la: tinham
consciência da utilidade do cadáver, das vantagens a extrair dele. O
paganismo não elidia a morte, mas tinha o cuidado de não deixá-la à
mostra. Para o paganismo, era um princípio fundamental supor que a
morte não é consoante com o dia claro, que a morte é um insulto à
luz. A morte pertencia à noite e aos deuses infernais. Os galileus
encheram os sepulcros, diz Juliano, que nunca chama Jesus a não ser
de “o morto”. Para os pagãos dignos do nome, a nova superstição
podia parecer apenas uma exploração, um aproveitamento do repulsivo.
Tanto mais amargamente iriam deplorar o progresso que ela estava a
fazer em cada setor. O que Celso não pôde conhecer, mas que Juliano
entendeu perfeitamente, eram os levianos da Cristandade – aqueles
que, incapazes de submeter-se a ela de modo pleno, mesmo assim se
esforçavam para segui-la, temendo que, se se mantivessem à parte,
seriam excluídos do “futuro”. Tanto por oportunismo quanto por medo
da solidão, queriam estar ao lado desses homens “nascidos ontem”,
mas logo chamados a exercer o papel de mestres, de torturadores.
(The New
Gods –
Tradução de Renato Suttana)
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