OS NOVOS DEUSES - fragmento
I
(E. M. Cioran)
Um homem interessado na procissão das
idéias e das crenças irredutíveis achará digno do esforço se deter
por um instante sobre o espetáculo oferecido pelos primeiros séculos
de nossa era: descobrirá aqui o verdadeiro modelo de todos os tipos
de conflito que se encontram, em formas atenuadas, a cada momento da
história. Perfeitamente compreensível: essa é a época em que o homem
odiou mais, crédito que se deve conceder aos cristãos – febris,
intratáveis, especialistas desde o começo na arte da detestação; ao
passo que os pagãos já não podiam se valer de nada além do escárnio.
A agressão é um traço comum aos homens e aos novos deuses.
Se algum monstro de amenidade, ignorante
do tédio, quisesse tornar-se mesmo assim versado no assunto, ou pelo
menos aprender o que ele vale, o método mais simples seria ler
alguns autores eclesiásticos, a começar por Tertuliano, o mais
brilhante de todos, e terminando, digamos, com São Gregório de
Nazianzo, rancoroso mas insípido, cuja oração contra Juliano o
Apóstata nos dá ganas de conversão ao paganismo. Ao imperador
não se concede nenhuma virtude; com uma satisfação que mal
se disfarça, sua morte heróica na Guerra Pérsica é contestada, pois
Gregório alega que Juliano teria sido despachado por “um bárbaro
que, como bufão profissional, acompanhava os exércitos com o intuito
de divertir os soldados, com suas piadas e gracejos, frente às
durezas da guerra”. Nenhuma elegância, nenhuma preocupação em se
tornar digno de tal adversário. O que é imperdoável, no caso do
santo, é que ele conhecera Juliano em Atenas, na época em que,
jovens, ambos freqüentaram as escolas filosóficas de lá.
Nada é mais odioso do que o tom daqueles
que defendem uma causa – que se acha comprometida em aparência, mas
que de fato é a vencedora; daqueles que não podem ocultar seu
deleite ante a idéia do triunfo, nem podem deixar de converter seus
verdadeiros terrores em ameaças. Quando Tertuliano, sardônico e
trêmulo, descreve o Último Julgamento, “o maior de todos os
espetáculos”, como o chama, imagina seu próprio riso ao contemplar
tantos monarcas e deuses “emitindo gemidos pavorosos nas profundezas
do abismo...” Essa insistência em lembrar aos pagãos que eles
estavam perdidos – eles e os seus ídolos – seria capaz de exasperar
até os mais moderados. Uma série de libelos camuflados em tratados,
a apologética cristã representa o acme de um gênero bilioso.
O homem só respira à sombra de
divindades erodidas. Quanto mais nos convencemos disso, mais nos
lembramos, com terror, a nós mesmos que, se tivéssemos vivido no
momento da ascensão da Cristandade, poderíamos ter sucumbido ao seu
fascínio. Os começos de uma religião (tal como os começos de
qualquer coisa) são sempre suspeitos. Só eles, porém, possuem alguma
realidade, só eles são verdadeiros; verdadeiros e
abomináveis. Não assistimos à fundação de um deus – qualquer que
seja ou de onde quer que venha – impunemente. Nem é recente tal
desvantagem: Prometeu já tinha chamado a atenção para ela, vítima
ele próprio de Zeus e da nova gangue do Olimpo.
Muito mais que a perspectiva da
salvação, foi a raiva contra o mundo antigo que se abateu sobre os
cristãos num único impulso destrutivo. Desde que vinham, em sua
maioria, de outras partes, seu acesso de fúria contra Roma é
compreensível. Mas de que espécie de frenesi participava um cidadão
quando se convertia? Menos preparado que aqueles, restava-lhe apenas
um recurso: odiar-se a si mesmo. Sem esse desvio do ódio, no começo
atípico, mas depois contagioso, a Cristandade teria permanecido só
uma seita, limitada a uma clientela estrangeira, capaz apenas de
trocar os antigos deuses por um cadáver cravejado. Que o homem que
se pergunta como teria reagido à mudança de política de Constantino
se coloque no lugar de um partidário da tradição, um pagão orgulhoso
de ser pagão: como compactuar com a Cruz, como tolerar que aquele
símbolo de uma morte desgraçada fosse gravado nos estandartes de
Roma? No entanto tais homens se resignaram a isso, e é difícil para
nós imaginar o cúmulo de derrotas internas de onde brotaria essa resignação. Se, no plano moral, podemos concebê-la como a consumação
de uma crise e assim lhe conceder o status ou a desculpa de
uma conversão, tal resignação aparece como uma traição tão logo a
consideramos do ponto de vista político. Abandonar os deuses que
fizeram Roma seria abandonar a própria Roma, para formar uma aliança
com essa “nova raça de homens nascidos ontem, não tendo país nem
tradição, coligados contra qualquer instituição religiosa e civil,
perseguidos pela lei, universalmente execrados por causa de suas
infâmias, e no entanto gloriando-se dessa execração comum”. A
diatribe de Celso data de 178. Cerca de dois séculos mais tarde,
Juliano escreveria: “Se nos reinados de Tibério ou Cláudio se
encontrar uma única mente distinta que se tenha convertido às idéias
cristãs, considerem-me o maior dos impostores.”
A “nova raça de homens” seria capaz de
tudo para vencer os escrúpulos dos mais cultivados. Como acreditar
nesses novos que estavam surgindo das profundezas mais baixas e
cujos gestos, todos eles, convidavam ao desdém? Pois o caso era: de
que maneira aceitar o Deus daqueles que desprezamos e Que era, além
disso, de manufatura recente? Somente a idade garantia a validade
dos deuses – todos eram tolerados, contanto que não tivessem sido
moldados há pouco. O que se considerava particularmente problemático
era a absoluta novidade do filho: um contemporâneo, um
recém-chegado... Essa figura desestimulante, que nenhum sábio
tinha previsto ou prefigurado, é que “chocava” mais. Seu
aparecimento foi um escândalo que levou quatro séculos para ser
assimilado. O Pai, um velho conhecido, era admitido; por razões
táticas, os cristãos se voltaram para Ele e falaram em Seu nome: não
eram os livros que O celebraram e cujo espírito os Evangelhos
perpetuaram, de acordo com Tertuliano, muitos séculos mais velhos
que os templos, os oráculos, os deuses pagãos? Os apologistas, uma
vez postos a caminho, chegam ao ponto de alegar que Moisés antecede
a queda de Tróia em vários milhares de anos. Tais divagações
destinavam-se a combater o efeito de opiniões como esta, de Celso:
“Afinal, os judeus, muitos séculos atrás, se organizaram numa nação,
estabeleceram leis próprias que conservam ainda hoje. A religião que
seguem, o que quer que valha e o que quer que se diga a seu
respeito, é a religião de seus ancestrais. Permanecendo fiéis a ela,
não fazem mais do que os outros homens, que preservam sempre os
costumes de seu país.”
Sacrificar ao preconceito da antiguidade
era, implicitamente, reconhecer os deuses autóctones como os únicos
deuses legítimos. Os cristãos estavam prontos, por motivos egoístas,
a curvar-se também a esse preconceito, mas não podiam, sem se
destruírem, ir além e adotá-lo totalmente, com todas as suas
conseqüências. Para um Orígenes, os deuses étnicos eram ídolos,
relíquias do politeísmo; São Paulo já os tinha reduzido à categoria
de demônios. O judaísmo considerava-os todos falsos, a não ser um, o
seu próprio. “Seu único erro”, diz Juliano, acerca dos judeus, “é
que mesmo quando procuram satisfazer seu deus, não servem os outros
ao mesmo tempo”. No entanto os elogia pela sua repugnância em seguir
a moda no que diz respeito à religião. “Desprezo a inovação em todas
as coisas e especialmente naquilo que concerne aos deuses” – uma
afirmação que o desacreditou e que foi usada para tachá-lo de
“reacionário”. Mas que “progresso”, pode-se perguntar, a Cristandade
representa em relação ao paganismo? Não existe um “salto
qualitativo” de um deus para o outro, nem de uma civilização para a
outra, e muito menos de uma linguagem para a outra. Quem ousaria
proclamar a superioridade dos escritores cristãos sobre os pagãos?
Mesmo os profetas, conquanto de uma inspiração e de um estilo
diferente daquele dos Padres da Igreja – São Jerônimo o confessa –
produziam aversão no leitor que tivesse retornado a Cícero ou a
Plauto. O “progresso”, ao mesmo tempo, estava encarnado nesses
Padres ilegíveis: então, desviar-se deles era cair na “reação”?
Juliano estava perfeitamente certo em preferir Homero, Tucídides ou
Platão a todos eles. O édito pelo qual proibiu os educadores
cristãos de explicarem os autores gregos tem sido duramente
criticado não apenas pelos seus adversários, mas também pelos seus
admiradores, em todas as épocas. Sem tentar justificá-lo, não se
pode deixar de compreendê-lo. Ele lidava com fanáticos; para obter
seu respeito era preciso, ocasionalmente, exagerar tanto quanto eles
mesmos, emitir algum nonsense em seu favor, ou então o teriam
escarnecido como não mais que um amador. Ele, assim, convida esses
“instrutores” a imitar os escritores que estavam expondo e a
compartilhar as opiniões deles sobre os deuses. “Contudo, se eles
acreditam que esses autores se enganaram quanto ao ponto mais
importante, que vão às igrejas dos galileus para oferecer
comentários sobre Mateus e Lucas!”
Aos olhos dos antigos, quanto mais
deuses você reconhece, melhor você serve a divindade, da qual eles
não são senão os aspectos, as faces. Tentar limitar o seu número era
uma impiedade; suprimi-los todos em favor de um único, um crime. É
desse crime que os cristãos se tornaram culpados. A ironia contra
eles já não era apropriada: o mal que estavam propagando tinha se
espalhado demais. Toda a dureza de Juliano deriva da impossibilidade
de tratá-los levianamente.
(The New
Gods –
Tradução de Renato Suttana)
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