EVERNESS
Só
uma coisa não há: e esta é o olvido.
Deus,
que salva o metal, e salva a escória,
cifra
em Sua profética memória
as
luas que serão e as que têm sido.
Já
tudo fica. A seqüência infinita
de
imagens que entre a aurora e o fim do dia
teu
rosto nos espelhos deposita
e
as que depois ainda deixaria.
E
tudo é só uma parte do diverso
cristal
desta memória: o universo.
Não
têm fim os seus árduos corredores,
e
se fecham as portas ao passares;
e
só quando na noite penetrares,
do
Arquétipo verás os esplendores.
UM
CEGO
Não
sei qual é a face que me mira
quando
miro essa face que há no espelho;
e
desconheço no reflexo o velho
que
o escruta, com silente e exausta ira.
Lento
na sombra, com a mão exploro
meus
traços invisíveis. Um lampejo
me
alcança. O seu cabelo, que entrevejo,
é
todo cinza ou é ainda de ouro.
Repito
que perdi unicamente
a
superfície vã das simples coisas.
Meu
consolo é de Milton e é valente,
porém
penso nas letras e nas rosas.
Penso
que se pudesse ver meu rosto
saberia quem sou
neste sol-posto.
A
CHUVA
A
tarde bruscamente se aclarou,
porque
já cai a chuva minuciosa.
Cai
e caiu. A chuva é só uma coisa
que
o passado por certo freqüentou.
Quem
a escuta cair já recobrou
o
tempo em que a fortuna venturosa
uma
flor lhe mostrou chamada rosa
e
a cor bizarra do que cor tomou.
Esta
chuva que treme sobre os vidros
alegrará
nuns arrabaldes idos
as
negras uvas de uma parra em horto
que
não existe mais. A umedecida
tarde
me traz a voz, a voz querida
de meu pai que
retorna e não é morto.
XADREZ
I
Em
seu grave rincão, os jogadores
as
peças vão movendo. O tabuleiro
retarda-os
até a aurora em seu severo
âmbito,
em que se odeiam duas cores.
Dentro
irradiam mágicos rigores
as
formas: torre homérica, ligeiro
cavalo,
armada rainha, rei postreiro,
oblíquo
bispo e peões agressores.
Quando
esses jogadores tenham ido,
quando
o amplo tempo os haja consumido,
por
certo não terá cessado o rito.
Foi
no Oriente que se armou tal guerra,
cujo
anfiteatro é hoje toda a terra.
Como
aquele outro, este jogo é infinito.
II
Rei
tênue, torto bispo, encarniçada
rainha,
torre direta e peão ladino
por
sobre o negro e o branco do caminho
buscam
e libram a batalha armada.
Desconhecem
que a mão assinalada
do
jogador governa seu destino,
não
sabem que um rigor adamantino
sujeita
seu arbítrio e sua jornada.
Também
o jogador é prisioneiro
(diz-nos
Omar) de um outro tabuleiro
de
negras noites e de brancos dias.
Deus
move o jogador, e este a peleja.
Que
deus por trás de Deus a trama enseja
de
poeira e tempo e sonho e agonias?
O
SUICIDA
Não
restará na noite uma estrela.
Não
restará a noite.
Morrerei,
e comigo a soma
do
intolerável universo.
Apagarei
as pirâmides, as medalhas,
os
continentes e os rostos.
Apagarei
a acumulação do passado.
Transformarei
em pó a história, em pó o pó.
Estou
mirando o último poente.
Ouço
o último pássaro.
Deixo o nada a ninguém.
(Traduções
de Renato Suttana)
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