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Nicolau Saião

 

AS COISAS, CONSIDERADAS COM ÊNFASE – um aspecto da poesia de Mauro Mota*

 

(Wladimir Saldanha)

 

 

A leitura da “Obra Poética” do pernambucano Mauro Mota (Edição da Academia Brasileira de Letras – 2004) revela-nos um autor que soube fazer do pormenor – um guarda-chuva, uma manga de camisa, uma gravata – a pedra-de-toque para a construção de uma linguagem poética própria, onde os objetos que acompanham o homem falam por si, em testemunho de sua vida.

 

Ainda que o vocabulário da lírica moderna tenha incorporado a vida cotidiana, o corriqueiro, a pedra no meio do caminho (Drummond) ou a estampa do sabonete (Bandeira), o caso de Mota nos parece peculiar, pela insistência e pelos efeitos, podendo-se identificar, no recurso, o centro de força de uma dicção própria, consentânea com a natureza elegíaca do autor – que não prescindiu, como tantos, da influência decadentista, como ficará evidente adiante. Seja como for, momentos como esse, em que

 

 

            “Cadeiras balançam

            sem gente, sozinhas.”

 

            (“Assombrações do Recife Velho”)

 

 

... saltam aos olhos de quem perpassa as páginas da “Obra...”, na qual ocorre uma relativa autonomia dos objetos, esta que irá urdir o que se pode colocar como sendo uma poesia de objetos (mas não dos objetos). Obcecado, chega mesmo a compor todo um dos seus melhores sonetos com o recurso da enumeração:

 

 

            “DECLARAÇÃO DOS BENS DE FAMÍLIA

 

            Cadeiras e sofás, consolo e jarra,

            camas e bules, redes e bacias,

            a caixa de charão, o guarda-louça,

            tetéias, mesa, aparador, fruteira,

 

            a cesta de costura, o papagaio,

            a cafeteira, o cromo de parede,

            o jogo de gamão, as urupemas,

            o álbum, o espelho, o candeeiro belga,

 

            alguidares, baús de roupa, esteiras

            de pipiri, a tábua do engomado,

            pilão de milho, o tempo do relógio,

 

            quartinhas, almanaques, tamboretes,

            o santo de família, a lamparina,

            o carneiro Belém e o seu balido.

 

 

Nesta peça, chamamos a atenção para dois elementos – “o tempo do relógio” e o balido final do carneiro Belém, simétricos na posição que ocupam no soneto (os finais dos tercetos) e no sentido que acrescentam ao poema – o de romperem o nexo de uma enumeração de coisas, acrescentando à enfiada uma circunstância humana, o tempo, e uma lembrança auditiva. Espécie de rima semântica, consegue Mota, com isso, o efeito admirável de contaminar o homem das coisas que o acompanham, e fazê-las, ao mesmo tempo, romper em pura e dolorosa sensação humana, num lirismo que arrebenta o visual para devolver à poesia – garantindo ao leitor o efeito de susto, de ser pego como de surpresa – o emocional, recuperado pela memória.

 

Semelhante é a análise de uma simples caixa de costura, onde o poeta, esgotado o arsenal da costureira, acha algo mais:

 

 

            “CAIXA DE COSTURA

 

            O que dorme dentro desta caixa

            vermelha de charão?

            O monograma

            o novelo de lã

            a tesoura corneta

            o lápis faber o desenho

            o passarinho preso no pano

            o carretel de linha bispo

            o papel de alfinetes,

            a agulha a gota de sangue,

            o dedal de prata a memória

            da mão da costureira.

 

 

Aqui como lá, o poeta faz o jogo de esconder do leitor seu verdadeiro foco – a recordação, fundamento mesmo da linguagem lírica. Com o que seus poemas se garantem de certo ludismo essencial, afastando, desde logo, qualquer aproximação com poetas puramente “descritivos”, se é que um dia existiram.

 

“O lápis”, “O candelabro”, “O espelho”, “A gaveta” , “A mesa”, “O paletó”, “Os sapatos”, “A bengala” e este maravilhoso “O guarda-chuva –

 

 

            Meses e meses recolhida e murcha,

            sai de casa, liberta-se da estufa,

            a flor guardada (o guarda-chuva). Agora,

            cresce na mão pluvial, cresce. Na rua,

            sustento o caule de uma grande rosa

            negra, que se abre sobre mim na chuva.

 

 

... são exemplos de poemas em que os objetos vêm já no título, como muitas vezes ocorria entre os parnasianos – mas com a só diferença (mais do que suficiente!) de que, em Mota, a contemplação não se compraz no meramente descritivo, e justamente porque não é contemplação pura e simples, mas recurso de poética.

 

 

UM ELEGÍACO SINGULAR

 

Já no livro de estréia, “Elegias”, encontra-se um poema, antes referido aqui – “Sapatos”, que sinaliza com a técnica que acompanhará Mota em toda a sua produção posterior. As “Elegias”, propriamente, dado certo gosto simbolista pela figura de uma mulher ausente, e certas expressões caras à Escola – “lajes frias”, “reino de sombras”, “mãos... lânguidas” – destoam do mais do livro, onde já sobressai um autor, pelos temas e pela linguagem, receptivo às dicções poéticas do ano em que a obra foi lançada, 1952.

 

Esse ressaibo simbolista, Mota o perderá de todo, escoimando sua produção dos velhos clichês. Talvez seja lícito afirmar, porém, que nunca perdeu a atitude elegíaca, marca da Escola, transpondo-a entretanto para os objetos do cotidiano, no que cruzaria exemplarmente uma tendência das vanguardas com sua natureza decadentista. Substitui a languidez, a frialdade e a penumbra pela textura e pelo volume das coisas – mas o tom elegíaco permanece, como uma flor murcha.

 

Seu poema mais famoso, entretanto, o “Boletim Sentimental da Guerra no Recife”, onde se encontram as duas tendências – o poeta da terra e o lírico, para confluir num poeta social (o texto trata das jovens pobres de Pernambuco que se deixaram engravidar pelos militares americanos na 2ª Guerra) – é livre do recurso; registramos a diferença, entretanto, em justiça ao poeta e ao poema, mas entendemos que este momento em nada compromete a identificação que pretendemos fazer. Os textos construídos sobre acessórios coexistem com passagens como as do “Boletim...”, mas em número significativamente maior.

 

Mais representativo, porém, o igualmente famoso “Morte Sucessiva” dá-nos um Mota inteiro: na visão de que a vida se vai dispersando aos poucos, em pequenas mortes diárias que a compõem, sendo a morte verdadeira apenas a última (“instante derradeiro”, como diz). Ali também comparecem os objetos do cotidiano:

 

 

na jarra azul abrindo,

os ponteiros

como uma pinça

extraindo

as horas felizes do relógio da sala,

não se foram sós, foram levando a tua vida fugitiva.

 

 

Em outras vezes, é simplesmente o poeta da desolação, do olhar que se dirige a uma coisa em busca do vestígio de seu dono. Uma desolação nada piegas – áspera ou enternecida, até rude. E há algo de lúgubre mesmo na rosa do guarda-chuva, rosa negra que “cresce” na mão do poeta. Espreita o rastro humano, registrando sua temporalidade, seu efêmero. Parece comprazer-se em nos lembrar: as coisas ficam. Não é, então, sem certa nota de memento que fala de sapatos, gavetas, bengalas, lápis, caixas de costuras... Cadeiras que balançam “sem gente”.

 

Há nas “Elegias” um verso que diz da “leve calma” que há “no espírito das coisas”. Aí pretendemos ver, a despeito de toda a marca simbolista desta série, um lampejo do Mauro Mota que, depois, se afirmará como chama votiva, modo de ver e constituição de sua linguagem. Há, também, um certo fracionamento da mulher ausente – são “mãos”, “cabelos soltos”, “passos incertos” – que, dentro daquele simbolismo, não se antagonizam com a linguagem dos acessórios: passar da mão à luva, do cabelo ao pente, dos passos ao sapato não será, afinal, tão difícil. Estando, aliás, o poema “Sapatos” na posição de abertura do volume, não se pode crer, entretanto, que sua composição tenha sido anterior à dos sonetos que compõem a série de “Elegias”, já que ali não se vê mais nada de idealizador, evanescente ou lânguido: é um poema que já lida com a memória de forma dura, com uma crueza que bem desmente a “leve calma”, vista na seqüencia das “Elegias”:

 

 

            “Emborcados sob a cama

            ambos caíram de bruços

            como se na madrugada

            contra o assoalho comprimissem

            bocas abertas e mudas

            de inlibertáveis soluços.

 

 

Esta a crueza que o caracteriza; assim, quando se vale do velho recurso da personificação, ou mesmo quando o ultrapassa, com metáforas mais elaboradas, é para provocar, expondo a seu modo a relação homem x coisa, uma espécie de “murro no estômago” do leitor, reação de supresa (des)agradável, de Belo no feio. Desde Baudelaire, ou mesmo antes, a poesia já abriga esse paradoxo aparente, estando a singularidade de Mauro Mota no expressá-lo como voz de sua natureza elegíaca, e somando, à sua maneira, uma nota própria ao lirismo do cotidiano.

 

 

GAVETAS QUE SOLUÇAM

 

No verso famoso de Drummond, são tristes as coisas, “se consideradas sem ênfase”. Em Mota, porém, as coisas são ainda tristes – e com toda a ênfase possível.

 

Ponto máximo de sua técnica, deixamos o leitor com o inesquecível “Leilão”, do último livro de Mota, “Itinerário”. À semelhança dos “Sapatos” do primeiro livro, aqui as gavetas é que “soluçam” – e, para além da cômoda do poema, também as que guardavam a poesia de Mauro Mota... Gavetas ou prateleiras de sebos, até a publicação de sua “Obra”, em 2004.

 

 

            “LEILÃO

 

            - Quanto dão? Quanto dão?

 

            - Quem dá mais?, grita mais o leiloeiro.

 

            - Esta bengala de castão de ouro!

 

            (Onde anda sem levá-lo o dono antigo?)

 

            - Esta arca colonial!

 

            (Falam dedicatórias de retratos,

            falam cartas de amor, a voz trancada.)

 

            - Esta mobília de jacarandá!

 

            (As visitas na sala, o pai, a mãe,

            a irmã, a avó cochila no sofá.)

 

            - Este faqueiro de prata!

 

            (Cruzados os talheres, as mãos cruzadas.)

 

            - Esta cômoda do século XIX!

 

            (Soluçam as gavetas; dentro delas,

            cheiro de roupa branca e de alecrim.)

 

            - Esta louça azul de Macau!

 

            (A fumaça (da sopa?) na terrina.

            Na borda (asa quebrada) desta xícara

            os vestígios dos lábios da menina.)

 

            Quem tira as rosas que a moça bota

            nos jarros de opaline do consolo?

            E a moça presa dentro deste espelho

            do toucador do quarto de dormir?

 

            - Quem dá mais? grita mais o leiloeiro.

 

            Bate o martelo, bate aqui, dói longe.

 

 

 

 

* Mauro Mota nasceu no Recife, em 16 de agosto de 1911 e faleceu em 22 de novembro de 1984. Publicou os seguintes livros de poesia: “Elegias” (1952), “A Tecelã” (1956), “Os Epitáfios” (1959), “O Galo e o Catavento” (1962), “Canto ao Meio” (1964), “Itinerário” (1975), “Pernambucância” ou “Cantos da Comarca e da Memória” (1979) e “Pernambucãncia Dois” (1980), fora antologias. Foi membro da Academia Brasileira de Letras.

 

 

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