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Alberto Lacet, "Jackson's kids portrait"

 

Poemas de W. H. Auden

 

 

MUSÉE DES BEAUX ARTS

 

Eles nunca se enganavam sobre o sofrimento,

Os Velhos Mestres: como entendiam

Bem a sua posição humana; como tem lugar

Enquanto alguém está comendo ou abrindo uma janela ou só a passear

Por aí, como quando os mais velhos estão reverente, apaixonadamente

Esperando pelo miraculoso nascimento,

Sempre haverá crianças que não queriam, especialmente,

Que isso acontecesse, a patinar num lago na orla do mato:

Eles nunca esqueciam

Que até o terrível martírio tem de seguir o seu curso exato

De qualquer modo num canto, nalgum terreiro

Imundo onde os cachorros continuam levando sua vida canina e o cavalo

Do torturador raspa contra uma árvore o seu inocente traseiro.

 

No Ícaro de Brueghel, por exemplo: como tudo o mais se desvia

Tranquilamente do desastre; o camponês com o arado podia

Muito bem ter ouvido o barulho, o grito desamparado,

Mas para ele não era um fracasso importante; o sol brilhou

Como tinha de brilhar sobre as pernas brancas submergindo

Na água verde; e o navio caro e delicado

Que deve ter visto alguma coisa espantosa, um garoto caindo

Do céu, tinha algum lugar para ir e calmamente continuou.

 

 

 

 

ACALANTO

 

Repousa a fronte, meu amor,

Humana em meu braço descrente;

Que o tempo e as febres crestem, varram

Toda a beleza individual

Das crianças ora pensativas,

Porquanto o túmulo revela

O quanto a criança é passageira:

Mas que em meus braços se demore,

Até que o dia se renove,

Quieta, a vivente criatura –

Mortal, culpada, mas para mim

Tão bela, inteiramente bela.

 

Não têm amarras alma e corpo:

Aos amantes, quando se deitam

No seu indulgente e encantado

Declive, absortos no langor

Costumeiro, grave é a visão

Que Vênus do alto lhes envia

De sobre-humana simpatia,

E de esperança e de um amor

Universal, enquanto, abstrata,

Uma interior visão desperta

Em meio aos gelos e aos rochedos

Do eremita a carnal euforia.

 

Como de um sino as vibrações

Quando ressoa a meia-noite,

Fidelidade e segurança

No vento passam, e, pedantes,

Os desvairados do momento

Lançam seu grito aborrecido:

Que do preço todo o montante,

Tal como, tristes, o preveem

Todas as cartas do baralho,

Seja pago; mas desta noite

Nenhum suspiro, pensamento,

Beijo ou olhar seja perdido.

 

Beleza, noite, visão morrem:

Que os ventos da manhã, soprando

Suaves em torno ao teu sonhar,

Mostrem, que ao olho e ao coração

Venha trazer a sua bênção,

Um dia de amplo acolhimento,

E nos baste o mundo mortal:

E te encontrem as tardes secas

Pelas forças involuntárias

Nutrido; e que as noites de insulto

Te deixem ir sob os cuidados

De cada humano sentimento.

 

 

 

 

ADOLESCÊNCIA

 

Da figura materna uma vez lembrado pelos arredores,

Os cumes que ele recorda ficam maiores e maiores:

Com as mais finas penas de desenhar mapas ele se põe ternamente a traçar

Todos os nomes de família, cada qual em seu local familiar.

 

Vagando por uma campina verde, ele passa por águas quietas;

Certamente parece um cisne para as filhas da terra indiscretas,

Curvando uma linda cabeça, cultuando o não-mentir,

“Caro” o bico dos caros na cara concha a rugir.

 

Sob as árvores as fanfarras do verão estavam a tocar;

“Caro menino, seja valente como estas raízes”, ouviu-as proclamar:

Leva as boas novas alegremente para um mundo em perigo,

Está pronto a discutir com qualquer estranho, ele sorri consigo.

 

E, no entanto, esse profeta, voltando para casa quando o dia finda,

Da terra que assim defendeu recebe estranhas boas-vindas:

A banda estruge: “Covarde, covarde”, no seu humano ardor,

A giganta cambaleia para mais perto, grita: “Enganador”.

 

 

 

 

EM MEMÓRIA DE W. B. YEATS

 

(m. jan. 1939)

 

I

 

Ele desapareceu no rigor do inverno:

Os regatos congelavam, os aeroportos quase desertos,

E a neve desfigurava as estátuas públicas;

O mercúrio despencava na boca do dia agonizante.

Os instrumentos que temos concordam, todos,

Que o dia de sua morte foi um dia escuro e frio.

 

Longe da sua moléstia,

Os lobos corriam através das florestas eternamente verdes,

O rio campesino não se deixava tentar pelos atracadouros em voga;

Por línguas lamentosas

A morte do poeta era mantida longe de seus poemas.

 

Mas para ele era o seu último entardecer como ele mesmo,

Um entardecer de enfermeiras e rumores;

As províncias de seu corpo se revoltavam,

As praças de sua mente ficavam desertas,

O silêncio invadia os subúrbios,

Falhava a corrente de seu sentimento: ele se tornava os seus admiradores.

 

Agora, está espalhado entre uma centena de cidades

E totalmente entregue a afeições desconhecidas,

Para encontrar sua alegria em outro tipo de floresta

E ser punido sob um código de consciência estrangeiro.

As palavras de um homem morto

Se modificam nas entranhas dos vivos.

 

Mas na importância e no ruído do amanhã

Quando os especuladores rugem como feras no âmbito da Bolsa,

E os pobres têm os sofrimentos aos quais estão mais ou menos acostumados,

E cada um na cela de si mesmo está meio convencido de sua liberdade,

Alguns milhares pensarão neste dia

Como quem pensa num dia em que se fez alguma coisa ligeiramente inusual.

 

Os instrumentos que temos concordam, todos,

Que o dia de sua morte foi um dia escuro e frio.

 

 

II

 

Você era tolo como nós; seu dom sobreviveu a tudo:

À paróquia das mulheres ricas, à decadência física,

A você mesmo. A louca Irlanda feriu você para a poesia.

Agora, a Irlanda tem quietos a sua loucura e o seu clima,

Pois a poesia não faz acontecer coisa alguma: sobrevive

No vale em que é feita, onde os executivos

Jamais vão querer pisar, corre em direção ao sul

Desde ranchos de isolamento e as atarefadas mágoas,

Cidades cruas em que acreditamos e morremos; sobrevive,

Um jeito de acontecer, uma boca.

 

 

III

 

Recebe, ó Terra, o hóspede honroso:

A William Yeats dá repouso.

Da Irlanda a taça está vazia

Do que houve nela de poesia.

 

No sono mau da escuridão

Ladra da Europa cada cão,

E esperam as nações viventes

De seus ódios entre as correntes;

 

Põe a desgraça intelectual

Em toda face o seu sinal,

E da piedade estão os mares

Duros, gelados nos olhares.

 

Segue, ó poeta, segue e busca

Da noite o fundo que se ofusca,

Com tua voz livre, bravia,

Convoca-nos ainda à alegria;

 

Com o lavrado do teu canto

Converte em vinha o desencanto,

Canta os insucessos humanos

Num arroubo de desenganos;

 

E nos desertos da amargura

Desperta a fonte que nos cura,

E no seu tempo, que os confina,

Aos livres o louvor ensina.

 

 

 

 

NOTURNO

 

Aparecendo sem aviso, a lua

Contra os picos evita se arranhar

E para o céu aos poucos escorrega,

assim como quem sabe o seu lugar.

 

De imediato, me diz meu coração:

“Adora-A, Virgem, Mãe, Musa, Cabeça

Digna de ver, mas Que há de construir-te

Ou destruir-te, conforme lhe apeteça.”

 

E então a minha mente, num reflexo:

“Não me dirás, presumo, que lhe doa

A esse montão estéril de crateras

Quem com quem dorme e quem a quem magoa.”

 

Nesta noite, tal como em muitas outras,

A mais óbvia franqueza vence a rixa,

A minha mente, dura, ousa admitir

Que ambos na força apostam sua ficha.

 

Dado aquilo em que ambos acreditam,

A Deusa tem, por certo, de partir,

E sua majestade é só a máscara

Que um dínamo sem rosto vem cobrir;

 

Mas nenhuma das minhas naturezas

Pode queixar-se se eu for rebaixado

A um reles funcionário cujo sonho

É vasto, sem escrúpulo, encrencado.

 

Supondo, entanto, que meu rosto é real

E não um mito ou máquina que visto,

Devia a lua assemelhar-se a x,

Com feições que eu de fato tenha visto,

 

Como as de meu vizinho, ou uma face –

Não um status, um sexo – como a sua,

Constante para mim, não me importando

Qual o valor que a x eu atribua;

 

Essa efusiva dama, porventura,

Que uns versos seus me veio aqui trazer;

Esse pobre que volta novamente

Em busca de um empréstimo qualquer;

 

Contraimagens, enfim, que balanceiam

Com o que nelas é falta de peso

Meu mundo, esse veículo privado

E os motores inúmeros do Estado.

 

 

 

 

O ANDARILHO

 

É negro o destino e mais fundo que qualquer depressão marinha.

Sobre qualquer homem que caia

Na primavera, flores desejosas do dia aparecendo,

Avalanche desabando, branca neve sobre a face das rochas,

De abandonar sua casa

Nenhuma mão de suave nuvem pode impedi-lo, retido por mulheres;

Mas esse homem sempre vai,

Entre guardadores de lugares, entre árvores da mata,

Estranho para estranhos sobre úmidos mares,

Casas para peixes, água sufocante,

Ou solitário no abatimento como no bate-papo,

Junto aos riachos encrespados,

Um pássaro obcecado, um pássaro inquieto.

 

Lá a cabeça pende para diante, cansada ao anoitecer,

E sonhos com o lar,

Acenando da janela, espalham boas-vindas,

Beijos de esposa sob lençol de solteiro;

Mas despertando vê

Bandos de aves sem nome para ele, vozes através do vestíbulo

De novos homens fazendo outro amor.

 

Salvem-no da hostil captura,

Da salto súbito do tigre numa esquina;

Protejam sua casa,

Sua casa ansiosa onde os dias são contados

Do relâmpago protejam,

Da ruína gradual se espalhando feito mancha;

Convertendo números de vagos para certos,

Tragam alegria, tragam o dia do seu retorno,

Sortudo com o dia se aproximando, com a iminente aurora.

 

 

 

 

VOLTAIRE EM FERNEY

 

Quase feliz agora, ele observava a sua propriedade.

Um exilado que fazia relógios ergueu os olhos ao vê-lo passar

E continuou a trabalhar; onde um asilo se erguia rapidamente

Um carpinteiro levou a mão ao gorro; um empregado veio contar

Que algumas das árvores que plantara prosperavam visivelmente.

Os Alpes fulgiam brancos. Era verão. Ele tinha autoridade.

 

Lá longe, em Paris, onde se ouviam murmurar

Seus inimigos, a dizer que ele era vil, numa alta cadeira

Uma velha cega suspirava pela morte e cartas. Ele escreveria:

“Nada é melhor que a vida.” Mas era? Sim, a canseira

De lutar contra os falsos e desonestos valia

Sempre a pena. Assim também a jardinagem. Civilizar.

 

Engambelando, exprobrando, tramando, mais que todos inteligente,

Numa guerra santa ele guiara as outras crianças

Contra os infames adultos e, como uma criança, fora arguto

E humilde quando havia ocasião para esquivanças

De duas caras ou para o mentir defensivo e resoluto,

Mas esperara pela sua queda, como um camponês paciente.

 

E nunca duvidara, como D’Alambert, de que venceria:

Apenas Pascal era um grande inimigo, os demais

Eram ratos já envenenados; havia muito a ser feito, porém,

E só podia contar consigo e com nenhum outro mais.

O querido Diderot era tolo, mas se esforçava como ninguém;

Rousseau, ele sempre soubera, choramingaria e desistiria.

 

Assim, como uma sentinela, não podia dormir. A noite era cheia de turbação,

Terremotos e excecuções. Ele estaria morto brevemente,

E ainda por toda a Europa havia as amas-secas horríveis,

Doidas para cozer os próprios filhos. Os seus versos, somente,

Poderiam detê-las, talvez: Ele tinha de continuar trabalhando. Impassíveis,

Os astros compunham lá em cima a sua lúcida canção.

 

 

(Traduções de Renato Suttana)

 

 

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