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Nicolau Saião

 

VEJA A CERVEJA

 

(Renato Suttana)

 

Muitos anos de propaganda de cerveja parecem ter entorpecido nossos sentidos. Deve ter havido no mundo alguma época em que não foi assim, mas hoje podemos apenas conjeturar. Talvez os nossos pais ou os nossos avós tenham vivido num tempo em que se podia andar pelas ruas ou entrar nos bares sem ser assediado pela convocação à bebedeira e a seus congêneres. Evidentemente, não queremos supor que não fossem assediados, porém é possível crer que em épocas mais remotas nossos parentes fossem capazes pelo menos de espantar-se. Espantados, quem sabe até reagissem, isto é, se mostrassem menos sensíveis às solicitações. Teria o tempo produzido sobre o público outro efeito além do entorpecimento?

 

Um espectador de televisão que se vê diante de uma propaganda de cerveja ou de outra coisa qualquer tem menos condições de reagir hoje em dia. Como se o hábito, o costume, a verdadeira familiaridade com que os reclames comerciais entraram em nossas vidas nos tivessem deixado mais lentos, menos sagazes para perceber aquilo a que nos querem levar, reagir diante deles vai aos poucos se tornando uma arte, um verdadeiro ofício de especialistas. E não é que isso seja ruim, no sentido mais desagradável do termo – pelo menos, não é que seja ruim para quem promove a divulgação de produtos –, mas é fato que junto com o entorpecimento veio também uma diminuição em nossa capacidade de resposta. Excessivamente estimulados, tornamo-nos cada vez menos capazes de espanto (já que não se trata propriamente de reagir àquilo que a propaganda propõe) – o que, sem dúvida, estará levando os divulgadores a certas situações muito próximas do impasse.

 

Quanto menos o público se espanta, mais urgente se torna a necessidade de procurar soluções, como se a criatividade dos divulgadores tivesse de aumentar na proporção inversa da imaginação dos consumidores. Esse é certamente o maior de todos os perigos, pois uma vez exauridas as forças do público não é possível esperar grande coisa. Entretanto, se os divulgadores insistem no jogo, a insistência mostra não só que os seus negócios dependem de um aumento cada vez mais acentuado de pressão na busca por idéias originais, como também de uma adaptação do público a esse aumento de pressão. Há um limite para isso? De certo modo, a propaganda nos ensinou que sempre se pode agüentar por mais um tempo. Mas também nos mostrou que, quando a pressão ameaça tornar-se insuportável, a saída está do outro lado – daquele lado onde toda pressão se converte em seu oposto, que é a ausência total de pressão ou o esquecimento de que ela um dia existiu.

 

O excesso de familiaridade traz a vantagem de se poder ter sempre a ilusão de que o caminho foi aplainado. Uma das conseqüências é que, muitas vezes, o elemento verdadeiramente original da propaganda se vê empurrado para o fundo, passando a pertencer ao setor das redundâncias e dos subentendidos. O que dizer a esse respeito? De certo modo, a propaganda que leva a originalidade para o campo dos subentendidos vai tomando ultimamente certos ares de protocolo. Pouca gente teria coragem de afirmar que tudo aquilo que vê na televisão, nos jornais ou nos cartazes que são afixados nas paredes dos bares contém, de fato, surpresas para o público. Como se este fosse hoje não apenas um convidado que visita irregularmente algum amigo, mas um verdadeiro parente, a quem já não é necessário apontar o lugar onde deve sentar-se quando entra na casa, a propaganda alcançou, finalmente, aquele ponto em que pode dispensá-lo das surpresas. Ele sabe o que fazer e sabe onde sentar-se, e provavelmente conhecerá a posição de todos os cômodos, mesmo daqueles que só interessam aos moradores da casa ou aos empregados.

 

Mas é correto supor que ele esteja assim tão à vontade nesse ambiente que nem sempre é hospitaleiro? Imaginamos que em algum lugar de tudo isso alguém se sentirá incomodado. Talvez no fundo ainda seja possível até mesmo desconfiar e temer que o excesso de familiaridade seja o melhor caminho para o desastre. Não importa que o jingle da campanha publicitária se conclua com um “ou seja, cerveja”. A conclusão a tirar bem pode ser, antes, a menos óbvia ou a que menos se espera das premissas – obrigando-o a se levantar de um salto e a procurar o caminho da porta. Óbvias em seu aspecto familiar e comezinho, as campanhas conteriam talvez um elemento de incômodo, como uma tábua que, apalpando, descobríssemos de repente escondida debaixo do estofamento – tábua cuja presença só nos restaria suportar.

 

Ocorre que, para perceber tal situação, o público precisa dar seqüência ao raciocínio, tirando as suas próprias conclusões. Seria capaz de fazer isso após tantos anos de entorpecimento? Num certo sentido, sua posição é a de quem está apenas olhando, mas olhar é o mesmo que se comprometer – e quem se compromete não pode fingir que não viu. Na vida atual, a familiaridade e até mesmo uma certa intimidade folgazona que é a da propaganda quando se insinua em nosso modo de ver o mundo e em nosso cotidiano não permitem pensar diferente. Porém falar em cotidiano é ainda um modo impreciso e talvez impróprio de abordar a questão, porque o que está em jogo parece ser uma promessa eterna de que poderemos escapar dele, de que, tornado lugar-comum, um longo feriado se declarou de uma vez por todas em nossas vidas, restando-nos apenas comemorá-lo enquanto bebemos uma cerveja.

 

É provável que nossos pais não tenham conhecido tais coisas. Mas é provável também que, em sua própria época, eles tenham sonhado com elas – à sua maneira, por certo, e sem que ninguém precisasse dizer-lhes isso durante todas as horas do seu dia. Essa é a diferença que os distancia de nós e que, ao olharmos para a nossa época, faz com que nos sintamos ao mesmo tempo desconfortáveis, estranhos e, inexplicavelmente, recompensados.

 

junho de 2007

 

(Leia também Adendos e Espinhos - livro de crônicas de Renato Suttana)

 

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