MENINICE
(Tatiane de Oliveira Gonçalves)
A brisa outonal ainda refrescava toda a
graça de menina, na beirada da janela em que se sentava. Saboreava
um geladinho de cajá, fruta refrescante que ela adorava. Os vizinhos
passavam e cumprimentavam sua meninice balançando as perninhas.
– Onde está mainha? perguntava o seu
Nelson da quitanda.
Outra hora era a Berenice que passava.
– Onde está a comadre Rita? – perguntava
sorridente com os dentes que lhe restavam.
O sol já era forte, quase meio da manhã.
O geladinho pingava sobre o vestidinho de chita surrado pelas
peripécias de menina de roça.
A sua melhor amiga havia viajado para um
interior vizinho a fim de visitar um tio por parte de mãe que andava
meio doente. Só restava o Dô, cujo nome verdadeiro é Adamastor.
Estudavam na mesma escola: Leca, Dô e
ela. As meninas, bem mais atrevidas e inquietas, costumavam chamá-lo
de branquelo, por sua palidez crônica de menino mal alimentado. A
magreza despontava na face ossuda e contrastava com a barriga
avantajada. Aceitava tudo o que elas mandavam. Talvez por ser mais
novo, talvez por ser um menino obediente. Se elas o mandavam subir
na árvore mais alta, o pobre fazia sem que precisassem mandar duas
vezes.
Às vezes as meninas costumavam adotar
política de princesas e exploravam o indefeso garoto.
– Traga-me um copo d’água cheio até a
boca e sem deixar cair uma gota, senão vai voltar e repetir a
tarefa.
E lá ia o Dô cumprir a sua missão. As
meninas eram cruéis, por vezes. O menino se aproximava lentamente
para não deixar cair nenhuma gota, e elas o insultavam.
Na escola não era diferente. O trio
sempre estava metido em confusões e travessuras. E ele fazia a
tarefa de casa das duas.
Jogavam pedras em passarinhos, batiam
nas crianças menores, roubavam as merendas na hora do recreio,
brigavam com os meninos maiores, subiam em árvores, roubavam frutas
no quintal dos outros, pulavam muros, tomavam banhos de rio e
ocupavam-se de quebrar regras.
No final do dia estavam todos vivos,
sujos e contentes por mais um dia que passava.
Dona Rita não sabia mais o que fazer.
Freqüentemente era chamada à escola para ouvir queixas das
professoras e de outras mães. A vizinhança também reclamava.
Mirna estava de férias, sua melhor amiga
viajando, e Dô era sua única companhia.
O geladinho já havia acabado quando Dô
chegou à sua janela.
– Por que não veio ontem, verminose?
Esse era mais um apelido do garoto.
– Mainha ficou passando limão no meu
cabelo, porque tô cheio de piolho.
– Viche! Nem vem passar piolho pra mim,
piolhento!
Mirna não sabia, mas também tinha piolho
e também tinha vermes. Ao que parecia, a mãe de Adamastor era mais
preocupada com essas coisas.
O povo daquela região árida levava uma
vida cheia de privações. Viravam-se como podiam. Dona Rita lavava
roupa de umas senhoras de um bairro mais distante, que beirava a
estrada. Mirna sempre pedia a sua mãe que a levasse em seu trabalho,
mas a mãe nunca a chamava.
– É que eu saio muito cedo. É melhor
você aproveitar as férias, minha filha.
Foi nesse dia que Mirna teve a idéia de
seguir a mãe. Levou o Dô. Viram a casa velha na beira da estrada.
Tinha uma borracharia do lado e, mais adiante, dava para ver um
posto de combustível com alguns caminhões.
– É ali, Dô! Mainha lava a roupa
daquelas moças.
Aproximaram-se do lugar depois que
algumas que estavam do lado de fora já tinham entrado.
– Eu quero ver lá dentro.
– Ih, Mirna, não sei não...
– Você é um maricas mesmo! O que é que
tem?
Mirna apontou para uma árvore bem
próxima de uma janela do segundo andar. A cortina estava aberta.
Adamastor sentiu o mesmo frio na barriga que sempre sentia quando
Mirna esboçava algum plano.
Subiram sorrateiramente na árvore
olhando para ver se alguém os via. Finalmente alcançaram a janela e
viram um quarto com alguns espelhos, uns panos aveludados por cima
de alguns móveis e uma penteadeira cheia de perfumes e enfeites de
mulher. Ficaram detidos em cada detalhe daquele quarto. De repente,
a porta foi aberta e uma mulher entrou fumando e gargalhando. Seu
rosto era pintado e sua roupa brilhava. Puxava um homem de calça
jeans e sem camisa. O homem ria com um sorriso bem estranho.
Começaram a se beijar. Mirna cutucou Adamastor que já nem piscava os
olhos. A mulher fazia uns passos de dança meio estranhos e tirou a
blusa, ficando somente de sutiã. Ficaram se agarrando de maneira
estranha. Mirna tentou chegar mais para a frente para ver melhor. O
galho da árvore que estava sustentando os dois não resistiu ao peso
e, num estrondo, caiu com os dois batendo fortemente na janela do
quarto que olhavam.
Não conseguiram levantar para correr e
foram pegos em flagrante. As mulheres estavam em volta deles, quando
uma com ares de chefe chegou. Estava toda pintada com uma blusa
decotada vermelha. Também fumava e usava saia curta. Mirna, que até
então olhava para baixo, reconheceu a voz de sua mãe.
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