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SORRINDO PARA O
DESASTRE
(Renato Suttana)
Políticos apreciam sorrir para as câmeras fotográficas.
Quando os vemos sorrir, não temos outra impressão senão
a de que, não nos dando jamais aquilo que esperamos
deles, podem ao menos nos devolver alguma coisa daquilo
que lhes pagamos, na forma da satisfação — mesmo breve —
de ver uma boca sorridente. Há, claro, às vezes, uma
grande inconveniência em sorrir — e todos já nos
deparamos com um tipo de situação na qual um sorriso nos
parece despropositado (tal como acontece nos funerais,
quando alguém deixa escapar uma gargalhada, e também é
imensamente inadequado sorrir diante dos moribundos).
Ora, quando sorriem, os políticos parecem estar a nos
dizer não apenas que a vida vai muito bem para eles
(isto é, que ela anda a lhes sorrir a três por dois),
como também que a nossa poderá se tornar excelente caso
confiemos neles — coisa que nunca acontece, mas não
temos opção senão confiar. A outra mensagem que parecem
nos endereçar é que, afinal, tudo é de fato muito
engraçado e até passível de risadas, se não formos
mal-humorados. Afinal, se não sorrimos é porque não
estamos entendendo bem a situação, seja ela qual for.
Os políticos sorriem como se nos dissessem que
finalmente chegaram lá. Ou, pelo menos, estão a nos
sugerir as vantagens de chegar (ou tentar). Sim, sempre
vale a pena. Nesse aspecto, são como os atletas, que
geralmente sorriem ao final das competições, quando saem
vencedores ou, se não saem, quando se julgam
bem-sucedidos. Já alguns políticos sorriem por
antecipação: os panfletos que distribuem na véspera das
eleições, estampando as suas fotos sorridentes, sugerem
que haverá muita ocasião para rirmos depois do pleito,
caso digitemos corretamente os números na urna
eletrônica. Não duvidamos de que haverá mesmo razões
para rir, pelo menos para alguns, porque nem todos
acharão graça. Há uma certa verdade nesses sorrisos.
Diríamos até: há uma certa franqueza; e a bonomia é a
regra. O sorriso é um elemento de contágio: vamos
sorrindo para a glória ou para o desastre, embora
estejamos sérios diante da urna. Votamos com seriedade,
por ocasião das eleições (uma seriedade fúnebre, seria o
caso de dizer), em indivíduos sorridentes, mesmo sem
depositarmos neles esperanças mais sérias. Estamos
imbuídos, ali, de uma esperança de que as coisas não
podem piorar — e isso justifica um sorriso, mesmo
discreto. Mas os indivíduos em quem depositamos a nossa
confiança estão realmente sorrindo. Para eles não se
trata somente de um sorriso, um esgar de canto de lábio,
como se diz: trata-se de sorrir para a vida, para o
futuro e principalmente para o eleitor que foi lá sem
sorrir — e que talvez não terá razões para rir no futuro
(mesmo se as tiver, num certo sentido).
O cidadão certamente não acha graça. Mas nem por isso
deixa de eleger comediantes para os cargos públicos, e
atores, e contadores de anedotas. Afinal há atores que
não riem e mesmo assim são bons políticos, assim como há
comediantes. O mesmo se diga dos outros (esses que
costumam perder a graça ao se verem sentados naquelas
cadeiras), e dos escritores também — e de todos nós que,
rindo ou chorando, aspiramos a exercer alguma influência
nesses meios. Pior seria se nos dissessem que, sem um
bom par de gargalhadas, não poderíamos chegar lá. Todos
queremos ir e todos queremos rir de algum modo — e a
isso se chama democracia; e não só os políticos têm esse
direito. O riso é farto, livre e bem distribuído, por
mais que pretendam nos convencer do contrário. Talvez
por isso os políticos riam mais: riem para nos lembrar
também que, mesmo soterrados pela catástrofe, nosso
direito continuou garantido ou permaneceu intacto. Temos
portanto de reivindicá-lo, embora continuemos taciturnos
e relutantes em ir sorrindo às urnas. Não há motivos,
continuamos a pensar, e é o que nos faz cidadãos: esta
incapacidade de ver o lado divertido das coisas.
Paciência. O homem do panfleto sorrirá por nós, e sempre
haverá a expectativa de que quem rir por último rirá
melhor — embora isso nunca tenha sido provado.
No entanto o eleitor sorri quando ouve dizer que fulano
ou sicrano foi dar na cadeia. O sorriso será mais largo
quanto maior for a votação que fulano ou sicrano
obtiveram na eleição. Ele — o eleitor — não pensa
evidentemente que, a cada vez que isso acontece, é uma
parte dele mesmo que vai para trás das grades. É uma
situação pouco divertida, diga-se de passagem, e há mais
motivos para chorar que para rir, mas a natureza dos
homens é incerta. Mais prático seria se olhássemos
melhor antes de contribuirmos para que fulano ou sicrano
chegassem lá e, eventualmente, fossem dar com os
costados no xilindró; porém é como se disse aqui: a
natureza dos homens é incerta. Talvez no fundo tenhamos
um desejo oculto, subconsciente, de irmos juntos como
eles para lá também, nem que seja para ver como são as
coisas; e pode ser que esse modo extravagante de pensar
influencie as nossas escolhas. Não sabemos. Se vamos
taciturnos às urnas (às vezes até carrancudos), é porque
temos de algum modo uma premonição. Pensar que esteja
lá, naquela cabine, formatado em algarismos, o destino
de alguém ou o nosso próprio destino nos deixa
mal-humorados e, por conseguinte, pouco propensos às
gargalhadas. E entendemos que cedo ou tarde tudo acabará
mesmo é na polícia. Assim o ciclo recomeçará.
O atual presidente do brasil é um indivíduo sorridente.
Exceto quando se perfila diante de coronéis e generais —
ocasiões em que se finge de sério (atitude que lhe dá um
aspecto realmente cômico) —, ele ri às bandeiras
despregadas. Ri, por exemplo, das piadas tolas que ele
mesmo conta, tresandando a preconceitos mais velhos que
os nossos avós; e ri de outras coisas que provavelmente
o fazem sentir que a vida vale a pena — embora não para
todos. Este é, suspeitamos, o grande diferencial
(palavra que em si carece de graça): sorrir ou gargalhar
quando todos estão sérios, tentar parecer engraçado
quando não há estímulo para tanto, exceto mesmo a
tentativa de parecer engraçado, embora tudo em volta
suscite somente pensamentos fúnebres. Em geral, tais
coisas acabam em desastre, mas aqui, parece, se trata
mesmo de ir do desastre — senão que de rir para ele. É o
que essas grandes risadas nos fazem pensar, com os seus
cacarejos, seus regougos lembrando um pouco os das aves,
se é que não se assemelham a soluços ou aos ofegos de
quem engasga com algum alimento — mesmo sendo esse
alimento a coisa mais rala do mundo, tão rala quanto a
destreza verbal ou o vocabulário de quem com ela se
compraz.
Dirão que o governo é, de fato, risível. Provavelmente
sim. E as risadas do presidente teriam a ver com isso
mesmo, podendo ser que ele esteja a rir de si próprio.
Nunca se sabe. Também é o caso de reconhecer que não há
muito do que rir atualmente — em todos os setores —, a
não ser que achemos graça no desemprego, no colapso do
serviço público, na pandemia em geral com o seu cordão
interminável de mortos. Para tudo isso jamais nos
ocorreria sorrir. No entanto podemos imaginar outra
realidade na qual o presidente tivesse mais o que fazer
além de andar por aí fingindo simpatia, fazendo troça ou
bancando o comediante. Ora, é preciso evitar o desastre,
e não apenas rir dele. Esperemos que o povo tenha mais
motivos para rir no futuro — se é de fato os terá —, e
que esse riso seja um que realmente vale a pena.
Agosto de 2021
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