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Nuno de Matos Duarte

 

NINGUÉM PENSAVA

 

(Sephi Alter)

 

É incrível, uma pessoa acordar de manhã, ver-se ao espelho e estranhar. Quer dizer, não conhecer a cara no espelho. Nunca ter visto aquela cara na vida. Nem mais gorda nem mais magra, nem mais nova nem mais velha. Poder-se-ia entender facilmente se a tivesse visto mais nova e agora a visse mais velha; uma pessoa envelhece, a cara modifica-se, claro, e com a idade o rosto vai sendo outro mas não se trata disso. Trata-se de uma pessoa acordar de manhã, olhar para o espelho e nunca ter visto aquela cara. No álbum de fotografias há o pai de calções ao lado de um cavalo de cartão pintado, depois no liceu de capa e batina e por aí fora, o casamento, aquela noiva bonita, a mãe, e depois os filhos, sim, os filhos; eu. O rosto do pai mudando com o tempo mas sempre reconhecível na mesma pessoa, o mesmo rosto na criança e no velho, a variar sobre o mesmo tema que nunca aparece, a pessoa escondida deixando reconhecer a mudança de cara da mesma cara. Agora isto de uma pessoa, peço desculpa, deveria dizer: «eu» em vez deste circunlóquio de uma pessoa praqui e uma pessoa prali, mas o problema é que a história do espelho não deixa ninguém tranquilo com a primeira pessoa que aparece e sei lá se é comigo; uma pessoa olha para o espelho e não conhece a cara de lado nenhum; como é que há-de saber se aquela segunda cara é da primeira pessoa e não de uma outra qualquer desconhecida e terceira? Uma pessoa não conhece a cara no espelho, nem sabe se tem vontade de aprofundar relações com ela. Não se conhece. Para já, a cara não inspira lá muita confiança, cara de poucos amigos, poder-se-ia jurar que se trata de cara de nenhum amigo. Uma cara sem amigos. Como é que se pode confiar numa cara sem amigos. Grande esforço, este de conjugar verbos na primeira pessoa para ver se quem escreve não se esvai, mas em vão, com a história do espelho a reflectir sobre o que possa ter acontecido.

 

Foram muitos anos sem olhar para o espelho. Ana continuou a viver na aldeia cada vez mais só. A aldeia cada vez mais só e Ana cada vez mais só e sem rosto pela frente. A aldeia nunca olhava para ela, aproximava-se cada vez mais de si, acercava-se de ser um sítio e como é sabido os sítios desviam o olhar quando olhamos para eles. Os animais não desviam o olhar mas também não gostam que os olhemos e às vezes mordem, a meio caminho entre os sítios e as gentes. Mas  lá se foram todos excepto os lagartos e Ana acabou por ficar com os olhos virados para uma pergunta que nunca mais dizia o que quer que fosse. Alimentava-se de fruta e dos lagartos sem olhar para eles. Sem olhar para os lagartos, olhava a fruta, comia a fruta, não olhava os lagartos e comia-os fritos à moda da China. Os lagartos pareciam nunca olhar para nada. Apenas viam o que tinham de ver, sem olhar. Ficavam fechados na evidência e Ana fritava-os à moda da China. Não sobravam cobras na aldeia. Só lagartos videntes, fritos e fruta sem olhos. Um dia veio um homem, Ana olhou para ele e viu-lhe só metade do olhar, mas era um homem sim, sim sou eu. Não me reconheces? E Ana que já não estava à espera de nada de olhos ou meios olhos na solidão daquele sítio viajou pela memória e encontrou o tema escondido no rosto do homem. És Vasco, ninguém sabe donde vens e só vens e só vais, o que é que aconteceu ao teu olho? Não queres provar os meus lagartos fritos? E o homem, mesmo só com um olho respondeu que sim. Mas apenas comeu a fruta . Podíamos ir até à praia, Ana, fica muito perto. Atravessaram uma longa mata. A praia estava cheia de nudezas, o sol batia-lhes na pele e provocava reflexos terríveis. Aos olhos de Ana pareciam não olhar para nada, pareciam fechadas na evidência. Teve uma grande vontade de fritar aquilo tudo à moda da China. Depois olhou para o mar, bebeu, nunca tinha provado tanta lágrima e veio-lhe uma tristeza imensa, o homem já não se distinguia das nudezas e Ana pensou que era preciso ser grego para confundir aquelas lágrimas azuis com um riso sem número a grande amargura azul e voltou para a aldeia sem olhar para ele que nunca mais voltou.

 

 

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