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NINGUÉM
PENSAVA
(Sephi
Alter)
É
incrível, uma pessoa acordar de manhã, ver-se ao espelho e estranhar. Quer
dizer, não conhecer a cara no espelho. Nunca ter visto aquela cara na vida.
Nem mais gorda nem mais magra, nem mais nova nem mais velha. Poder-se-ia
entender facilmente se a tivesse visto mais nova e agora a visse mais velha;
uma pessoa envelhece, a cara modifica-se, claro, e com a idade o rosto vai
sendo outro mas não se trata disso. Trata-se de uma pessoa acordar de manhã,
olhar para o espelho e nunca ter visto aquela cara. No álbum de fotografias
há o pai de calções ao lado de um cavalo de cartão pintado, depois no
liceu de capa e batina e por aí fora, o casamento, aquela noiva bonita, a mãe,
e depois os filhos, sim, os filhos; eu. O rosto do pai mudando com o tempo
mas sempre reconhecível na mesma pessoa, o mesmo rosto na criança e no
velho, a variar sobre o mesmo tema que nunca aparece, a pessoa escondida
deixando reconhecer a mudança de cara da mesma cara. Agora isto de uma
pessoa, peço desculpa, deveria dizer: «eu» em vez deste circunlóquio de
uma pessoa praqui e uma pessoa prali, mas o problema é que a história do
espelho não deixa ninguém tranquilo com a primeira pessoa que aparece e
sei lá se é comigo; uma pessoa olha para o espelho e não conhece a cara
de lado nenhum; como é que há-de saber se aquela segunda cara é da
primeira pessoa e não de uma outra qualquer desconhecida e terceira? Uma
pessoa não conhece a cara no espelho, nem sabe se tem vontade de aprofundar
relações com ela. Não se conhece. Para já, a cara não inspira lá muita
confiança, cara de poucos amigos, poder-se-ia jurar que se trata de cara de
nenhum amigo. Uma cara sem amigos. Como é que se pode confiar numa cara sem
amigos. Grande esforço, este de conjugar verbos na primeira pessoa para ver
se quem escreve não se esvai, mas em vão, com a história do espelho a
reflectir sobre o que possa ter acontecido.
Foram
muitos anos sem olhar para o espelho. Ana continuou a viver na aldeia cada
vez mais só. A aldeia cada vez mais só e Ana cada vez mais só e sem rosto
pela frente. A aldeia nunca olhava para ela, aproximava-se cada vez mais de
si, acercava-se de ser um sítio e como é sabido os sítios desviam o olhar
quando olhamos para eles. Os animais não desviam o olhar mas também não
gostam que os olhemos e às vezes mordem, a meio caminho entre os sítios e
as gentes. Mas lá se foram
todos excepto os lagartos e Ana acabou por ficar com os olhos virados para
uma pergunta que nunca mais dizia o que quer que fosse. Alimentava-se de
fruta e dos lagartos sem olhar para eles. Sem olhar para os lagartos, olhava
a fruta, comia a fruta, não olhava os lagartos e comia-os fritos à moda da
China. Os lagartos pareciam nunca olhar para nada. Apenas viam o que tinham
de ver, sem olhar. Ficavam fechados na evidência e Ana fritava-os à moda
da China. Não sobravam cobras na aldeia. Só lagartos videntes, fritos e
fruta sem olhos. Um dia veio um homem, Ana olhou para ele e viu-lhe só
metade do olhar, mas era um homem sim, sim sou eu. Não me reconheces? E Ana
que já não estava à espera de nada de olhos ou meios olhos na solidão
daquele sítio viajou pela memória e encontrou o tema escondido no rosto do
homem. És Vasco, ninguém sabe donde vens e só vens e só vais, o que é
que aconteceu ao teu olho? Não queres provar os meus lagartos fritos? E o
homem, mesmo só com um olho respondeu que sim. Mas apenas comeu a fruta .
Podíamos ir até à praia, Ana, fica muito perto. Atravessaram uma longa
mata. A praia estava cheia de nudezas, o sol batia-lhes na pele e provocava
reflexos terríveis. Aos olhos de Ana pareciam não olhar para nada,
pareciam fechadas na evidência. Teve uma grande vontade de fritar aquilo
tudo à moda da China. Depois olhou para o mar, bebeu, nunca tinha provado
tanta lágrima e veio-lhe uma tristeza imensa, o homem já não se
distinguia das nudezas e Ana pensou que era preciso ser grego para confundir
aquelas lágrimas azuis com um riso sem número a grande amargura azul e
voltou para a aldeia sem olhar para ele que nunca mais voltou.
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