A
POESIA DE EURICO ALVES BOAVENTURA
ou
a revolução às avessas
(Silvério
Duque*)
ao
poeta Eduardo Kruschewsky, por seu ativismo.
Et
sensi, expertus sum non esse mirum
quod
palato non sano poena est et panis,
qui
sano suavis est, et oculis ægris odiosa lux,
quæ
puris amabilis.
(Santo
AGOSTINHO)
No
ano que passou, o romance Vidas secas, do alagoano de Quebrângulo, Graciliano Ramos,
completou 70 anos, merecidamente festejado como uma das maiores
obras da história da Literatura Brasileira. Graciliano encontra-se
no centro de uma tendência literária que se divide,
historicamente, entre a celebração e o olhar depreciativo – o
Regionalismo; que, desde o exotismo romântico de José de Alencar,
e, não totalmente, de Visconde de Taunay, ao quase desprezo de
autores, tanto já veteranos, como João Ubaldo Ribeiro e Antônio
Torres, a contemporâneos de igual qualidade, tais quais Milton
Hatoum, José Lins Passos e Ronaldo Correa, acusando tal tendência
de ser uma forte variante de “beletrismo estético”, sofre
severo bombardeio pejorativo.
O
Regionalismo (e entenda-se aqui toda literatura que, desde a segunda
metade do século XIX, se direciona para o interior geográfico do
Brasil, apresentando uma série de aspectos muito próprios das
comunidades afastadas dos grandes centros urbanos, que vão desde o
modo como declinam a minudências na descrição de dados locais, à
maneira como incorporam certos maneirismos linguísticos), à
revelia de seus detratores, é responsável por muitas das melhores
obras de nossa Literatura, além de ser o pioneiro no desbravamento
cultural de regiões, até meados do século XX, desconhecidas do
grande público leitor, como o Sertão do Nordeste, os Pampas gaúchos,
os canaviais próximos ao litoral nordestino, a região cacaueira da
Bahia ou a Amazônia; e isso se dá, ao mesmo tempo, pelo já citado
exotismo de alguns românticos, ou, através do realismo profundo,
aliado a uma verdadeira preocupação político-social e histórico-cultural,
propostos, já no fim do século XIX, por Franklin Távora, em seu célebre
O Cabeleira.
Com
a geração neo-realista de 1930, o Regionalismo atingirá seu
apogeu, através de obras de indiscutível valor literário, como o
já citado Vidas secas, além
dos antológicos Fogo morto,
de José Lins do Rêgo, Gabriela,
de Jorge Amado, O Tempo e o
Vento, de Érico Veríssimo, A
Bagaceira, de José Américo de Almeida... Já o que me parece
ser muito pouco comentado, inclusive nos livros didáticos que
chegam às mãos de milhões de alunos de todo o País, com respeito
ao Regionalismo, é a grande participação que a Poesia assume
nesse contexto; até porque, a linguagem poética, extremamente
diversa e subjetiva – abrindo-se a infinitas possibilidades de
interpretação, e, inclusive, a péssimas interpretações –, por
mais que muitos a queiram antilírica e objetiva, não se limitaria
totalmente a quaisquer paradigmas, por mais que os autores se
dedicassem a tamanha proeza. Cabe dizer aqui, no entanto, que,
alguns, tais como João Cabral de Melo Neto, Ascenso Ferreira,
Alberto da Cunha Melo, tornaram-se famosos por trazer, à poesia, as
mesmas propriedades presentes nos romances ditos regionais. E o tão
desconhecido do grande público, quanto notável em suas aptidões
de poeta, o baiano, de Feira de Santana, Eurico Alves Boaventura,
que, neste ano, completa seu primeiro centenário, e de quem recolho
um dos melhores exemplos de uma poesia no mais autêntico e perfeito
sentido do termo Regionalismo:
Há uma douçura nos longes de
um azul discreto.
A manhã desce pela serra,
uma doce, suave manhã adolescente.
Há um gosto de mulher nua pelo ar úmido de luz.
E as longas estradas esquecem-se de si mesmas,
numa indolência vaga, indefinida.
Mugidos de reses nos currais perto da vida adormecida.
Os meus pulmões cansados de civilização,
agora gritam como cabritos ágeis e vadios,
bebendo o ar puro da manhã de sol,
quando vem este perfume de rosa-amélia dos quintais abertos.
Nem anúncios de jornais, nem estrídulos de carros,
nem o drama angustioso de mocinhas para o trabalho,
nem o tédio bom das boemias doiradas, nem o rumor,
da vida encantadora da cidade, nada, nada...
A vila é um compêndio natural de moral e probidade
que vive da ignorância de viver, que é a felicidade afinal.
Manhã pura.
Salpicada de orvalho, atarantada, suja,
passa na douce manhã vilarenga, numa auréola de mosquitos,
a doidinha trazendo no chapéu braçadas de malua veludosa,
para lavar a louça das casas abastadas da vila.
Olho as estradas. Penso nas lindas mulheres que adormecem ainda,
lá pelas cidades grandes, depois das reuniões veladas.
Um juiz, para a vila pacata, não deve
nunca ter pensamentos assim. Comprometê-los-ão tais pensamentos.
* * *
Os caminhos perdem-se na boca escancarada do céu,
deitado sobre o horizonte lá longe...
E, na manhã doce como amora madura,
a pequena vilazinha, sem ninguém, descuidada, ressoa.
I
Meu
primeiro contato com a poesia de Eurico Alves Boaventura não
aconteceu de uma forma, diga-se, comum... diria melhor, deu-se de
uma maneira inusitada, repleta de grande perplexidade, como,
comumente, se dão as grandes descobertas.
A
pouco mais de 30 km
de distância de Feira de Santana, para quem segue rumo ao norte da
Bahia pela rodovia BR 324, encontra-se, aos pés de um intrépido quão
majestoso inselberg, tão grande e magnífico quanto a Serra de São
José das Itapororocas que enchia de esplendor e susto o jovem
Eurico, a sobrepor-se sobre aquele pedaço de agreste nordestino,
encontra-se o município de Tanquinho, onde morei por quase dez anos
e, por lá, vivi alguns dos melhores e mais instrutivos anos de
minha infância e pré-adolescência, num ambiente muito semelhante
ao qual nascera o poeta feirense. Lá, numa praça imediata aos portões
da cidade e um pouco atípica para os “padrões
interioranos", que o tempo e descaso, até então, não
consumiram de toda, se é possível ler, em letras garrafais, as
seguintes palavras:
VÊ-SE
QUE,
EM TODA PARTE
,
POR
ONDE SE OUVIU UM ABOIO VESPERTINO,
PARA
O REPASTO RUDE DE UMA TROPA,
QUE
SE ACENDEU A TREMPE,
CAIU
A SEMENTE DE UMA CIDADE
OU
VILA SERTANEJA.
e,
onde, um pouco abaixo, também, se lê:
Eurico
Alves Boaventura
Li,
àquele tempo, estas palavras, pouco delas entendi, e nada,
absolutamente nada, sabia de seu autor, além do nome que, à parede
da praça, ali, se escrevia. Em minha mente e coração de criança,
todavia, uma forte curiosidade se me fazia inquieta: como, mesmo sem
entender direito uma frase ou seu propósito, poderia saber existir,
dentro dela, beleza e intento? É-me praticamente impossível
descrever este estranhamento, mesmo se passado tanto tempo:
primeiro, pela minha ignorância de menino; segundo, pelo encanto
que, dela, emanava. Por menos que eu fizesse ideia do significado de
algumas de suas palavras, e menos ainda de seu propósito, era óbvio
que o seu autor falava de coisas de meu convívio, pois àquela época,
eu podia precisar de um dicionário (o “Pai dos Sábios”) para
descobrir o que queriam dizer trempe e repasto, mas vila e sertaneja
eu sabia, e as vivia muito bem; o que eu não poderia saber era como
dizeres, aparentemente, tão simples e, até então,
despropositados, traziam-me uma inquietude comum apenas àqueles que
se põem diante do Mistério e da Graça; e, por mais inútil que me
fosse abordar as mais velhas e distintas pessoas daquele lugar, na
busca de uma explicação para aquelas palavras ou, pelo menos, o
porquê de elas, ali, se encontrarem, sabia que nelas se encerravam
coisas importantes, história e estórias diversas, muitos e muitos
sentidos...
(Nunca
mais li esta frase e nem sei se, realmente, a transcrevi
integralmente, pois há anos não vou àquela cidadezinha e, como
tantas coisas que por lá vi, vivi e deixei, ela mora, quase que de
favor, em minha modesta e já cansada memória.)
Anos
mais tarde, solitário sobre uma das mesas da Universidade onde
estudei e me formei, eis um pequeno livro cinza, de capa simplória
e mal diagramada, onde lera: POESIA e, um pouco acima, em diminutos
caracteres azuis, eurico alves,
impresso pela Fundação das Artes e Empresa Gráfica da Bahia e
trazia a organização dos textos, a pesquisa, a seleção dos
poemas e as notas por Maria Eugênia Boaventura, que, mais tarde
viria a saber, era uma das filhas do poeta, a qual, através de um
árduo e admirável trabalho de pesquisa, “garimpara” uma grande
quantidade de periódicos, manuscritos e correspondências, num
“processo bastante pessoal”, como ela mesma afirma na nota à
edição, organizou esta obra, levando sempre em conta o
planejamento do próprio pai, que, por uma esquisitice ou outra,
nunca publicou, em vida, um único livro de poemas, o que não
impediu que tamanha tarefa não tivesse suas compensações, pois,
particularmente, não conheço outro trabalho sobre Eurico Alves
Boaventura que apresente melhor seleção, nem maior
representatividade para seus poemas, e é exatamente ele, e só ele,
que me guia à composição destas páginas... Ah, Santo Agostinho,
o livro estava lá; tomei-o e li.
Epifanias
à parte, não precisei mais do que uma leitura de seus poemas para
saber que, naquele livrinho, encontrava-se os versos de um dos
melhores poetas dos tantos que li e uma das minhas mais inventivas
influências. Foi de imediato que reconheci e admirei a beleza de
vocábulos simples e de locuções que me eram tão costumeiras, e
de rever, numa tão agradável poesia, uma infância, uma vivência
e uma realidade que eu, também, experimentara, embora o poeta tenha
morrido quatro anos antes de eu nascer, e, quase um século,
separasse o nosso tempo de travessuras; uma realidade composta de
uma cidade grande, tumultuada e espantosa que, a não podendo
entender ou suportar, abandona-a para mergulhar num mundo
interiorano, sentimental, melancólico, repleto de estórias, tradições,
lendas, vaqueiros devidamente ornados, pequenas praças, caatingas,
velhos e novos solares ora pomposos ou abandonados, bons e antigos hábitos,
tranquilas capelas, igrejas suntuosa, fé verdadeira e inominável,
pessoas alegres ou envoltas em sua solidão e saudades, um
perturbado desejo de desvendar o desconhecido... Assim, li, e me
revi, na poesia deste feirense: duas vidas, outro tempo, e, de certa
forma, o mesmo mundo.
II
A
poesia de Eurico Alves Boaventura é um rico registro de um passado
que teima existir, seja na memória de quem o viveu, ou em distantes
localidades do interior nordestino; ela nos serve de amostra para a
sua maneira irreverente e espontânea de ver, captar e criar, sem
medo ou disfarces, um eu que “parecia sofrer sorrindo”, como no
dizer de seu amigo, e parceiro, Carlos Chiacchio, e, bem longe da poesie
pure de um Mallarmé, e de outros tantos despojos vanguardistas,
sua produção impressiona por construir uma poesia onde as palavras
se desprendem, muitas vezes, do raciocínio e a música das sílabas
não ecoa mais que seus significados habituais. São versos que se
compõem ao léu da inspiração e a favor das idiossincrasias, do
regionalismo e da tradição ibérica. Isso, aliás, leva-me a
comentar uma característica controversa de Eurico Alves que é a
sua facilidade em assimilar influências, o que, em seu caso, vão
da confessável leitura de Émile Verhaeren à perceptível influência
de Walt Whitman, da admiração por Manuel Bandeira à correspondência
com Jorge de Lima. Tal particularidade, comum a todo iniciante e, de
certa forma, útil a um poeta de grande porte, como é o caso de
Eurico, constitui-se, infelizmente,
em seus Poemas Metálicos
, como um grande defeito. Os poemas que compõem esta primeira fase
de sua obra poética nada mais são que exemplos bem elaborados de
um artista à procura de caminhos próprios, exercícios verborrágicos
de uma obra tão jovem e incerta quanto o seu autor, àquela época,
e, por isso mesmo, não passam de tropeços comuns na longa
caminhada rumo ao amadurecimento que não se lhe tardaria chegar,
mas não seria nos anos de 1926 a
1932.
À
medida que se volta a quantas direções lhe é possível, Eurico
Alves pouco se afastará das fronteiras do simplesmente imitável.
Acometido pelos modismos de sua época e das influências mais
comuns e imediatistas, não iria muito além do “lugar-comum” e
do “meramente esperado”, e, embora não fosse um defeito único
do poeta Eurico Alves, em muitíssimo pouco foi além do que outros,
acometidos pelos mesmos “erros de tendência”, como Fernando
Pessoa ou Jorge de Lima, alcançaram. Não fosse o grande aparato
verbal, aliado a uma perspicácia elegante e expressiva, que, em
muito, servem para minimizar os excessos descritivos e gongóricos
que, muitas vezes, verdade seja dita, são consequências da busca
por uma linguagem moderna, a qual o bardo feirense, como a grande
maioria de seus contemporâneos, entrega-se apaixonadamente. Seus
primeiros poemas não passariam de meros exercícios inglórios do
mais puro artificialismo.
Mas,
é exatamente nesta paixão, nesta entrega sem recato, nesta
peculiar romantização de temas do Modernismo, algo imperdoável
para muitos leitores, críticos e colegas de ofício coetâneos
seus, que advém o que de melhor existe nestes poemas de iniciante,
onde a chama de um talento indomável começa a fazer-se viva. Isso,
aliás, não demoraria muito, pois, já em seus Poemas
, produzido entre os anos de 1928 a
1937, sua obra tomaria a proporção e a qualidade dignas de um
talento antes provável, agora, inquestionável. Ao escrever:
(...) molas azeitadas,
rodas ruidozamente
perfurando o solo,
rodando movendo compaçadamente.
Vai
pelo campo a fora
abrindo
pautas intermináveis
para
o poema da fartura que a chuva escreverá.
por
exemplo – o grifo é meu –, Eurico Alves vai muito além da criação
de uma série de jogos verbais, ou de uma contínua sucessão de
imagens ao gosto da época, que se apagarão quando o poema, no silêncio,
precipitar-se. Através de versos como estes, o “poeta baiano”
relembra-nos que, de todas as artes, como bem acentuou César Leal,
em Os cavaleiros de Júpiter,
ao referir-se à lírica de Carlos Pena Filho, a Poesia “é a que
mais profundamente deixa raízes na alma”, que serão mais
profundas se o poeta as erige com o adubo da tradição.
É
uma pena que, no primeiro ato de sua obra poética, momentos como os
transcritos acima não sejam constantes. Todavia, no capítulo que
se segue, acontece exatamente o contrário, como, por exemplo,
quando escreve, já em 1934, genialidades deste tipo:
Alteia
teu braço, serenamente,
orgulhosamente
e
deixa que o sol coroe de música a tua taça.
Bebe
alegre, depois, o licor do teu sofrimento...
Mas
faze como todas as cigarras:
duvida
da tortura e do padecimento,
pensa
que não tens sangue e nem és feito de carne,
e
canta como o sol os teus versos de ouro e luz.
Sob
a alegria divina dos teus risos doirados,
que
sob esta música, a dor se diviniza...
A
poesia de Eurico Alves Boaventura tornar-se-á grande, exatamente,
com a eliminação de uma linguagem poética de caráter modernista
ou, pelo menos, àquela que se remete aos maneirismos do Modernismo
paulista de 1922; e, quando esta retorna a uma simplicidade e a um
coloquialismo que alude diretamente às reminiscências de seu
autor, todas ligadas ao cotidiano ensimesmado das pessoas da roça,
prova, na prática, a afirmação de T.S. Eliot de que, “a criação
artística é sempre um complexo retorno às velhas formas,
influenciada por novos estímulos originados de fora do campo das
artes”. Isto se dá porque, num sentido mais amplo, e, ao mesmo
tempo primevo, a arte nunca deixou de “ser um serviço”; assim
sendo, não constitui um elemento isolado e que a si mesmo alimenta;
ela se liga à vida de seu autor e ao mundo que o rodeia, e, por que
não, que, também, existe dentro dele; e, como já disse, Eurico,
em sua poesia, é prova disto, pois, seguindo este raciocínio,
veste-se de uma autenticidade que dificilmente encontra similaridade
(os melhores exemplos de uma autenticidade assim, que eu me lembre,
estão
em Ariano Suassuna
, em seu monumental Romance d’A
Pedra do Reino, na poesia de Ascenso Ferreira, que desfrutava,
entre tantas coisas, da admiração do poeta feirense, ou, ainda, em Marcos Pérsico
e seu Era uma vez no Sertão,
para termos um exemplo mais local e contemporâneo), revelando
elementos estruturais que desencadeiam uma vigorosa consciência artística
e uma verdadeira identificação com o mundo e a vida sertaneja, sem
afogar-se no naturalismo insípido, ou num regionalismo panfletário,
nem recorrer a um romantismo nostálgico que, na contramão do
Modernismo, levaria sua obra a um pieguismo insuportável.
O
que se verá, então, principalmente a partir dos anos 30,
principalmente em poemas como A canção da cidade amanhecente, Canção
para a capela de Nossa Senhora dos Remédios, Cantiga simples,
Elegia do solar abandonado, Poema leve da rua Barão de Cotegipe, é
a captação da essência espiritual de um povo simples – mais do
que isso... de uma cidade inteira que, mesmo impregnada por tantos
sonhos de grandeza, teimara (e, até hoje, teima), por atavismo, a
agarrar-se a uma tradição interiorana sem nenhuma angústia ou
culpa profunda. Revelar a essência misteriosa das coisas e não
imitá-las simplesmente é, segundo Aristóteles, a grande função
da arte. Eurico, a partir dos poemas acima citados, como ninguém,
aprendeu tal lição, pois conviveu tanto com um Sertão de
vaqueiros quanto de caminhões e buscou, tanto na vida cotidiana,
quanto através de seu eu-lírico, preservar este mundo de aboios,
roupas de couro e tropas de gados.
No
dizer de Agripino Grieco, Eurico Alves seria uma espécie de
“filigranista lírico”, um sentimental à antiga... E é
exatamente quando a docilidade e o lirismo profundo se lhe apoderam
que a sua poesia ganha a mais bela e abrangente dimensão.
Convenhamos que a metáfora do “filigranista”, principalmente
quando associada à ideia de “lírico à moda antiga”, é
simplista, de muito mau gosto e de pouca inteligência, entretanto,
Agripino acerta ao afirmar que os mais belos poemas de Eurico Alves
são exatamente aqueles em que põe, no papel, “com toda
docilidade, aquilo que o coração lhe vai ditando”. Nosso poeta
centenário é um grande conhecedor do mundo onde nasceu e cresceu,
presenteando-o com tantas lembranças e inspirações, quanto a uma
poética que se remete da mais meiga e sutil lembrança de menino a
mais pura tradição ibérica, que encontram, em Cantigas de bem
dizer e Baladas antigas, sua melhor expressão. Eurico conhecia bem
a poesia popular medieval, a longa marcha que essa percorreu até
chegar às terras tupiniquins, e sua contribuição para a nossa
poesia popular, que ele conhecera tão bem, já convertida à alma
brasileira nas feiras do interior, através dos romances de cordel e
dos desafios entre violeiros; também as sentia como poucos. Mas era
um apaixonado pela lírica moderna e sua ousadia. O resultado para
um caso de amor tão peculiar, que envolvia duas paixões tão
fortes e tão aparentemente insanas, é uma fusão que se faria
imprescindível para a boa qualidade de sua obra.
Não
se resguardando da atitude de um poeta maior, Eurico Alves
Boaventura, à maneira de um Manuel Bandeira – sua melhor referência
e maior admiração –, pensou, elaborou e produziu uma poesia,
como poucas, singular e, em diversos momentos, grandiosa – o mínimo
que se espera de quem se almeja como tal – onde se mostrou capaz
de abranger, com maestria e perspicácia, as mais diversas direções
históricas e estilísticas, de refletir, constantemente, algo de
transcendental em relação ao mundo onde se encontra e de onde
surgiu não importando se de forma objetiva ou onírica, de poder
falar de coisas simples, ou complexas, sem mascarar-lhes a essência,
nem lhe desnudar os artifícios, de se rebelar contra padrões e
instrumentos de estilos tomados pelo desgaste, mas de sua poesia não
ter, em si mesma, um fim, ou nenhum outro propósito que não ela
mesma, de sua obra não pertencer a uma determinada época, mas sim
a todas, como bem resumiu Ben Johnson, ao referir-se ao legado literário
de seu amigo e William Shakespeare. É o próprio Eurico Alves, aliás,
que nos dá uma boa síntese deste enlace literário ao afirmar que
não existem passados maiores nem melhores do que outros, pois todos
são brilhantes a partir do momento em que “construíram seu
tempo, projetaram um presente e deixaram margem para o futuro”.
Todavia,
nem o próprio Eurico poderia negar que nada o aproximou mais de um
poeta maior do que a negação dos vanguardismos de sua época que
ele, de livre e espontânea vontade, fizera – por mais que tenha
tido um flerte temático e estilístico com o progresso urbano
deslumbrantemente futurista –, tornando-se um rebelde às avessas,
cobrindo-se do véu da tradição e do regionalismo idiossincrático,
o qual se somou a novos elementos, tanto no estilo de época quanto
aos trazidos, ou surgidos, de sua personalidade, e, crendo quase que
exclusivamente no poder das palavras e de suas expressões, elaborou
uma poesia tão sensorial, e, em sua maioria, sinestésica, quanto
espiritual; tanto objetiva quanto subjetiva; tão hodierna quão
tradicional, simples em sua apresentação e complexa e reflexiva
com relação ao seu conteúdo. Não é à toa que, por mais que não
tenha publicado, em vida, um único livro de poesias, nem
frequentado tantos periódicos quanto queria ou podia, tenha uma
obra bem mais agradável, profunda e sensível se comparada à produção
de seus outros colegas, membros e colaboradores da revista Arco & Flexa.
Por
mais que tal atitude não seja bem vista pela grande maioria de
nossos críticos, quase toda amante dos movimentos de vanguarda, e
que, de certa forma, o prosaísmo de seus versos espante um bom número
de leitores desavisados e mal costumados, por consequência,
principalmente, da falta de intimidade com certas “expressões
locais”, a grandeza da poesia de Eurico Alves Boaventura só
acontece com o abandono da linguagem futuristicamente verhaereniana
para uma poética onde imperam o regionalismo das idílicas vilas
sertanejas e a tradição poética, porque toda vanguarda, como nos
adverte César Leal, novamente, em Os
cavaleiros de Júpiter, só pode se dar como uma ação
realmente espiritual no campo da poesia, como de quaisquer formas de
arte, após sofrer os efeitos do tempo, depois de apagados todos os
encantos mais imediatos, passados os choques teóricos e polemistas;
quando longe estiverem todas as hordas de “revolucionários”
movidos pela “frustração” e pelo “ressentimento” e,
principalmente, quando os carentes de atenção e desprovidos de
talento forem postos de lado ou mergulharem no esquecimento que lhes
é merecido. Aí sim teremos aquilo que é realmente verdadeiro e
digno de expressão e confiança, cabendo, então, ao poeta, abraçar
o que deste modismo lhe é útil ou optar por ficar com as velhas e
seguras doutrinas. No caso de Eurico Alves Boaventura, ao abandonar
artesanatos como:
Ralam
o ar, rodopiando em roucos ronrons rudos,
as
ruivas, rúbidas rodas raivosas, rápidas, ao fogaréu...
Negras
fauces monstros de fornalhas, abocanhando as sombras,
num
doido torvelinho desordenadamente bruto,
de
permeio às turbinas, aos êmbolos, às válvulas e a loucura
de
mil garras de fogo — as alavancas víboras —
no
vai-e-vem, vem-e-volta,
subindo,
descendo, afogando-se na fofa negrura do óleo chiando...
Tatala,
lá fora, ao dorso polido das chaminés,
a
crespa asa rascante e do grande morcego chagado
a
noite.
Correm
escuros arrepios no alto céu de ferrugem,
mordendo
a usina...
Mas,
a um canto, possante, brutal, estouvadamente,
entre
o delírio de carótidas veias e artérias de aço,
bates,
rebates, fremes, latejas, precípite,
em
cólera chispando,
rudo,
rouco, raivoso, rasgando a noite,
—
dínamo da fábrica — meu desvairado coração pulsando!
para
a elaboração de grandes esculturas como esta:
Estou
tão longe da terra e tão perto do céu,
quando venho de subir esta serra tão alta...
Serra
de São José das ltapororocas,
afogada no céu, quando a noite se despe
e crucificado no sol se o dia gargalha.
Estou no recanto da terra onde as mãos de mil virgens
tecem céus de corolas para o meu acalanto.
Perdi completamente a melancolia da cidade
e não tenho tristeza nos olhos
e espalho vibrações da minha força na paisagem.
Os
bois escavam o chão para sentir o aroma da terra,
e é como se arranhassem um seio verde, moreno.
Manuel
Bandeira, a subida da serra é um plágio da vida.
Poeta, me dê esta mão tão magra acostumada a bater nas teclas
da desumanizada máquina fria
e venha ver a vida da paisagem
onde o sol faz cócegas nos pulmões que passam
e enche a alma de gritos da madrugada.
Não desprezo os montes escalvados
tal o meu romântico homônimo de Guerra Junqueiro
Bebo leite aromático do candeial em flor
e sorvo a volúpia da manhã na cavalgada.
Visto os couros do vaqueiro
e na corrida do cavalo sinto o chão pequeno para a galopada.
Aqui
come-se carne cheia de sangue, cheirando a sol.
Que
poeta nada! Sou vaqueiro.
Manuel Bandeira, todo tabaréu traz a manhã nascendo nos olhos
e sabe de um grito atemorizar o sol.
Feira
de Santana! Alegria!
Alegria
nas estradas, que são convites para a vida na vaquejada,
alegria nos currais de cheiro sadio,
alegria masculina das vaquejadas, que levam para a vida
e arrastam também para a morte!
Alegria
de ser bruto e ter terra nas mãos selvagens!
Que
lindo poema cor de mel esta alvorada!
A
manhã veio deitar-se sobre o sempre verde.
Manuel
Bandeira, dê um pulo a Feira de Santana
e venha comer pirão de leite com carne assada de volta do curral
e venha sentir o perfume de eternidade que há nestas casas de
fazenda,
nestes solares que os séculos escondem nos cabelos desnastrados das
noites eternas
venha
ver como o céu aqui é céu de verdade
e o tabaréu como até se parece com Nosso Senhor.
percebemos
quanto é categórica a afirmação de que não se pode ser autor de
uma poesia, que se diga inovadora, sem Homero ou Virgílio, sem
Dante ou Camões, sem Shakespeare ou Bocage, sem Wordsworth ou
Castro Alves, ou, até mesmo, sem Baudelaire ou Manuel Bandeira.
Sendo assim, o Jorge Matheus de Lima, só por motivo de exemplo, de Poemas
Negros, descobriu o Jorge de Lima de A
túnica inconsútil, e o Eurico Alves Boaventura – que
admirava a poesia do bardo alagoano, mesmo sem ser, como ele, um
dominador, por inteiro, de todos os mecanismos de expressão poética
(pois Jorge de Lima é, também, um exemplo de poeta maior) –,
descobriu o Eurico Alves de Poemas
sentimentais, após abandonar o Eurico do já citado Poemas metálicos. Do contrário, tanto um como o outro, não iriam
além do vanguardismo panfletário e magoado, e acabariam por se
condenarem a um degredo intelectual típico de quem não foi além
daquilo que lhe fora incumbido fazer, mas, novamente citando César
Leal, em seu imarcescível Os
cavaleiros de Júpiter, “resta-nos saber que, historicamente,
só os verdadeiros poetas fracassam nos movimentos de vanguarda, ao
criar aquilo que não haviam intentado” e é daí que nos surge,
em sua totalidade, a grande poesia de Manuel Bandeira, de Jorge de
Lima e, claro, de Eurico Alves.
III
É
uma pena que a imensa maioria de nossos críticos, ainda, veja
autores como Eurico Alves Boaventura, Jorge de Lima, Murilo Mendes e
até mesmo Mário Quintana, Dante Milano e Bruno Tolentino, por
exemplo, como produtores de uma visão “arcaizante”,
“alienada” e “pequeno-burguesa”, frutos de uma “consciência
transferida” e de uma poética que só será vista, por tal crítica,
como simplista e meramente acadêmica, pois, como já nos ensinara
Esopo há tantos e tantos séculos, é costume do tolo, que almeja
aquilo que se sabe incapaz de conseguir, desdenhar do que tanto
deseja. Este tipo de reducionismo não atinge, nem jamais atingirá
a qualidade de tais escritores, embora, muitos, acabem por amargar,
como é o caso do Eurico Alves, um longo período de ostracismo
injusto por consequência da burrice, do despreparo, do descaso e da
cegueira ideológica de muitos cujo ofício, a reputação e a boa
posição não deveriam permitir o uso tão bem colocado de tais
adjetivos; mas nada que o grande talento inerente a tais artistas não
supere com o tempo que é o melhor dos críticos, porque só ele,
como disse Santo Agostinho, é capaz de dar paz a toda dor.
Infelizmente,
como já disse, repito e reitero, a grande maioria de nossos críticos
é parva, preguiçosa e aproveitadora e, sendo ela, quase toda
marxista, tais adjetivos só não lhe cabem muito bem, como podem
ter o seu valor e significados quadruplicados. Porém, como certa
feita afirmou Bruno Tolentino, “guardamos nossas joias e nossas
cartas de amor com o mesmo deslumbramento, mas em estojos separados;
e quando os vamos abrir, no primeiro deles achamos exatamente o
mesmo valor, o mesmo brilho, realçado pela pátina do tempo; no
outro, encontramos a tinta esmaecida, o papel amarelado, em suma, a
palidez desbotada daquilo que tanto amávamos, que um dia nos
resumiu e que, de repente, se tornou quase irreconhecível, quase
ilegível, doce apenas como a vaga lembrança da emoção de um
tempo que se foi como um assovio na noite”...
(Os
grandes poemas são como estas joias, que com maior ou menor tamanho
e valor, intentam-se contra a mão do tempo; e eu gosto de pensar
que, entre tantas joias, há o pequenino diamante da poesia de
Eurico Alves Boaventura fulgurando sobre o chão das falsas críticas,
as cinzas das vanguardas e o pó do marxismo.)
Enfim,
se existe algo de grande e sincera importância a dizer sobre Eurico
Alves Boaventura, algo que possa ir muito além de qualquer crítica
que se possa fazer com respeito a sua obra, é a obvia certeza de
ele ser o maior poeta da história de Feira de Santana, um dos
melhores poetas da história literária da Bahia e um grande poeta
brasileiro, mesmo sem o eruditismo e o Formalismo de um Godofredo
Filho (só para ter, novamente, um exemplo local), sem a profunda
herança de tradição clássica de um Jorge de Lima. E,
independentemente de a sua poesia não contar, até hoje, com uma
edição e uma crítica que façam justiça à grandeza que lhe é
inata, certamente sua obra reza entre as mais bem realizadas de toda
a nossa Literatura... Poesia essa tão imensa e verdadeira que é
capaz de, passados tantos anos, tantas leituras (dela e de outras
tantas de quantos poetas pude ler e compreender), trazer-me, ainda,
o mesmo espanto, mistério e beleza daquelas palavras que, quando eu
menino, me encantaram tanto.
Feira
de Santana, de 04 a
27 de junho de 2009.
*
Silvério
Duque é poeta,
professor, licenciado
em Letras Vernáculas
pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), músico
profissional, já coordenou e Escola de Música da Sociedade Filarmônica
Euterpe Feirense e crítico literário, escrevendo para vários
jornais e periódicos. É autor de O crânio dos peixes (Ed.
MAC/2002), Baladas e outros aportes de viagem (Ed. Pirapuma, 2006);
o seu próximo livro, Ciranda de sombras,
está no prelo.
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