corpo
e sangue
(Ruy
Ventura)
"O
que vemos, não é o que vemos, senão o que somos."
Bernardo
Soares
"Só
existe um lugar, a picada do sofrimento,
e
ela é perfeita."
Adélia
Prado
"Todo
no es más que la búsqueda de una armonia,
un
equilibrio entre dos signos de interrogación."
Martín
López-Vega
legenda
1
a
luz atravessa o sangue, a memória. mastiga este canto na cidade. o
incêndio devasta o interior da porta. fragmenta estes olhos, entre
o friso e a fogueira. § a melodia prende a angústia e o mistério.
prendo no olhar as mãos que apagam a melodia desta chuva. fundo –
apenas o lugar. devagar, leio o sangue e a saliva correndo ao canto
da boca. o livro rasga a língua, a garganta. o canto (dos lábios)
nos intervalos do silêncio. fundo, apenas o lugar. § o frio,
dizes, transmite à nascente um pouco de morte. a nascente deixa
cair sobre nós esse incêndio. o lume avança. enruga a pele,
queima os cabelos, os ossos – a alma. § escrevo sobre o areal.
desço para encontrar nos escombros uma faixa de terra – para
alimentar o segredo. nada vislumbro. desfaço o teu corpo. em ruínas.
a noite prevalece.
longitude
2
a
fotografia permanece em segredo. esta lágrima aprende. o último
dia de inverno. reserva-nos uma cidade onde a fuligem coloca dentro
da estranheza algumas vozes cantando. § o calor nasce, apesar da língua.
a carta segue. o pescador recolhe (no miradouro) uma imagem que não
lhe pertence. ao longe, a torre alivia o peso da fotografia. o automóvel
desenha lugares sem nome. existem páginas e páginas que não é
possível escrever. a inocência guarda-nos da chuva. a luz
permanece: rosto e palavras. a temperatura que fizemos nascer. § o
silêncio releva o silêncio. nasce nesta melodia que nos corta o
ventre. cria-nos. traduz, nalguns traços, a árvore. a raiz
permanece fora de alcance. quando, perante uma agonia, vislumbramos
algumas vozes cantando.
3
o
retrato transcende a caligrafia. a partitura recolhe-nos dentro de
água. uma melodia nasce dentro desta noite. procura no dicionário
o sentido, profundo, para esta frase. entre o calor e o frio das
manhãs. entreabre a porta. descobre este caminho até ao centro da
terra. desenha o teu nome nas sílabas deste nome. aperta entre os
dedos a tua voz. § a planície e a montanha acolhem a transfiguração
do sangue. ligando-nos. como sombra ou tempestade.
4
projectamos
este filme na memória. como num vitral, a noite transfigura-nos.
acolhe-nos sem ser preciso desvendar esta alegria (beleza ou
deslumbramento). § a serra ilumina este rosto. entre o alicerce e a
transcendência da fala. alumiamos a terra para chegarmos a essa
fonte. multiplicamos a imagem. ao longe, as cores desaparecem. as
formas descem nos objectos como mistério ou ansiedade. §
projectaremos este filme. na memória. entre terra e céu, o corpo
cresce. como um pinhal, plantado há sete dias.
5
a
dor conhece a paisagem. nesse lugar onde uma lágrima (esta alegria)
desce com o sangue para alimentar aquela noite. procura o melhor
lugar para os objectos na inundação da alma. neste quarto, onde as
linhas do rosto procuram a harmonia da terra. § não será preciso
transformar em árvore o corpo que construímos. a raiz cresce na
viagem que satisfaz o medo. a temperatura deste mapa onde somos
legenda e deserto. § a dor conhece esta paisagem. uma nuvem desce
para sul. altera a casa – e o mundo.
6
escrevo
nesta árvore. sobre a ponte. vou embalando aquela melodia. abro
esta porta. sigo durante a noite o sorriso, a pedra que nos devolve
essa chuva. § que ângulo contemplarei? a lira recuperando o minério?
o crânio resguardando o incenso? o ouro cobrindo estes passos?
palavras sucedem a palavras mais antigas. vestígios de tecido sobre
a madeira. sob o corpo há tanto tempo reclinado. § a cripta
recolhe esta melodia. protege-la. durante séculos e séculos. as
estrelas povoam este campo. o campo dos mortos, entre o granito e a
videira. percorro o deambulatório. desse corpo. a árvore. a vida
dissolvida no húmus e no caminho. § dois anjos abraçam o cume da
montanha. o arco dissolve esta alma. coagula entre pilares a prata e
o ouro da viagem. § nada distingo. apenas a pedra. a erva. o negro.
a claridade da lanterna, inscrita na geometria desse olhar. o edifício
desfaz-se. a planta recua. na paisagem e na mão do arquitecto. as
palavras tremem. nessa voz vinda do norte. a carne navega. procura a
conservação do verbo. demanda nesta memória o sal e a partitura.
a árvore. nascida no início.
7
aguardo
a inscrição. a escada leva ao cume da montanha. a manhã
estremece. o voo regressa, ouvindo a madeira que estala com o fogo.
com o calor, lendo o desenho das luzes. junto do tronco ressequido
da oliveira.
*
a
mensagem não atravessa esta serra. escuto as passadas do lobo
cerval entre as estevas e a ribeira. mesmo que não existam.
atravessa-nos. a linguagem é outra, quando distinguimos a água e o
nascimento.
*
vigiamos
o medo. dentro do medo. recebemos sobre a pele este corpo sem voz. o
horizonte onde nos perdemos. sementes sobre a terra. os animais
esperam. regressam ao firmamento. consumidos por algumas palavras.
pela chama dos olhos. a madeira seca. voa ao princípio. quando a
noite cai e a morte surge. por segundos.
*
espero.
regresso. o sorriso acompanha o declive. o afloramento desta ave à
textura dos rochedos. o caminho avança. a calçada desfez-se para
que pudéssemos passar. a madre permanece. palavras que ninguém
entende, mas todos queremos escutar.
*
a
carne arrefece. incha. o coração bate. com a tília, no telhado. a
mão repousa no braço direito. da cadeira. recolhe a água, o bico
e as asas. o trilho que não distingo entre os castanheiros.
acalento o fogo. o horizonte com cidades ao fundo. vestígios que
desaparecerão. com o tempo.
*
a
mão tende o pão. dá-lhe tempo para levedar. coloca-o no forno.
quando a temperatura faz crescer o mundo. a sabedoria acontece.
saber e sabor encontram a união perfeita.
*
o
odor acompanha-nos. escreve e reescreve a voz da montanha. subo, sem
subir, a torre sobre o mundo. vigio a palavra e a imagem. disperso
nesta casa fragmentos que a tua mão colherá sob a terra. a legenda
nasce, como um túmulo escavado na rocha. vazio. ainda.
*
o
inventário permanece. incompleto. a enumeração desfaz este mundo.
para depois o reconstruir. o verbo destrói o movimento. suspende a
vida para melhor poder fixá-la no tímpano desta porta.
*
dia
e noite. algumas estrelas durante a tarde. impossíveis.
verdadeiras. o corpo desfaz-se. os símbolos regressam ao início.
este corpo não escreve. vigia e adormece. para que tudo possa
entender. a viagem continua. percorrido o deambulatório, continua.
até ao fim da terra.
8
desço
a escada. encontro no forno essa árvore. a voz. procura acender o
lume. a água. acolhe dentro de si sedimentos. fragmentos. de luz. e
de memória. § o fogo fertiliza esta árvore. dentro do forno.
tenta lavar do sangue os utensílios. ao longe, o telhado renasce.
noutras mãos. destila a dor e a palavra. § sem brilho, os olhos
contemplam. os carvalhos. o calor da madeira. (este vazio.) a velocidade
desse sangue. nesta viagem. § o cabelo recolhe a temperatura. da
terra. dissolve tudo. neste caminho virado a poente. a mão segura
as asas. tenta encontrar o sono. a respiração – da montanha. e
uma gota de água. em silêncio. tenta
encontrar uma gota de água. para dissolver este sal que vai
queimando a carne – e essa memória.
9
abro
este túmulo. tento distinguir na pedra a face, enegrecida. o sangue
permanece. durante a noite. o telhado desapareceu. os sinos tocam
longe da torre e no silêncio. a carne apodrece. alimenta a garganta
com essa voz escavada na rocha. § escondo esse lenço sobre a
muralha. lanço nesse ventre o lintel que sustentava o edifício.
sem olhos, este corpo
procura o local do sacrifício. sobe. sobe sempre. até encontrar,
entre duas palavras, o último desenho desse cálice virado a
nascente.
10
recebe-nos.
sobre o abismo. nada vislumbramos no mapa. nem sequer a entrada
deste nome, escavado pela água. desço e reencontro a casa. sem
travejamento nem madeira. a escuridão ilumina o rosto, na
fotografia. o sol há muito desapareceu. com a sua voz feita de
tinta. a gruta preenche o estômago, os intestinos, a alma. a
escritura sem alma que o vento recebe tantos anos depois. a lápide
reconhece-nos. mas seremos nós a figurar no bronze e no tronco
desta árvore? nada reconheço deste nome. nem sequer a acentuação
da melodia, entre a alegria e o cansaço. nada ficou da humidade do
teu corpo. secou com a corda na garganta. permanece em segredo na
respiração da pedra. oscilando com o vento.
11
ao
longe, o vidro e a madeira escurecem. a macieira ilumina o quintal.
apenas pedra. e o comércio da água, entre as muralhas e o sangue há
muito desaparecido. a língua surge estranha ao corpo e ao olhar. a
represa recolhe os passos que desenham a escada. a fotografia
espera-nos – tão perto. a estela marca o espírito na terra, o
sopro do vento nas confrontações da alma. nada resta do palácio
nem do minério. tudo ficou da longa mansão onde o anjo resguarda o
oiro e a memória.
12
a
serenidade acolhe-nos. solene, a serenidade acolhe-nos – como uma
tempestade. o mar devolve esse clamor que nos atravessa. a noite
satisfaz a cidade e o alimento. faz-nos desaparecer em qualquer
encosta virada a poente. § habitamos o espaço, reunindo e
multiplicando a linguagem que preside ao desespero. § existiu entre
nós uma fronteira? solene, apenas a ventura. interior à luz –
como a catedral depois de uma tarde de trovoada (ressurreição ou
deslumbramento): a mesma carne, o mesmo sopro na respiração do
inverno. § a serenidade recolhe-nos dentro da tempestade. reúne
palavras e objectos que ninguém lê, mas que todos compreendem.
dissolve assim o arquipélago. o mar dissolve o clamor que nos
entende. § o vento abre a janela. para que possamos respirar.
13
a
eloquência nasce naquela porta. aberta até ao limite da fronteira.
as ruas desenham um animal onde o mistério se estreita entre dois
vasos. os olhos voltam-se para nascente sem conhecerem sequer o
norte e o sul desta linguagem onde telhados e varandas, campanários
e laranjeiras desenham em nossos passos a estranheza do horizonte.
§ subimos à torre. para melhor vermos o círculo que nos une. a
esta terra. desce o firmamento. hesita, esta memória, em tocar o
bosque cuja língua desaparece. § de súbito. uma águia. a música
que escrevemos. para sempre. de regresso à largueza da floresta.
14
divido
a garganta entre a água e a terra. o mapa levanta-nos. a voz
descobre na estrada um fio de sangue estreitando o continente. um
fio de ouro, correndo a meio da garganta, no local exacto em que uma
palavra secciona a luz e o coração. § uma sílaba afasta-nos do
mundo. deste mundo. as torres dissolvem aquele húmus na atmosfera.
o arco divide a medula, a rama dos carvalhos. § nada vislumbro
neste poço. a lua e o alimento desapareceram. § regresso. ao âmago
da terra.
15
atravesso
as vozes e o mercado. os sinos – embalando o nevoeiro. um pouco de
neve. entre as palavras. a fonte. na pedra. esse rosto que dissolvo
na sombra e no cansaço. § a chave regressa. o telhado enegreceu. o
negrilho desenha esta sede. um fio de luz por entre os lábios,
nesta terra - sem vento. guardo nesta mão o prado e a verdura. desço
a estrada. o segredo. de algumas palavras. o asfalto. a revolta das
estações. o sabor. desse corpo. o forno onde queimo este corpo, na
silva e na distância. § as casas escrevem a montanha. a água e o
sorriso. cobriram de ferrugem o firmamento. a torre. enegrece. a
imagem guarda-nos do frio.
16
a
geometria acolhe-nos. inscrevo na água a pedra, o pão, a voz. na
paisagem. sem telhado, a casa defende-nos. a toalha recolhe a
textura da tarde. § queimo este nome. no firmamento. alimento e
distância regressam sempre que desço ao interior da sombra. sobre
o rio. regressam sempre que eu regresso a este nome sobre a terra.
*
o
ferro marca a passagem. o sabor da água. na paisagem – com vozes
dentro. § o lintel recolhe a palavra. o mundo estala. este nome
reveste-nos de sombra. § a caligrafia, na pedra, desenha a voz e a
memória. o fogo vigia-nos. a sede vigia este poema.
*
o
sal da terra devolve-nos a frescura do forno nesta tarde de julho.
as palavras cozem com o pão na margem deste rio. § não é preciso
recolher a fuligem. a gilbardeira seca. as raízes continuam.
lavrando. o fogo e o caminho.
17
sopra-nos
do barro. ilumina o cabelo, a voz da montanha. sobre a mesa, a cinza
deste corpo. a cidade cresce. sem casas. a respiração queima.
lentamente. os olhos, as unhas, a mão. o sangue. § a chama
permanece. tão pequena. o calor repousa sobre o musgo. uma lágrima
irrompe pela manhã. a gilbardeira coloca, sobre o peito, um pouco
de alegria. § nos olhos e no cabelo. nesta mão. as imagens
reverdecem. o fogo tece-nos, mesmo à distância. um tronco de árvore.
o vento apaga. acende. essa chama nascida no interior da montanha.
§ a criança sopra. o barro que somos. a palavra aquece-nos. a
flama aquece o coração. e o mundo. sobre a mesa, a cinza desse
corpo. o corpo navega. flutua. desenha na terra essa criança.
nascida sobre as águas.
18
guardarei
do teu rosto apenas o nome. a dor do espinho rasgando a pele para
que nela entre uma palavra, somente uma palavra, gravada na coluna
que sustentava a nossa infância. § o mel e o azeite reúnem-se
entre flores e mantas de musgo. mesmo no interior da cidade. o pão
reveste-nos de sombra. o teu nome reveste-nos de dor nesta noite em
que vigiamos o forno do alto da mais alta torre. § pouco ficou da
viagem: o rio nutrindo-se da ponte e da figueira. o teu nome –
alimentando o sangue que guardo neste poema.
latitude
19
aguardo
na sombra o sangue. em ruínas, guardo sombras e palavras. o verde
dessa melodia. e algumas vozes cantando. recolho na síntese deste
corpo, a estrada. os teus olhos vigiando a cidade. respiro a pólvora.
desfaço entre os dedos este muro. a linha do comboio. transportando
as raízes desta árvore. a madeira seca. § a seiva desce este
caminho. a cinza desse caminho. sem passos. sem memória. procuro a
voz e o alimento. a semente (a cinza?) que nos dedos germina. na
sombra e na saudade. § aguardo o sangue (a morte?). esta memória.
a pedra e a cal reconhecem a secura. da pele. em ruínas. os músculos
vencem a febre e a cinza. § o pilar subsiste. no centro da avenida.
este corpo nasce. como um rebento. entre duas raízes.
20
a
cicatriz dissolve a memória. a água reparte esta alegria. devolve
ao interior das raízes o forno, o vidro, o sopro. da montanha. esta
luz durante a tarde? devolvo esta memória. a cor dissolve essa
tristeza. o teu rosto numa pasta de sangue. entre duas oliveiras. §
o sopro. o forno. a pedra. essa habitação sem medo. essa alegria.
a cicatriz alimenta a ramagem. este rio sem barca onde mergulhamos.
a angústia. viagens e viagens. a circulação do sangue – há
muito coagulado. § o fogo alimenta o coração. funde aquela
palavra para sarar a língua e o cabelo. a água reparte esta memória.
§ guardo, a/guardo um copo vazio. um corpo vazio. o vinho lava a
imagem. acolho no pão esse tempo sem regresso. a água re/parte
nesta alegria a substância da noite. § a cor divide. este cansaço.
regressa. no largo e na saudade.
21
não
existe passagem. nesta barca dissolverei a parte branca do caminho,
no forno que hoje regressa à temperatura do teu corpo. em que tear
irei tecer de novo o horizonte? percorro a mina, o fogo e a
fogueira. encontro, no odor do campo, um pouco de saliva. a cicatriz
permanece. apesar do nome. a ferida corrói a alma. § respiro o
sopro do oriente. transfiguras o ouro em madeira – como essa flor
que nasce na lanterna. atravessarei a ponte, pela última vez. sem
ver que a água reflecte um rosto estranho. nada reconheço. na
paisagem e no medo. apenas o calor no cume da montanha. § o sereno
acorda-nos. em que século ficou a última página desta língua que
enegrece? a saliva congela. percorro a mina, o fogo. encontro a
fogueira. não existe passagem. a barca apodrece.
22
uma
carta. a última carta. esta face virada a nascente. esperando o
centro da noite, o interior da fala. § mudo as palavras, mas não
consigo mudar a ortografia do universo. desfaço o meu corpo. o
sangue vasa. enche de novo esta linguagem com pequenos filamentos.
vislumbramos apenas um cordeiro. encontramos o odor da terra depois
da última visitação. § aqui. ou em qualquer parte. mesmo
prostrado na última cidade. o adobe desfaz-se. com o gelo. a casa
dissolve a pedra, o lençol, o livro. a legenda e a lembrança onde
vemos aquele ramo segurando a nossa angústia. § a memória revolve
esta água. evapora neste mar onde foste depositando a epístola da
tua sede. a tinta marca os dedos. a alma – azinheira morta depois
do último inverno. § nada recebo desta voz distante. dissolvo este
lugar no sangue e no vinho da floresta. § uma carta. a última
carta. a dor que armazenaste nos veios do coração.
23
o
sangue dissolve a cor. o encantamento. descreve esses olhos sem
fogo. a saliva correndo por entre os lábios. o vidro estilhaça o
cabelo. arde nesta ferida. afoga essa alma. sob o ventre. por entre
as ervas. § duas aves submergem a floresta. esvoaçam junto do poço,
tentando revelar a corda e o desespero. a fotografia permanece.
noutro continente. estilhaça o ventre. os lábios. essa memória.
rasga para sempre o sono mais profundo. § as asas mudam de cor. (a
criança tenta conter a respiração.) a terra rejeita essa seiva.
devolve sem vento a água e a garganta. a fronteira esboroa o coração.
a cor dissolve o sangue. o óvulo apodrece entre dois carvalhos. §
a raiz agarra esse espelho. a morte encaminha esses lábios para o
grande lago. § ao longe, a criança observa a ferida. o braço
percorre essa língua. a mão descobre na boca a madeira. (que cinza
restará deste silêncio? o arco quebrando a angústia? a torre
vigiando a nossa sede?) a água condensa entre as linhas a seiva e o
desespero. § sem erva, o pórtico conserva algumas palavras. noutra
língua. os limos desenham no tanque esse segredo. a viagem
continua. continua enquanto os fantasmas revestem de morte o crepúsculo
e a madrugada.
24
iluminei
os teus passos. o cemitério, longe da cidade, entre rochedos, lágrimas
- e uma pequena alegria. uma ferida no olhar. tão longa quanto a
neve modelando o caminho que percorremos. a respiração acolhe-nos.
o navio, ao longe, dissolve o ouro e a madeira apodrecida. § nada
vislumbramos nas duas esferas. o pó e o frio guardam esta monotonia
eterna. à superfície, esse verde dos prados dissolve o sangue.
abandona os pulmões, a voz, a garganta. ligeiramente trémula. a
varanda – e este sopro na circulação. § falar em luto iria
embelezar as coisas, dizes olhando de longe o teu irmão. o mundo
recolhe esta tristeza. dentro do gelo. um insecto minúsculo que o
tempo resguardou como vestígio da última morte na floresta. a
chuva incendeia o baile. essa dança ardendo no interior da casa.
uma palavra: o movimento. a circulação do sangue espargindo a
montanha.
25
escreve,
sempre de novo, o vento entre os pinheiros. uma chuvada, antes da
divisão da terra. no sótão, a mão direita (os dedos demasiado
longos). § fragmentos de um texto circundam a abóbada, o comboio,
o coração. plantaram carvalhos na encosta, dentro da viagem, na
fresta virada a poente. § a legenda continua incompleta. sob as
letras nascem letras ainda mais antigas. desapareceram as paredes. a
cal onde o texto surgiria. § vizinhos na infância, resguardaram
teu sangue nos limites do campo. o sopro que escreveste nas ruínas.
o odor que sempre nos iluminou.
26
agitada
pelo vento, a torre. um grito na montanha. uma porta, tão longe do
universo. este livro onde desfaço o mundo. séculos e séculos.
alimentando-me deste gelo. § dissolvo a pele, os ossos, o sangue.
nesta caverna. recomponho o rosto. coso memórias e desesperos, angústias
e espantos. mesmo quando sonhava ia apenas revendo aquele prado
antigo rodeado por um pano de muralhas, velando uma parte desse
deserto. § uma porta. aberta para que lado? o frio conserva este
corpo em agonia. a mão acaricia esta ferida. a cicatriz tarda em
aparecer. ao longo das margens, a noite vai caindo. a rua arde.
dissolve nesta água a habitação do tempo. § agitada pelo vento,
a torre separa-nos do abismo. um sinal na pedra. aquela porta –
sinuoso caminho no labirinto do medo.
27
a
porta esconde-se. um rosto entre as acácias. um rosto dentro da
face que a madeira e a mão registam e apresentam. § o sopro
procura o silêncio. para fazer crescer a voz. a carpintaria
talhando, golpe a golpe, esse rosto. essa porta. na linha que se faz
com fragmentos de tecido. de palavras. olhando pela janela o campo.
imenso. § a abóbada desceu até junto do homem. deambula pela
casa. foi preciso dividir a nave entre a voz e o firmamento. este
corpo. a flor junto da imagem. § o rosto acompanha-nos. a porta
abre, porém, um universo inteiro. permanece a veneração. a nave
vivendo o pão e o segredo. dentro a voz, o sopro. edificam a
palavra. neste lugar onde tudo se encontra. um ramo, uma lâmpada. o
rosto, no jardim – mais vasto do que o mar.
28
uma
rosa, no inverno. uma carta a meio de um nocturno de Chopin. no
inverno - para arder. uma casa que se muda até à outra ponta da
cidade. § a rosa queima a boca, os ouvidos, a mão. o mistério
permanece. longe, o deserto escreve na moldura da porta. deste lado,
entre as cerejeiras e o alpendre da igreja. § à entrada, o automóvel
procura o inverno. a rosa. um incêndio muda a foz. deste rio. a mãe
vê nas asas a transformação do sangue. um corpo. a natureza de um
corpo. depois da neve.
29
recebo
o pão. o segredo da água nas linhas do edifício. desenho nesta mão
a planta. a raiz desta planta por onde circula o coração. a cidade
nasce. dissolve entre os dedos a seiva (a palavra). o fogo dissolve
as veias. dispersa a linfa neste pão. nesta sede. com vozes dentro.
§ as paredes estreitam o sal e o firmamento. o fermento e a língua
sob a ponte. sem nome, o corpo paralisa(-nos). congela a pele. e a
cidade. a circulação da luz por entre as árvores. § o fogo
alimenta este rosto. sob as células. a poeira regista na alma a
legenda desta sede. a mão apaga a janela. divide a substância do
lugar. a água e o nascimento da terra. § o movimento desfaz a
paisagem. abro este pão. coloco no interior a velocidade e o
segredo. a escuridão e o vento no repouso da estação.
30
quis
reconstruir a casa onde cresciam ervas e musgos. sem alma, a escuridão
dissolve o mundo. a imagem arde na memória. § quis reconstruir a
casa. a pele rebenta nesse corpo onde o plasma descobre caminhos que
desconheço. § nada guardo que possa recordar. que frase escreverei
no braço direito? conheço apenas o sangue, legenda com que vou
decifrando a floresta e o oceano. § a imagem arde. na memória.
circula por entre os dedos. o líquido caiu sobre a rocha. adormeceu
para esquecer o sonho e o pesadelo. § permanece. a fonte. sobrevoa
a cidade. rasga esta página. devorando a alma. lavando as unhas e o
cabelo. § o livro destruiu há muito a única imagem sobrevivente.
guardo junto do poço esse segredo há tanto tempo sem água. pouco
restou. apenas cor. e cor distante. aparência de cor e de textura.
aparência de sangue. § este corpo revolta-se. a imagem arde. tenta
salvaguardar os glóbulos e as plaquetas. sem alma, a escuridão
dissolve o mundo. sem veias, o sangue permanece. noutro largo.
noutro coração.
31
a
língua arde. queima o coração, as veias, as células. entre duas
árvores – a corda aperta a garganta. dissolve o anel e a saliva.
essa melodia. no interior do dragoeiro. § o incêndio alastra.
sempre de negro. sobe a escada. coloca sobre os olhos essa espada. a
língua arde. deixa entre as cinzas vestígios de sombra. nada mais
encontro entre os escombros. antes da derrocada, levo para longe a
última gota de sangue. a saliva preenche o desespero. o sopro do
oceano. fico deste lado, junto do medo. § tento salvar a última
fronteira. deixei este livro no sopé da montanha. consigo ler. os símbolos,
contudo, têm pouca nitidez. mesmo quando os entendo. § a língua
arde. a flama
acompanha-nos. neste forno. a chama desfaz os ossos e o cabelo, o
anel e a melodia onde tento navegar. § de que vale cruzar o
horizonte quando a cinza guarda rebentos e palavras? § o incêndio
alastra. deste lado do oceano. o sal lava o corpo e a linguagem. o
fogo devora a distância. este fogo. encontra no coração (na
terra?) essa ave nascida no início.
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