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Henri Matisse, Interior com harmônio

 

corpo e sangue

 

(Ruy Ventura)

 

 

"O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos."

 

Bernardo Soares

 

 

 

"Só existe um lugar, a picada do sofrimento,

e ela é perfeita."

 

Adélia Prado

 

 

 

"Todo no es más que la búsqueda de una armonia,

un equilibrio entre dos signos de interrogación."

 

Martín López-Vega

 

 

 

 

legenda

 

 

1

 

a luz atravessa o sangue, a memória. mastiga este canto na cidade. o incêndio devasta o interior da porta. fragmenta estes olhos, entre o friso e a fogueira. § a melodia prende a angústia e o mistério. prendo no olhar as mãos que apagam a melodia desta chuva. fundo – apenas o lugar. devagar, leio o sangue e a saliva correndo ao canto da boca. o livro rasga a língua, a garganta. o canto (dos lábios) nos intervalos do silêncio. fundo, apenas o lugar. § o frio, dizes, transmite à nascente um pouco de morte. a nascente deixa cair sobre nós esse incêndio. o lume avança. enruga a pele, queima os cabelos, os ossos – a alma. § escrevo sobre o areal. desço para encontrar nos escombros uma faixa de terra – para alimentar o segredo. nada vislumbro. desfaço o teu corpo. em ruínas. a noite prevalece.

 

 

 

 

longitude

 

 

2

 

a fotografia permanece em segredo. esta lágrima aprende. o último dia de inverno. reserva-nos uma cidade onde a fuligem coloca dentro da estranheza algumas vozes cantando. § o calor nasce, apesar da língua. a carta segue. o pescador recolhe (no miradouro) uma imagem que não lhe pertence. ao longe, a torre alivia o peso da fotografia. o automóvel desenha lugares sem nome. existem páginas e páginas que não é possível escrever. a inocência guarda-nos da chuva. a luz permanece: rosto e palavras. a temperatura que fizemos nascer. § o silêncio releva o silêncio. nasce nesta melodia que nos corta o ventre. cria-nos. traduz, nalguns traços, a árvore. a raiz permanece fora de alcance. quando, perante uma agonia, vislumbramos algumas vozes cantando.

 

 

 

3

 

o retrato transcende a caligrafia. a partitura recolhe-nos dentro de água. uma melodia nasce dentro desta noite. procura no dicionário o sentido, profundo, para esta frase. entre o calor e o frio das manhãs. entreabre a porta. descobre este caminho até ao centro da terra. desenha o teu nome nas sílabas deste nome. aperta entre os dedos a tua voz. § a planície e a montanha acolhem a transfiguração do sangue. ligando-nos. como sombra ou tempestade.

 

 

 

4

 

projectamos este filme na memória. como num vitral, a noite transfigura-nos. acolhe-nos sem ser preciso desvendar esta alegria (beleza ou deslumbramento). § a serra ilumina este rosto. entre o alicerce e a transcendência da fala. alumiamos a terra para chegarmos a essa fonte. multiplicamos a imagem. ao longe, as cores desaparecem. as formas descem nos objectos como mistério ou ansiedade. § projectaremos este filme. na memória. entre terra e céu, o corpo cresce. como um pinhal, plantado há sete dias.

 

 

 

5

 

a dor conhece a paisagem. nesse lugar onde uma lágrima (esta alegria) desce com o sangue para alimentar aquela noite. procura o melhor lugar para os objectos na inundação da alma. neste quarto, onde as linhas do rosto procuram a harmonia da terra. § não será preciso transformar em árvore o corpo que construímos. a raiz cresce na viagem que satisfaz o medo. a temperatura deste mapa onde somos legenda e deserto. § a dor conhece esta paisagem. uma nuvem desce para sul. altera a casa – e o mundo.

 

 

 

6

 

escrevo nesta árvore. sobre a ponte. vou embalando aquela melodia. abro esta porta. sigo durante a noite o sorriso, a pedra que nos devolve essa chuva. § que ângulo contemplarei? a lira recuperando o minério? o crânio resguardando o incenso? o ouro cobrindo estes passos? palavras sucedem a palavras mais antigas. vestígios de tecido sobre a madeira. sob o corpo há tanto tempo reclinado. § a cripta recolhe esta melodia. protege-la. durante séculos e séculos. as estrelas povoam este campo. o campo dos mortos, entre o granito e a videira. percorro o deambulatório. desse corpo. a árvore. a vida dissolvida no húmus e no caminho. § dois anjos abraçam o cume da montanha. o arco dissolve esta alma. coagula entre pilares a prata e o ouro da viagem. § nada distingo. apenas a pedra. a erva. o negro. a claridade da lanterna, inscrita na geometria desse olhar. o edifício desfaz-se. a planta recua. na paisagem e na mão do arquitecto. as palavras tremem. nessa voz vinda do norte. a carne navega. procura a conservação do verbo. demanda nesta memória o sal e a partitura. a árvore. nascida no início.

 

 

 

7

 

aguardo a inscrição. a escada leva ao cume da montanha. a manhã estremece. o voo regressa, ouvindo a madeira que estala com o fogo. com o calor, lendo o desenho das luzes. junto do tronco ressequido da oliveira.

 

*

 

a mensagem não atravessa esta serra. escuto as passadas do lobo cerval entre as estevas e a ribeira. mesmo que não existam. atravessa-nos. a linguagem é outra, quando distinguimos a água e o nascimento.

 

*

 

vigiamos o medo. dentro do medo. recebemos sobre a pele este corpo sem voz. o horizonte onde nos perdemos. sementes sobre a terra. os animais esperam. regressam ao firmamento. consumidos por algumas palavras. pela chama dos olhos. a madeira seca. voa ao princípio. quando a noite cai e a morte surge. por segundos.

 

*

 

espero. regresso. o sorriso acompanha o declive. o afloramento desta ave à textura dos rochedos. o caminho avança. a calçada desfez-se para que pudéssemos passar. a madre permanece. palavras que ninguém entende, mas todos queremos escutar.

 

*

 

a carne arrefece. incha. o coração bate. com a tília, no telhado. a mão repousa no braço direito. da cadeira. recolhe a água, o bico e as asas. o trilho que não distingo entre os castanheiros. acalento o fogo. o horizonte com cidades ao fundo. vestígios que desaparecerão. com o tempo.

 

*

 

a mão tende o pão. dá-lhe tempo para levedar. coloca-o no forno. quando a temperatura faz crescer o mundo. a sabedoria acontece. saber e sabor encontram a união perfeita.

 

*

 

o odor acompanha-nos. escreve e reescreve a voz da montanha. subo, sem subir, a torre sobre o mundo. vigio a palavra e a imagem. disperso nesta casa fragmentos que a tua mão colherá sob a terra. a legenda nasce, como um túmulo escavado na rocha. vazio. ainda.

 

*

 

o inventário permanece. incompleto. a enumeração desfaz este mundo. para depois o reconstruir. o verbo destrói o movimento. suspende a vida para melhor poder fixá-la no tímpano desta porta.

 

*

 

dia e noite. algumas estrelas durante a tarde. impossíveis. verdadeiras. o corpo desfaz-se. os símbolos regressam ao início. este corpo não escreve. vigia e adormece. para que tudo possa entender. a viagem continua. percorrido o deambulatório, continua. até ao fim da terra.

 

 

 

8

 

desço a escada. encontro no forno essa árvore. a voz. procura acender o lume. a água. acolhe dentro de si sedimentos. fragmentos. de luz. e de memória. § o fogo fertiliza esta árvore. dentro do forno. tenta lavar do sangue os utensílios. ao longe, o telhado renasce. noutras mãos. destila a dor e a palavra. § sem brilho, os olhos contemplam. os carvalhos. o calor da madeira. (este vazio.) a velocidade desse sangue. nesta viagem. § o cabelo recolhe a temperatura. da terra. dissolve tudo. neste caminho virado a poente. a mão segura as asas. tenta encontrar o sono. a respiração – da montanha. e uma gota de água. em silêncio. tenta encontrar uma gota de água. para dissolver este sal que vai queimando a carne – e essa memória.

 

 

 

9

 

abro este túmulo. tento distinguir na pedra a face, enegrecida. o sangue permanece. durante a noite. o telhado desapareceu. os sinos tocam longe da torre e no silêncio. a carne apodrece. alimenta a garganta com essa voz escavada na rocha. § escondo esse lenço sobre a muralha. lanço nesse ventre o lintel que sustentava o edifício. sem olhos,  este corpo procura o local do sacrifício. sobe. sobe sempre. até encontrar, entre duas palavras, o último desenho desse cálice virado a nascente.

 

 

 

10

 

recebe-nos. sobre o abismo. nada vislumbramos no mapa. nem sequer a entrada deste nome, escavado pela água. desço e reencontro a casa. sem travejamento nem madeira. a escuridão ilumina o rosto, na fotografia. o sol há muito desapareceu. com a sua voz feita de tinta. a gruta preenche o estômago, os intestinos, a alma. a escritura sem alma que o vento recebe tantos anos depois. a lápide reconhece-nos. mas seremos nós a figurar no bronze e no tronco desta árvore? nada reconheço deste nome. nem sequer a acentuação da melodia, entre a alegria e o cansaço. nada ficou da humidade do teu corpo. secou com a corda na garganta. permanece em segredo na respiração da pedra. oscilando com o vento.

 

 

 

11

 

ao longe, o vidro e a madeira escurecem. a macieira ilumina o quintal. apenas pedra. e o comércio da água, entre as muralhas e o sangue há muito desaparecido. a língua surge estranha ao corpo e ao olhar. a represa recolhe os passos que desenham a escada. a fotografia espera-nos – tão perto. a estela marca o espírito na terra, o sopro do vento nas confrontações da alma. nada resta do palácio nem do minério. tudo ficou da longa mansão onde o anjo resguarda o oiro e a memória.

 

 

 

12

 

a serenidade acolhe-nos. solene, a serenidade acolhe-nos – como uma tempestade. o mar devolve esse clamor que nos atravessa. a noite satisfaz a cidade e o alimento. faz-nos desaparecer em qualquer encosta virada a poente. § habitamos o espaço, reunindo e multiplicando a linguagem que preside ao desespero. § existiu entre nós uma fronteira? solene, apenas a ventura. interior à luz – como a catedral depois de uma tarde de trovoada (ressurreição ou deslumbramento): a mesma carne, o mesmo sopro na respiração do inverno. § a serenidade recolhe-nos dentro da tempestade. reúne palavras e objectos que ninguém lê, mas que todos compreendem. dissolve assim o arquipélago. o mar dissolve o clamor que nos entende. § o vento abre a janela. para que possamos respirar.

 

 

 

13

 

a eloquência nasce naquela porta. aberta até ao limite da fronteira. as ruas desenham um animal onde o mistério se estreita entre dois vasos. os olhos voltam-se para nascente sem conhecerem sequer o norte e o sul desta linguagem onde telhados e varandas, campanários e laranjeiras desenham em nossos passos a estranheza do horizonte. § subimos à torre. para melhor vermos o círculo que nos une. a esta terra. desce o firmamento. hesita, esta memória, em tocar o bosque cuja língua desaparece. § de súbito. uma águia. a música que escrevemos. para sempre. de regresso à largueza da floresta.

 

 

 

14

 

divido a garganta entre a água e a terra. o mapa levanta-nos. a voz descobre na estrada um fio de sangue estreitando o continente. um fio de ouro, correndo a meio da garganta, no local exacto em que uma palavra secciona a luz e o coração. § uma sílaba afasta-nos do mundo. deste mundo. as torres dissolvem aquele húmus na atmosfera. o arco divide a medula, a rama dos carvalhos. § nada vislumbro neste poço. a lua e o alimento desapareceram. § regresso. ao âmago da terra.

 

 

 

15

 

atravesso as vozes e o mercado. os sinos – embalando o nevoeiro. um pouco de neve. entre as palavras. a fonte. na pedra. esse rosto que dissolvo na sombra e no cansaço. § a chave regressa. o telhado enegreceu. o negrilho desenha esta sede. um fio de luz por entre os lábios, nesta terra - sem vento. guardo nesta mão o prado e a verdura. desço a estrada. o segredo. de algumas palavras. o asfalto. a revolta das estações. o sabor. desse corpo. o forno onde queimo este corpo, na silva e na distância. § as casas escrevem a montanha. a água e o sorriso. cobriram de ferrugem o firmamento. a torre. enegrece. a imagem guarda-nos do frio.

 

 

 

16

 

a geometria acolhe-nos. inscrevo na água a pedra, o pão, a voz. na paisagem. sem telhado, a casa defende-nos. a toalha recolhe a textura da tarde. § queimo este nome. no firmamento. alimento e distância regressam sempre que desço ao interior da sombra. sobre o rio. regressam sempre que eu regresso a este nome sobre a terra.

 

*

 

o ferro marca a passagem. o sabor da água. na paisagem – com vozes dentro. § o lintel recolhe a palavra. o mundo estala. este nome reveste-nos de sombra. § a caligrafia, na pedra, desenha a voz e a memória. o fogo vigia-nos. a sede vigia este poema.

 

*

 

o sal da terra devolve-nos a frescura do forno nesta tarde de julho. as palavras cozem com o pão na margem deste rio. § não é preciso recolher a fuligem. a gilbardeira seca. as raízes continuam. lavrando. o fogo e o caminho.

 

 

 

17

 

sopra-nos do barro. ilumina o cabelo, a voz da montanha. sobre a mesa, a cinza deste corpo. a cidade cresce. sem casas. a respiração queima. lentamente. os olhos, as unhas, a mão. o sangue. § a chama permanece. tão pequena. o calor repousa sobre o musgo. uma lágrima irrompe pela manhã. a gilbardeira coloca, sobre o peito, um pouco de alegria. § nos olhos e no cabelo. nesta mão. as imagens reverdecem. o fogo tece-nos, mesmo à distância. um tronco de árvore. o vento apaga. acende. essa chama nascida no interior da montanha. § a criança sopra. o barro que somos. a palavra aquece-nos. a flama aquece o coração. e o mundo. sobre a mesa, a cinza desse corpo. o corpo navega. flutua. desenha na terra essa criança. nascida sobre as águas.

 

 

 

18

 

guardarei do teu rosto apenas o nome. a dor do espinho rasgando a pele para que nela entre uma palavra, somente uma palavra, gravada na coluna que sustentava a nossa infância. § o mel e o azeite reúnem-se entre flores e mantas de musgo. mesmo no interior da cidade. o pão reveste-nos de sombra. o teu nome reveste-nos de dor nesta noite em que vigiamos o forno do alto da mais alta torre. § pouco ficou da viagem: o rio nutrindo-se da ponte e da figueira. o teu nome – alimentando o sangue que guardo neste poema.

 

 

 

 

latitude

 

 

19

 

aguardo na sombra o sangue. em ruínas, guardo sombras e palavras. o verde dessa melodia. e algumas vozes cantando. recolho na síntese deste corpo, a estrada. os teus olhos vigiando a cidade. respiro a pólvora. desfaço entre os dedos este muro. a linha do comboio. transportando as raízes desta árvore. a madeira seca. § a seiva desce este caminho. a cinza desse caminho. sem passos. sem memória. procuro a voz e o alimento. a semente (a cinza?) que nos dedos germina. na sombra e na saudade. § aguardo o sangue (a morte?). esta memória. a pedra e a cal reconhecem a secura. da pele. em ruínas. os músculos vencem a febre e a cinza. § o pilar subsiste. no centro da avenida. este corpo nasce. como um rebento. entre duas raízes.

 

 

 

20

 

a cicatriz dissolve a memória. a água reparte esta alegria. devolve ao interior das raízes o forno, o vidro, o sopro. da montanha. esta luz durante a tarde? devolvo esta memória. a cor dissolve essa tristeza. o teu rosto numa pasta de sangue. entre duas oliveiras. § o sopro. o forno. a pedra. essa habitação sem medo. essa alegria. a cicatriz alimenta a ramagem. este rio sem barca onde mergulhamos. a angústia. viagens e viagens. a circulação do sangue – há muito coagulado. § o fogo alimenta o coração. funde aquela palavra para sarar a língua e o cabelo. a água reparte esta memória. § guardo, a/guardo um copo vazio. um corpo vazio. o vinho lava a imagem. acolho no pão esse tempo sem regresso. a água re/parte nesta alegria a substância da noite. § a cor divide. este cansaço. regressa. no largo e na saudade.

 

 

 

21

 

não existe passagem. nesta barca dissolverei a parte branca do caminho, no forno que hoje regressa à temperatura do teu corpo. em que tear irei tecer de novo o horizonte? percorro a mina, o fogo e a fogueira. encontro, no odor do campo, um pouco de saliva. a cicatriz permanece. apesar do nome. a ferida corrói a alma. § respiro o sopro do oriente. transfiguras o ouro em madeira – como essa flor que nasce na lanterna. atravessarei a ponte, pela última vez. sem ver que a água reflecte um rosto estranho. nada reconheço. na paisagem e no medo. apenas o calor no cume da montanha. § o sereno acorda-nos. em que século ficou a última página desta língua que enegrece? a saliva congela. percorro a mina, o fogo. encontro a fogueira. não existe passagem. a barca apodrece.

 

 

 

22

 

uma carta. a última carta. esta face virada a nascente. esperando o centro da noite, o interior da fala. § mudo as palavras, mas não consigo mudar a ortografia do universo. desfaço o meu corpo. o sangue vasa. enche de novo esta linguagem com pequenos filamentos. vislumbramos apenas um cordeiro. encontramos o odor da terra depois da última visitação. § aqui. ou em qualquer parte. mesmo prostrado na última cidade. o adobe desfaz-se. com o gelo. a casa dissolve a pedra, o lençol, o livro. a legenda e a lembrança onde vemos aquele ramo segurando a nossa angústia. § a memória revolve esta água. evapora neste mar onde foste depositando a epístola da tua sede. a tinta marca os dedos. a alma – azinheira morta depois do último inverno. § nada recebo desta voz distante. dissolvo este lugar no sangue e no vinho da floresta. § uma carta. a última carta. a dor que armazenaste nos veios do coração.

 

 

 

23

 

o sangue dissolve a cor. o encantamento. descreve esses olhos sem fogo. a saliva correndo por entre os lábios. o vidro estilhaça o cabelo. arde nesta ferida. afoga essa alma. sob o ventre. por entre as ervas. § duas aves submergem a floresta. esvoaçam junto do poço, tentando revelar a corda e o desespero. a fotografia permanece. noutro continente. estilhaça o ventre. os lábios. essa memória. rasga para sempre o sono mais profundo. § as asas mudam de cor. (a criança tenta conter a respiração.) a terra rejeita essa seiva. devolve sem vento a água e a garganta. a fronteira esboroa o coração. a cor dissolve o sangue. o óvulo apodrece entre dois carvalhos. § a raiz agarra esse espelho. a morte encaminha esses lábios para o grande lago. § ao longe, a criança observa a ferida. o braço percorre essa língua. a mão descobre na boca a madeira. (que cinza restará deste silêncio? o arco quebrando a angústia? a torre vigiando a nossa sede?) a água condensa entre as linhas a seiva e o desespero. § sem erva, o pórtico conserva algumas palavras. noutra língua. os limos desenham no tanque esse segredo. a viagem continua. continua enquanto os fantasmas revestem de morte o crepúsculo e a madrugada.

 

 

 

24

 

iluminei os teus passos. o cemitério, longe da cidade, entre rochedos, lágrimas - e uma pequena alegria. uma ferida no olhar. tão longa quanto a neve modelando o caminho que percorremos. a respiração acolhe-nos. o navio, ao longe, dissolve o ouro e a madeira apodrecida. § nada vislumbramos nas duas esferas. o pó e o frio guardam esta monotonia eterna. à superfície, esse verde dos prados dissolve o sangue. abandona os pulmões, a voz, a garganta. ligeiramente trémula. a varanda – e este sopro na circulação. § falar em luto iria embelezar as coisas, dizes olhando de longe o teu irmão. o mundo recolhe esta tristeza. dentro do gelo. um insecto minúsculo que o tempo resguardou como vestígio da última morte na floresta. a chuva incendeia o baile. essa dança ardendo no interior da casa. uma palavra: o movimento. a circulação do sangue espargindo a montanha.

 

 

 

25

 

escreve, sempre de novo, o vento entre os pinheiros. uma chuvada, antes da divisão da terra. no sótão, a mão direita (os dedos demasiado longos). § fragmentos de um texto circundam a abóbada, o comboio, o coração. plantaram carvalhos na encosta, dentro da viagem, na fresta virada a poente. § a legenda continua incompleta. sob as letras nascem letras ainda mais antigas. desapareceram as paredes. a cal onde o texto surgiria. § vizinhos na infância, resguardaram teu sangue nos limites do campo. o sopro que escreveste nas ruínas. o odor que sempre nos iluminou.

 

 

 

26

 

agitada pelo vento, a torre. um grito na montanha. uma porta, tão longe do universo. este livro onde desfaço o mundo. séculos e séculos. alimentando-me deste gelo. § dissolvo a pele, os ossos, o sangue. nesta caverna. recomponho o rosto. coso memórias e desesperos, angústias e espantos. mesmo quando sonhava ia apenas revendo aquele prado antigo rodeado por um pano de muralhas, velando uma parte desse deserto. § uma porta. aberta para que lado? o frio conserva este corpo em agonia. a mão acaricia esta ferida. a cicatriz tarda em aparecer. ao longo das margens, a noite vai caindo. a rua arde. dissolve nesta água a habitação do tempo. § agitada pelo vento, a torre separa-nos do abismo. um sinal na pedra. aquela porta – sinuoso caminho no labirinto do medo.

 

 

 

27

 

a porta esconde-se. um rosto entre as acácias. um rosto dentro da face que a madeira e a mão registam e apresentam. § o sopro procura o silêncio. para fazer crescer a voz. a carpintaria talhando, golpe a golpe, esse rosto. essa porta. na linha que se faz com fragmentos de tecido. de palavras. olhando pela janela o campo. imenso. § a abóbada desceu até junto do homem. deambula pela casa. foi preciso dividir a nave entre a voz e o firmamento. este corpo. a flor junto da imagem. § o rosto acompanha-nos. a porta abre, porém, um universo inteiro. permanece a veneração. a nave vivendo o pão e o segredo. dentro a voz, o sopro. edificam a palavra. neste lugar onde tudo se encontra. um ramo, uma lâmpada. o rosto, no jardim – mais vasto do que o mar.

 

 

 

28

 

uma rosa, no inverno. uma carta a meio de um nocturno de Chopin. no inverno - para arder. uma casa que se muda até à outra ponta da cidade. § a rosa queima a boca, os ouvidos, a mão. o mistério permanece. longe, o deserto escreve na moldura da porta. deste lado, entre as cerejeiras e o alpendre da igreja. § à entrada, o automóvel procura o inverno. a rosa. um incêndio muda a foz. deste rio. a mãe vê nas asas a transformação do sangue. um corpo. a natureza de um corpo. depois da neve.

 

 

 

29

 

recebo o pão. o segredo da água nas linhas do edifício. desenho nesta mão a planta. a raiz desta planta por onde circula o coração. a cidade nasce. dissolve entre os dedos a seiva (a palavra). o fogo dissolve as veias. dispersa a linfa neste pão. nesta sede. com vozes dentro. § as paredes estreitam o sal e o firmamento. o fermento e a língua sob a ponte. sem nome, o corpo paralisa(-nos). congela a pele. e a cidade. a circulação da luz por entre as árvores. § o fogo alimenta este rosto. sob as células. a poeira regista na alma a legenda desta sede. a mão apaga a janela. divide a substância do lugar. a água e o nascimento da terra. § o movimento desfaz a paisagem. abro este pão. coloco no interior a velocidade e o segredo. a escuridão e o vento no repouso da estação.

 

 

 

30

 

quis reconstruir a casa onde cresciam ervas e musgos. sem alma, a escuridão dissolve o mundo. a imagem arde na memória. § quis reconstruir a casa. a pele rebenta nesse corpo onde o plasma descobre caminhos que desconheço. § nada guardo que possa recordar. que frase escreverei no braço direito? conheço apenas o sangue, legenda com que vou decifrando a floresta e o oceano. § a imagem arde. na memória. circula por entre os dedos. o líquido caiu sobre a rocha. adormeceu para esquecer o sonho e o pesadelo. § permanece. a fonte. sobrevoa a cidade. rasga esta página. devorando a alma. lavando as unhas e o cabelo. § o livro destruiu há muito a única imagem sobrevivente. guardo junto do poço esse segredo há tanto tempo sem água. pouco restou. apenas cor. e cor distante. aparência de cor e de textura. aparência de sangue. § este corpo revolta-se. a imagem arde. tenta salvaguardar os glóbulos e as plaquetas. sem alma, a escuridão dissolve o mundo. sem veias, o sangue permanece. noutro largo. noutro coração.

 

 

 

31

 

a língua arde. queima o coração, as veias, as células. entre duas árvores – a corda aperta a garganta. dissolve o anel e a saliva. essa melodia. no interior do dragoeiro. § o incêndio alastra. sempre de negro. sobe a escada. coloca sobre os olhos essa espada. a língua arde. deixa entre as cinzas vestígios de sombra. nada mais encontro entre os escombros. antes da derrocada, levo para longe a última gota de sangue. a saliva preenche o desespero. o sopro do oceano. fico deste lado, junto do medo. § tento salvar a última fronteira. deixei este livro no sopé da montanha. consigo ler. os símbolos, contudo, têm pouca nitidez. mesmo quando os entendo. § a língua arde. a  flama acompanha-nos. neste forno. a chama desfaz os ossos e o cabelo, o anel e a melodia onde tento navegar. § de que vale cruzar o horizonte quando a cinza guarda rebentos e palavras? § o incêndio alastra. deste lado do oceano. o sal lava o corpo e a linguagem. o fogo devora a distância. este fogo. encontra no coração (na terra?) essa ave nascida no início.

 

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