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O
ESTUDO DA TOPONÍMIA (notas metodológicas)
(Ruy
Ventura)
Na
leitura dos topónimos, embora tendo sempre em conta o quanto fogem
à fixação as explicações propostas para a etimologia de um
nome, devemos ter sempre em conta alguns princípios metodológicos
básicos que reduzam o perigo de cairmos em fantasias ou disparates.
Em
primeiro lugar, devemos ter consciência do carácter objectivo da
designação toponímica. Nesse sentido, é importante ter em conta
os princípios defendidos por Álvaro Galmés de Fuentes:
"[…]
al analizar y estudiar la etimologia de cualquier topónimo hemos
de tener en cuenta el hecho de la racionalidad inicial de su
nomenclatura. […] creo que el hablante, creador de la toponímia,
es mucho más racional de lo que parece deducirse de las
explicaciones de algunos etimólogos, y así lo mismo que llama al
pan, pan, y al vino, vino, al monte le llama monte, y a la peña, peña,
y al valle, valle, y al llano, llano, y al río, río, etc. Ahora
bien, para distinguir entre varios montes o varias peñas, puden éstos
recibir adjetivaciones complementarias, pero siempre haciendo
referencia a sus cualidades físicas reales […]." (Fuentes,
1992: 313)
É
crucial ter em conta também a opinião de Galmés Fuentes no que
respeita às transformações sofridas pelos nomes de lugar ao longo
de séculos ou (frequentemente) de milénios:
"[…]
los topónimos, en su evolución o por el desuso de la lengua que
les dio origen, pueden hacerse opacos, y es entonces cuando tiene
lugar la reinterpretación, operada en la conciencia lingüistica
del hablante, que tiende a reagrupar formas etimológicamente
oscuras com raices conocidas de aspecto semejante […]"
(idem)
Nesta
evolução, concordo com o papel interpretativo (e erosivo) das
classes cultas, onde se incluem, numa fase tardia, muitos etimólogos:
"[…]
No es normalmente el pueblo quien más interviene en estas
reinterpretaciones asociativas; con frecuencia son las personas
cultas, y aun los mismos especialistas del lenguaje, a quienes
corresponde mayor participación en ellas. […] / Con respecto a la
toponimia quienes más han intervenido, sin duda, en su alteración
han sido precisamente los profesionales encargados de registrar los
topónimos o de consignarlos en escrituras. Me refiero,
naturalmente, a los secretarios de ayuntamiento, a los
registradores, a los escribanos o a los notarios. Éstos, con
frecuencia foráneos y desconecedores de las peculiaridades lingüisticas
del lugar, son los grandes artífices de llamativas asociaciones
etimológicas. […]" (idem)
É
nossa convicção que a toponímia, apesar de muitas vezes só poder
ser conhecida através de documentos escritos mais ou menos
recentes, é uma manifestação da linguagem oral dos grupos humanos
que ocupam e observam (ou ocuparam e observaram) um determinado
lugar. Daí que muitas designações – embora as suas primeiras
atestações escritas datem apenas do século XIX ou já da centúria
anterior à nossa – sejam de facto muito antigas, várias vezes fósseis
de línguas ancestrais.
Sendo
racionais e distintivos, os topónimos nunca poderão entretanto ser
entendidos sem o contexto em que se inserem ou inseriram. A nomeação
de um lugar nunca pode separar-se da sua geografia, da sua história
e da sua mitologia. Embora nem todos os nomes vejam o(s) seu(s)
significado(s) apoiado(s) em múltiplas referências contextuais,
parece-me imprescindível trabalhar nesta base metodológica, que não
dispensa o conhecimento integrado da cultura local nas suas várias
dimensões. Por isto nos parece muito mais correcto estudar a toponímia
com base num método etnológico do que num método positivista,
seja ele "histórico" (que apenas tem em conta as
atestações escritas, sem as discutir ou criticar, frequentemente)
ou "filológico" (que apenas interpreta os nomes
com base numa sua suposta etimologia, muitas vezes desenraizada).
Na
senda de alguns autores estrangeiros, quem em Portugal mais se tem
preocupado com o desenvolvimento e aplicação desse "método
etnológico" tem sido Moisés Espírito Santo. Dele nos
socorremos para a definição do modo de trabalho:
"[…]
É um método de terreno. Consiste em descobrir a significação
do nome a partir do seu envolvimento geográfico e da sua relação
com os nomes/sítios vizinhos. Parte-se do princípio da
objectividade do nome. Isto é, a nomeação era a objectivação ou
singularização do local. Os nomes significavam qualquer coisa que
existia ou se fazia no local; não eram poéticos nem postos ao
acaso das aparências. Significavam o que lá existia ou se fazia:
'fonte', 'encosta', 'rio', 'porto', 'mina', 'palácio', 'santuário',
'feira'… As populações viviam
em autarcia. Esses
sítios/nomes não necessitavam de outros atributos, uma vez que as
populações que os nomearam eram isoladas e podiam não conhecer
mais nenhum sítio com esse nome. […] / […] O método etnológico
exige, portanto, a observação do terreno ou, pelo menos, o uso
duma cartografia minuciosa e alguma informação etnológica sobre
os sítios. […]" (Espírito Santo, 2004: 351-352).
Segundo
o autor de A Religião Popular Portuguesa, esta prática
metodológica tem aplicação mais pormenorizada através do chamado
"método dos sistemas", proposto em 1927 por Victor
Berard como forma de estudo da toponímia fenícia do Mediterrâneo,
presente na Odisseia de Homero. A interpretação do nome
deve então submeter-se à passagem por três sistemas, em simultâneo
(cf. Espírito Santo, 2004: 352):
1.
"sistema verbal" (correspondência fonética, de
acordo com as regras da linguística);
2.
"sistema local ou geográfico" (o topónimo deve
fazer referência a acidentes naturais do relevo, do sistema hidrológico,
etc.);
3.
"sistema histórico ou lendário" (devem existir
referências históricas ou lendárias relacionadas com o sítio).
Moisés
Espírito Santo aperfeiçoou entretanto este método, aprofundando-o
de maneira a acrescentar-lhe fiabilidade e a permitir o estudo de
alguns topónimos que lhe fugiam, por se referirem "a uma
qualquer actividade social, religiosa, etc., sem relação com a
geografia, e sem ter deixado rastos históricos ou mitológicos".
Acrescentou-lhe assim a regra da "constelação dos nomes":
"[…]
tendo em conta o 'sistema verbal' (a evolução da palavra
segundo as regras linguísticas), a significação de um nome estará
garantida quando ela tiver relação com a significação dos nomes
em volta: o nome vizinho pode ser um sinónimo ou uma tradução
noutra língua […]. Pode o nome estar numa relação de
complementaridade com os vizinhos […]. Esta regra da constelação
pode testar-se, comparando com os nomes idênticos doutras regiões,
porque os topónimos […] são repetitivos e, observando bem, podem
organizar-se por constelações de nomes." (Espírito
Santo, 2004: 352)
Segundo
o mesmo autor, há no entanto um cuidado a ter:
"[…]
da actual coincidência de dois nomes em regiões diferentes não
se deduz, automaticamente, que ambos tenham tido a mesma origem no
passado. Com origens verbais diferentes, podem ter evoluído
foneticamente para o mesmo nome, nomeadamente pela força da escrita
e dos registos. Há que interpretá-los dentro dos respectivos
contextos." (idem)
2.
À
semelhança do que acontece na chamada "toponímia rural",
até meados do século XIX a toponímia urbana era também meramente
funcional. Ninguém se preocupava, como hoje, em impor os seus
valores ou ideais políticos, tornando a designação do espaço uma
"simples convenção [resultante] de cíclicas ondas
comemorativas que espalharam por todas as vilas e cidades
portuguesas nomes e datas que o correr do tempo tem esvaziado de
sentido" (Andrade, 1993: 123), chegando a apagar
oficialmente nomenclaturas antigas, sem olhar ao risco de apagamento
de uma parte significativa da memória colectiva.
A
toponímia antiga, fosse rural ou urbana, partia do conhecimento
profundo dos lugares, nascendo da observação cuidada e
experimentada para a nomeação dos múltiplos espaços da
localidade e sua envolvência. Não eram portanto necessárias
quaisquer placas de identificação ou outros elementos
oficializando e fixando a designação, como acontece nos nossos
dias. Bastava o conhecimento empírico e a transmissão oral, sendo
a oficialização (sempre relativa e provisória, coexistindo por
vezes várias designações atribuídas ao mesmo local) apenas um
modo de consagrar (interpretando, frequentemente mal, a oralidade)
nos documentos escritos (alvarás, escrituras, tombos, registos
paroquiais e outros) aquilo que já corria na voz dos habitantes
desses lugares há vários séculos ou milénios.
Está
mais ou menos estabelecida a ideia de que o processo de atribuição
de topónimos por decisão oficial se terá iniciado em meados do século
XIX com a Regeneração (embora ainda no Antigo Regime, a partir do
governo do Marquês de Pombal, se verifiquem episódios pontuais com
uma atitude semelhante perante a nomeação do espaço). Esta estratégia
tem visado sobretudo objectivos doutrinários, de forma a levar as
populações a assumirem como seus os valores dos sucessivos regimes
políticos – embora com resultados práticos muito débeis,
perante uma memória colectiva secular ou milenar que, na grande
maioria dos casos, teima manter em uso os nomes antigos, desprezando
ou esquecendo os oficiais (cf. Ventura, 2002: 416). Paralelamente, a
nomeação oficial tem visado ainda a valoração pública de
personalidades dos domínios político ou social, ora consagrando
figuras locais ora homenageando actores nacionais – que o tempo,
muitas vezes, se encarrega de mergulhar (justa ou injustamente) no
esquecimento.
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