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AL BERTO E JOAQUIM CARDOSO
DIAS
(vislumbres
de uma amizade)
(Ruy Ventura)
A grande maioria dos
poetas, após a sua morte, tende a entrar num limbo que precede ou o
esquecimento ou uma consagração duradoura. Numa sociedade como a
nossa – em que a exposição pública nos grandes meios de comunicação
social faz a notoriedade dos seres, mas nunca o seu génio –, a
ausência física de um autor pode relegá-lo para as caves de um
injusto (ou justo) esquecimento. A não ser que, previdente, tenha
tratado em vida da sua presença póstuma, tenha deixado uma
influência suficientemente forte para permitir uma continuidade
temporal ou uma obra dotada de importância incontestável. Há ainda o
caso de herdeiros diligentes ou de amigos bem colocados que, para
não desmentirem as devoções manifestadas durante a presença
biológica do poeta (seria vergonhoso reconhecer um erro ou uma
amizade interesseira...), continuam a incensá-lo. Temos, depois, os
casos (transversais) de necrofilia ou de antropofagia, em que certas
hienas do meio literário aproveitam o silêncio de um autor morto
para se banquetearem à vontade com a sua obra suculenta,
manipulando-a ou mostrando dela apenas aquela parte que não incomoda
ninguém ou, sobretudo, não macula a sua própria imagem de “especialistas”.
Existem sempre, é claro,
os amigos e os leitores desinteressados que se encarregam de zelar
pelo futuro da arte édita e/ou inédita dos seus poetas, mas esses
pertencem a outro campo – e não é bom misturar o ouro com a trampa...
Reconheçamos, no
entanto, com Fernando Pessoa: “o presente não vê para além do
óbvio.” O futuro, às vezes longínquo, é sempre o grande juiz. O
autor de Heróstrato ou a busca da imortalidade chega
mesmo a afirmar: “Não é possível servir simultaneamente a nossa
época e todas as outras, nem escrever o mesmo poema para
deuses e homens.” E acrescenta: “Que as obras superiores
acabam sempre por se evidenciar no decurso da sua futuridade é
verdadeiro; mas também é verdadeiro que uma obra meritória de
segunda categoria acaba sempre por se evidenciar na sua própria
época. / [...] / Se o grande poeta aparecesse, quem aqui estaria
para reparar nele? Quem poderá dizer se não apareceu já? O público
leitor vê nos jornais recensões da obra de homens cuja influência e
amizades os tornaram conhecidos, ou cuja subalternidade os tornou
aceites pela multidão. O grande poeta pode já ter aparecido [...].”
*
Quer se goste quer não
da poesia de Al Berto, todos temos a obrigação de reconhecer que o
autor d’ O Medo tem, por enquanto, fugido ao limbo que
sucede aos poetas mortos. Em parte porque foi/é um autor influente –
com a sua poesia desmedida, de um confessionalismo torrencial,
matizado por imagens surreais –, em parte porque os seus herdeiros
materiais têm diligenciado pela contínua publicação e divulgação da
sua obra (por vezes em edições que nada acrescentam à glória do
autor, mas apenas ao pecúlio de quem recebe os direitos), em parte
porque a sua personalidade transgressora mas afectiva deixou marcas
fundas de amizade em seres que, desinteressadamente, pensam ser seu
dever pugnar pela memória integral do poeta de Horto do
Incêndio, mesmo que isso os obrigue a sofrer a hostilidade
de alguns habitantes das trevas do nosso pífio meio literário.
Joaquim Cardoso Dias –
autor de um auspicioso O Preço das Casas – pertence ao
último grupo. Fiel a uma amizade intensa (“Al Berto [...] foi o
mais perfeito dos amigos que a vida me ofereceu”), resolveu
organizar um livro como forma de homenagem ao autor nos dez anos da
sua morte. Sem interesses subreptícios. Apenas com o desejo de
conservar a presença de um ser humano singular feito poeta. Apesar
de, noutros tempos de maior inocência, não ter reconhecido a dura
verdade das palavras de Pidwell Tavares (“Vivemos num país de
merdas, Quim”), Joaquim Cardoso Dias vê-se obrigado a revelar no
prefácio que “todos aqueles que de qualquer forma ou de todas as
maneiras tentaram impedir a edição desta antologia [...] pensaram
que este livro de homenagem a Al Berto seria um perigo explícito
para as suas mentes perversas, circulares, mesquinhas”.
Dez Cartas para Al
Berto, Dez Cartas de Al Berto é um
belo livro, introduzido por um texto de Joaquim Cardoso Dias com
passos comoventes. Discreto, atinge os seus objectivos. Entre as “quase
duas centenas de cartas, postais, poemas, textos, recados, convites,
confidências, desabafos, conselhos e tanta solidão”, o
organizador escolheu uma dezena de missivas, de modo a apresentar “uma
espécie de microbiografia” do autor, embora tendo o cuidado de
seleccionar textos que não revelassem ou expusessem “entidades,
acontecimentos ou situações susceptíveis de ferir ou desnudar
atitudes, ressentimentos e interesses que se referem à vida privada
de pessoas que conviveram com Al Berto”. Convidou ainda dez
escritores (Alexandre Nave, Fernando Pinto do Amaral, Francisco José
Viegas, José Agostinho Baptista, José Luís Peixoto, Luís Quintais,
Nuno Artur Silva, Nuno Júdice, Tiago Torres Silva e Vasco Graça
Moura) que aceitassem homenagear o poeta, comentando ou escrevendo a
partir de cada uma das cartas, os quais produziram textos com género,
intensidade e interesse muitos diferentes.
Leitor assíduo de textos
íntimos de artistas de todo o mundo, neste livro interessam-me
sobretudo as dez cartas do poeta homenageado, reproduzidas em
fac-símile e cuidadosamente transcritas. Se não constituem, de
facto, uma “microbiografia” de Al Berto, estruturam-se
enquanto retrato revelador, políptico com os traços sinuosos de
Lucien Freud ou de Francis Bacon. Em todas elas, desnudam-se um
imenso abandono e uma enorme melancolia, cortados apenas pela
necessidade de intensificar um contacto epistolar e uma amizade que
se estruturam enquanto analgésicos possíveis, enquanto dádivas: “é-me
tudo tão indiferente, distante, aborrecido. mas por hoje basta de
lamúria. tenho-te a ti, a quem escrevo, e que me dá imenso prazer
fazê-lo. não devia queixar-me tanto.”
Quem deseje conhecer um
pouco melhor a verdadeira face do poeta que se refugiava por vezes
em Sines – localidade com que tinha uma relação contraditória (“nada
é como era há alguns anos. tudo se modificou. as pessoas voltaram a
uma espécie de bimbalhice surpreendente. Aflitivo.”) –, tem
neste livro documentos indispensáveis. Entre 30.06.1989 e 17.04.1997
existiu uma intensa amizade entre dois autores que, quando um dia
for totalmente revelada nas suas epístolas, permitirá entender
melhor não só os sujeitos escreventes, mas também o meio literário e
artístico em que se inseriram. Vislumbre desse documento, estas dez
cartas merecem o tempo devotado à sua leitura.
Duas frases de Al Berto
ficam na cabeça, talvez como máximas de vida. Conhecemos a doença
que o afectava quando as escreveu, meses antes de morrer. Mas, mesmo
assim, teimam não sair da memória: “Apenas o silêncio... depois
da barafunda. Olhar para dentro e limpar... limpar – apenas o
silêncio.”
Joaquim Cardoso Dias
(org.) Dez Cartas para Al Berto, Dez Cartas de Al Berto.
Quasi Edições, 2007
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