A
fogueira, os amores e as espadas de São João
(Ronaldo Braga)
para
aquela cruz das almas que um dia eu amei
O sol ainda não nascera e eu acordei e me
levantei de um pulo, era 23 de Junho de 1972 e eu tinha muita coisa pra
fazer.
Fui até o Karrate, comprei pão e manteiga,
já em casa observei minha mãe acender o fogão e preparar o café, tomei o
meu com pão e saí e fui pro trabalho de meu pai e ali fiquei até o final
do dia.
Foi o dia mais longo de minha vida, eu
completamente afobado e somente pensando em sair na noite gritando:
São João passou por aqui?
Era sempre garantido que em cada três casas
duas atendessem. Eu, Lau, Beneu, Fau (o sofá) e o Nem, duas horas depois, já
bêbados, trocávamos as pernas.
Depois de tomar mais um licor, saímos da
casa do senhor Godofredo, localizada na praça Senador Temístocles, e
enfrentamos a grande batalha de espadas.
Seu Sampaio colocava fogo em mais uma e o
assobio ganhou a noite e nos fez correr pra trás de uma árvore. Ali
protegidos a gente gritava a todo pulmão:
- É agua. É agua. É agua.
Estávamos todos atentos e assim que uma
daquelas espadas se enroscava em alguma fenda corríamos e pegávamos e jogávamos
de volta pro lugar de origem. Essa festa era de alegria e alguma morte, mas
nem somente pelo álcool, e sim e principalmente a raiva e a impotência de
alguns que se utilizavam deste momento festivo e se vingavam de algum
desafeto.
Toda a cidade estava rodeada de fogueiras,
casas ricas, casas pobres.
Havia sempre uma fogueira acesa, um licor de
jenipapo e uma laranja já descascada pra quem chegar bater palmas e alto ou
baixo gritar:
- São João passou por aqui?
A cidade fervilhava alegrias e prazeres, e em
cada cantinho casais faziam crescer todas as empolgações. Era barulhenta a
noite, e as promessas, os urros e os gemidos lutavam contra os gritos de
meninos e meninas de todas as idades correndo atrás de uma espada fumegante
a subir e a descer e a bater em casas e arrombarem portas e vidros e
janelas.
A minha cabeça já completamente tonta e
cheia de zunidos, pensava na rua Assembleia de Deus, que ficava longe do
centro e bem junto da pista, mas ainda era cedo e eu precisava ficar mais bêbado
e então ser o homem de ferro e olhar aquela menina e quem sabe beijá-la.
Eu tinha um plano e só era preciso chegar perto dela, eu a olharia como o
Django olhou aquela morena no ultimo filme que eu tinha visto e de repente e
sem aviso prévio daria um beijo bem na boca e então o mundo todo seria
azul, verde, lilás e quem sabe apenas vermelho como as brasas das fogueiras
que impiedosamente queimavam lenha e iluminavam fielmente todos os bêbados.
Mas ainda era cedo e eu apenas um menino de
13 anos e bêbado não o suficiente.
Era meia noite e depois que as espadas começaram
a rarear o grupo então ganhou a direção da pista, e por sorte eu tinha
encontrado a turma do Coelho, irmão da mulher dos meus sonhos, e então o
grupo agora maior era somente esperança de comer queijo, bolos, galinha
assada e mais licores, eu somente pensava nela que na casa deveria sorrir e
me ignorar como sempre.
Coelho foi amável e atencioso e ao chegar me
avisou:
- Cara, a minha mana te detesta, acha sua
poesia ruim e tocou fogo na ultima que você me mandou entregá-la.
Ao ouvir isso em vez de desabar eu sorria e
pensava:
Ela me ama e de verdade, só que não sabe
ainda.
O Coelho preparou um prato com tudo o que
tinha na casa, algumas espadas corriam pelo passeio queimando o chão
delicadamente, todos corriam pra tentar segurar uma, eu ali somente pensava
nela e a esperava e quando ela veio eu quase desmaio, como estava bela
naquele vestido verde com linhas azuis e detalhes caipiras. Ela me olhou e
simplesmente chamou um nome e um rapaz que devia ter 18 anos apareceu a
agarrou e a beijou.
Eu bebi quase que um litro de licor de pêssego,
e depois um outro de jenipapo, comecei a passar mal e vomitei bem em cima do
sofá da casa de minha amada, o pai dela me levou até o banheiro e depois
nos mandou embora de forma dura e educada. No passeio segurando uma espada
que acabara de acender o Coelho ria e ria e ria, ele não tinha me dito que
o tal do fora da lei estava na cidade e eu então fui dormir e ali encontrar
toda a felicidade que uma cidade inteira me negava.
Hoje trinta e sete anos depois, eu me lembro
desses momentos e eles me parecem inexistentes, pois já não há mais
fogueiras acesas e os corações frios se aquecem na base de porradas e
mentiras, as espadas já não podem mais deslizar delicadamente e os bêbados
sangram na noite depois dos bolsos revirados e as portas agora fechadas e os
ouvidos surdos.
Aquela frase mágica já não tem mais nenhum
efeito e ao contrário pode ser um grande perigo, pois de dentro dos lares
cristãos ouvimos algumas vezes vozes muito zangadas:
- Vai roubar o diabo, filho da puta. São João
não passa por aqui.
Bom, se você estiver em Cruz Das Almas, no
dia 23 de Junho no século 21, não diga essa frase, pois o pior pode
acontecer.
- São João passou por aqui?
um dia mágica e que embalava meus sonhos,
hoje na melhor das hipóteses piada ou meramente lembranças.
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