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Nicolau Saião

 

A fogueira, os amores e as espadas de São João

 

(Ronaldo Braga)

 

para aquela cruz das almas que um dia eu amei

 

 

O sol ainda não nascera e eu acordei e me levantei de um pulo, era 23 de Junho de 1972 e eu tinha muita coisa pra fazer.

Fui até o Karrate, comprei pão e manteiga, já em casa observei minha mãe acender o fogão e preparar o café, tomei o meu com pão e saí e fui pro trabalho de meu pai e ali fiquei até o final do dia.

 

Foi o dia mais longo de minha vida, eu completamente afobado e somente pensando em sair na noite gritando:

São João passou por aqui?

Era sempre garantido que em cada três casas duas atendessem. Eu, Lau, Beneu, Fau (o sofá) e o Nem, duas horas depois, já bêbados, trocávamos as pernas.

Depois de tomar mais um licor, saímos da casa do senhor Godofredo, localizada na praça Senador Temístocles, e enfrentamos a grande batalha de espadas.

 

Seu Sampaio colocava fogo em mais uma e o assobio ganhou a noite e nos fez correr pra trás de uma árvore. Ali protegidos a gente gritava a todo pulmão:

 

- É agua. É agua. É agua.

 

Estávamos todos atentos e assim que uma daquelas espadas se enroscava em alguma fenda corríamos e pegávamos e jogávamos de volta pro lugar de origem. Essa festa era de alegria e alguma morte, mas nem somente pelo álcool, e sim e principalmente a raiva e a impotência de alguns que se utilizavam deste momento festivo e se vingavam de algum desafeto.

 

Toda a cidade estava rodeada de fogueiras, casas ricas, casas pobres.

 

Havia sempre uma fogueira acesa, um licor de jenipapo e uma laranja já descascada pra quem chegar bater palmas e alto ou baixo gritar:

 

- São João passou por aqui?

 

A cidade fervilhava alegrias e prazeres, e em cada cantinho casais faziam crescer todas as empolgações. Era barulhenta a noite, e as promessas, os urros e os gemidos lutavam contra os gritos de meninos e meninas de todas as idades correndo atrás de uma espada fumegante a subir e a descer e a bater em casas e arrombarem portas e vidros e janelas.

 

A minha cabeça já completamente tonta e cheia de zunidos, pensava na rua Assembleia de Deus, que ficava longe do centro e bem junto da pista, mas ainda era cedo e eu precisava ficar mais bêbado e então ser o homem de ferro e olhar aquela menina e quem sabe beijá-la. Eu tinha um plano e só era preciso chegar perto dela, eu a olharia como o Django olhou aquela morena no ultimo filme que eu tinha visto e de repente e sem aviso prévio daria um beijo bem na boca e então o mundo todo seria azul, verde, lilás e quem sabe apenas vermelho como as brasas das fogueiras que impiedosamente queimavam lenha e iluminavam fielmente todos os bêbados.

 

Mas ainda era cedo e eu apenas um menino de 13 anos e bêbado não o suficiente.

 

Era meia noite e depois que as espadas começaram a rarear o grupo então ganhou a direção da pista, e por sorte eu tinha encontrado a turma do Coelho, irmão da mulher dos meus sonhos, e então o grupo agora maior era somente esperança de comer queijo, bolos, galinha assada e mais licores, eu somente pensava nela que na casa deveria sorrir e me ignorar como sempre.

 

Coelho foi amável e atencioso e ao chegar me avisou:

 

- Cara, a minha mana te detesta, acha sua poesia ruim e tocou fogo na ultima que você me mandou entregá-la.

 

Ao ouvir isso em vez de desabar eu sorria e pensava:

 

Ela me ama e de verdade, só que não sabe ainda.

 

O Coelho preparou um prato com tudo o que tinha na casa, algumas espadas corriam pelo passeio queimando o chão delicadamente, todos corriam pra tentar segurar uma, eu ali somente pensava nela e a esperava e quando ela veio eu quase desmaio, como estava bela naquele vestido verde com linhas azuis e detalhes caipiras. Ela me olhou e simplesmente chamou um nome e um rapaz que devia ter 18 anos apareceu a agarrou e a beijou.

 

Eu bebi quase que um litro de licor de pêssego, e depois um outro de jenipapo, comecei a passar mal e vomitei bem em cima do sofá da casa de minha amada, o pai dela me levou até o banheiro e depois nos mandou embora de forma dura e educada. No passeio segurando uma espada que acabara de acender o Coelho ria e ria e ria, ele não tinha me dito que o tal do fora da lei estava na cidade e eu então fui dormir e ali encontrar toda a felicidade que uma cidade inteira me negava.

 

Hoje trinta e sete anos depois, eu me lembro desses momentos e eles me parecem inexistentes, pois já não há mais fogueiras acesas e os corações frios se aquecem na base de porradas e mentiras, as espadas já não podem mais deslizar delicadamente e os bêbados sangram na noite depois dos bolsos revirados e as portas agora fechadas e os ouvidos surdos.

 

Aquela frase mágica já não tem mais nenhum efeito e ao contrário pode ser um grande perigo, pois de dentro dos lares cristãos ouvimos algumas vezes vozes muito zangadas:

 

- Vai roubar o diabo, filho da puta. São João não passa por aqui.

 

Bom, se você estiver em Cruz Das Almas, no dia 23 de Junho no século 21, não diga essa frase, pois o pior pode acontecer.

 

- São João passou por aqui?

 

um dia mágica e que embalava meus sonhos, hoje na melhor das hipóteses piada ou meramente lembranças.

 

 

 

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