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Alberto Lacet

 

Poemas de Francisco de Quevedo

 

 

SONETO

 

De minha pátria os muros eu mirava,

feitos outrora, e então desmoronados;

da carreira do tempo já cansados,

da qual sua bravura caducava.

 

Saí ao campo, e vi que o sol tragava

os arroios do gelo desatados;

e pelos montes a queixar-se os gados,

pois com sombras ao dia a luz furtava.

 

Entrei em casa, vi que, amarfanhada,

era os despojos de um antigo lar,

meu báculo mais curvo e menos forte;

 

vencida pela idade a minha espada,

e não encontrou coisa o meu olhar

que lembrança não fosse já da morte

 

 

 

APRECIANDO O AUTOR A SOLIDÃO E OS SEUS ESTUDOS

 

Retirado na paz destes desertos,

com poucos, porém doutos livros juntos,

vivo em conversação com os defuntos,

os mortos a escutar com olhos certos.

 

Se não sempre entendidos, sempre abertos,

emendam ou secundam meus assuntos,

e em musicais, calados contrapontos,

ao sonho de viver falam despertos.

 

Grandes almas, que a morte nos suprime,

das injúrias dos anos vingadora,

o alto saber liberta que se imprime.

 

Escapa em fuga irrevogável a hora,

mas aquela o melhor cálculo estime

que na lição e estudos nos melhora.

 

 

 

A ROMA SEPULTADA EM SUAS RUÍNAS

 

Roma buscas em Roma, ó peregrino,

e não achas em Roma a mesma Roma:

por um cadáver estes muros toma,

e de si próprio túmulo o Aventino.

 

Onde reinava jaz o Palatino;

gasta o tempo as efígies e as retoma,

e das batalhas o destroço assoma

mais das idades que brasão latino.

 

Só o Tibre ficou, cuja corrente,

se cidade regou, já sepultura

chora-a com um funesto som dolente.

 

De tua glória, ó Roma, e formosura

fugiu o que era firme, e hoje somente

o fugitivo permanece e dura.

 

 

 

AMANTE AGRADECIDO COM AS LISONJAS MENTIROSAS DE UM SONHO

 

Ai, Floralva, este sonho me ocorreu. –

Digo-o? Sim, pois foi sonho: eu te gozava.

E quem, senão o amante que sonhava,

Juntara tanto inferno a tanto céu?

 

Meu fogo à tua neve e ao gelo teu,

Como flechas opostas numa aljava,

Mesclava o amor, e honesto é que os mesclava,

Mais meu espanto, no desvelo seu.

 

E eu disse: “Queira amor, ou queira a sorte,

Que eu não durma jamais, se estou desperto,

Ou durma, e não desperte – não me importo. ”

 

Mas despertei do doce desconcerto,

E vi que estava vivo com a morte,

E vi que com a vida estava morto.

 

 

 

LETRILHA SATÍRICA

 

Poderoso cavaleiro

É Don Dinheiro.

 

Ai mãe, ao ouro me atrelo:

Meu amante e meu amado;

Pois, de puro enamorado,

Anda sempre de amarelo;

Que, pois, ou gordo ou magrelo,

Faz tudo aquilo que quero,

Poderoso cavaleiro

É Don Dinheiro.

 

Nasce nas Índias, honrado,

E de lá o mundo o acompanha,

E vem cá, morrer na Espanha,

Sendo em Gênova enterrado;

E, pois, quem o traz ao lado,

Não é feio, mas faceiro,

Poderoso cavaleiro

É Don Dinheiro.

 

É galante, é como um ouro,

E tem matizada a cor;

Pessoa de alto valor,

Tanto cristão quanto mouro,

Pois dá e toma o decoro,

E derruba um foro inteiro,

Poderoso cavaleiro

É Don Dinheiro.

 

São seus pais os principais,

E é de nobres descendente,

Porque nas veias do Oriente

Todos os sangues são reais;

E, pois, é quem faz iguais

O grão duque e o pegureiro,

Poderoso cavaleiro

É Don Dinheiro.

 

Mas quem não se espanta e pela

De ver, glorioso e sem tacha,

Que em seu círculo se encaixa

Dona Blanca de Castela?

Porém, que ao baixo dá sela,

E o covarde faz guerreiro,

Poderoso cavaleiro

É Don Dinheiro.

 

Seus escudos e armas nobres

São sempre tão principais

Que sem seus escudos reais

Só há escudos de armas pobres,

E, pois, que juntando cobres

Dá cobiça ao próprio ferro,

Poderoso cavaleiro

É Don Dinheiro.

 

Por contar tanto nos tratos

E dar tão sérios conselhos,

Até nas casas dos velhos

Gatos o guardam de gatos.

E, porque rompe recatos

E abranda o juiz mais severo,

Poderoso cavaleiro

É Don Dinheiro.

 

E tem tanta majestade

(Mesmo entre desgostos fartos),

Que, se o transformas em quartos,

Não depõe a autoridade:

Antes, pois dá qualidade

Ao mais grandioso e ao rasteiro,

Poderoso cavaleiro

É Don Dinheiro.

 

Nunca vi damas ingratas

Aos seus gostos e afeições,

Que ante as caras dos dobrões

As suas fazem baratas;

E, porquanto faz bravatas

Com sua bolsa, matreiro,

Poderoso cavaleiro

É Don Dinheiro.

 

Mais valem em qualquer terra

(Observa o quanto é sagaz!)

Os seus escudos na paz

Do que mil broquéis na guerra,

E que, se ao pobre ele enterra,

E faz próprio o forasteiro,

Poderoso cavaleiro

É Don Dinheiro.

 

 

 

LAMENTAÇÃO AMOROSA E DERRADEIRO SENTIMENTO DO AMANTE

 

Não me aflige morrer, nem recusado

Tenho o fim do viver, ou pretendido

Alargar esta morte, que nascido

Com ela e a vida foi o meu cuidado.

 

Sinto ter de deixar desabitado

Corpo do amante espírito querido,

Deserto um coração sempre incendido,

Onde, reinando, o amor foi hospedado.

 

Meu ardor dá sinais de fogo eterno,

E de tão longa e sofredora história

Há de ser escritor meu pranto terno.

 

Lisi, está a me dizer ora a memória,

Que se tal glória eu a padeço inferno,

Que chame ao padecer tormentos glória.

 

 

 

PERSEVERA NA EXAGERAÇÃO DE SEU AFETO AMOROSO E NO EXCESSO DE SEU PADECER

 

Da alma nos fundos claustros a ferida

Calou-se; mas consome árdua e febrenta

A vida, que nas veias me alimenta

A chama das medulas estendida.

 

Bebe, hidrópica, o ardor a minha vida,

Que ora cinza amorosa e macilenta,

Cadáver do formoso incêndio, ostenta

Em fumo e noite sua luz perdida.

 

À gente fujo, e horror suponho o dia;

Dilato em largas vozes negro pranto,

Que a surdo mar a minha pena envia.

 

Entre os suspiros vãos da voz do canto,

Na confusão minha alma se extravia,

Meu coração é reino só do espanto.

 

 

 

PROSSEGUE NO MESMO ESTADO DE SEUS AFETOS

 

Meu senso ocupa amor e os meus sentidos:

Absorto estou em êxtase amoroso,

Não me concede trégua nem repouso

Esta civil peleja dos nascidos.

 

Espraiou-se o caudal dos meus gemidos

Pelo grande distrito, e doloroso

Do coração, em seu penar ditoso,

E afogou-me as lembranças em olvidos;

 

Ruínas sou todo, e todo padecer,

escândalo funesto dos amantes

que de lástima fazem seu prazer.

 

Os que hão de ser e os que já foram antes

Comparem sua saúde ao meu gemer

E invejem minha dor, se são constantes.

 

 

 

ZOMBA DOS QUE COM OFERTAS QUEREM GRANJEAR DO CÉU PRETENSÕES INJUSTAS

 

Para comprar os fados mais propícios,

Tomas a divindade por vendeira

E vais com o melhor touro da ribeira

Ofertar cautelosos sacrifícios.

 

Pedes felicidades aos teus vícios;

E para a tua nau rica e usureira

Vento dosado e onda lisonjeira,

Merecendo bem antes precipícios.

 

Para que exceda a conta teu tesouro,

Tua ambição, não Júpiter enganas,

Que deitou as montanhas sobre o ouro.

 

E, quando a ara no quente sangue banhas,

Escrutas as entranhas de teu touro,

E está escrutando Deus tuas entranhas.

 

 

 

CHAMA PELA MORTE

 

Vem já, medo dos fortes e dos sábios,

Dirá a alma indignada com gemido

Já entrada nas sombras, e do olvido

Se fartarão enfim meus secos lábios.

 

Por tal maneira Cúrios, Décios, Fábios

Foram; por tal há de ir quanto é nascido;

E, se queres a alguém ser merecido,

Com a vida põe fim aos meus agravos.

 

Esta lágrima ardente com que miro

O negro cerco, que afinal me acua,

É natureza só, não sentimento.

 

Com o primeiro ar este suspiro

Comecei, e o pesar meu se conclua,

Porque me deva todo ao monumento.

 

 

(Traduções de Renato Suttana)

 

 

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