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Dois poemas de Pablo Neruda

 

 

CANTO SOBRE UMAS RUÍNAS

 

Isto que foi criado e dominado,

isto que foi umedecido, usado, visto,

jaz – um pobre lenço – entre as ondas

de terra e negro enxofre.

                                    Como o botão ou o peito

se levantam para o céu, como a flor que sobe

desde o osso destruído, assim as formas

do mundo apareceram. Ó pálpebras,

ó colunas, ó escadas!

                                  Ó profundas matérias

agregadas e puras: quanto até serem sinos!

quanto até serem relógios! Alumínio

de azuis proporções, cimento

grudado ao sonho dos seres!

                                           O pó se congrega,

a borracha, o lodo, os objetos crescem

e as paredes se levantam

como parreiras de obscura pele humana.

                                                            Ali dentro em branco, em cobre,

em fogo, em abandono, os papéis cresciam,

o choro abominável, as prescrições

levadas à noite até a farmácia enquanto

alguém com febre,

a seca têmpora mental, a porta

que o homem construiu

para não abrir jamais.

                                Tudo se foi e caiu

brutalmente murcho.

                                Utensílios feridos, telas

noturnas, espuma suja, urinas justamente

vertidas, bochechas, vidro, lã,

cânfora, círculos de fio e couro, tudo,

tudo por uma roda devolvido ao pó,

ao desorganizado sonho dos metais,

todo o perfume, todo o fascinado,

tudo reunido em nada, tudo caído

para não nascer nunca.

                                    Sede celeste, pombas

com cintura de farinha: épocas

de pólen e cacho, vejam como

a madeira se destroça

até chegar ao luto: não há raízes

para o homem: tudo descansa apenas

sobre um tremor de chuva.

                                        Vejam como apodreceu

o violão na boca da fragrante namorada:

vejam como as palavras que tanto construíram

agora são extermínio: observem sobre a cal e entre o mármore desfeito

o rastro – já com musgos – do soluço.

 

 

 

LARINGE

Agora vai foi o que disse
a Morte e então me pareceu
que ela me olhava, que me olhava.

Isto ocorreu em hospitais,
em corredores apinhados,
e o médico me averiguava
com pupilas de periscópio.

Pôs a cabeça em minha boca,
arranhava minha laringe:
ali talvez uma semente
da morte tivesse caído.

No princípio me fiz fumaça
para que a cinzenta somente
sem me reconhecer passasse.
Fiz-me de bobo, de delgado,
de simples e de transparente:
queria apenas ser ciclista
e correr aonde não estivesse.

Depois a raiva me invadiu
e eu disse: Morte, filha da puta,
até quando nos interrompes?
Já não te bastam tantos ossos?
Então vou dizer-te o que penso:
não discriminas, és é surda
e inaceitavelmente estúpida.

Por que pareces me indagar?
Que queres com o meu esqueleto?
Por que não levas o infeliz,
o catalético, o astucioso,
o amargo, o infiel, o duro,
os assassinos, os adúlteros,
o juiz prevaricador,
o mentiroso jornalista,
ou esses tiranos das ilhas,
os que incendeiam as montanhas,
os chefes de polícia com
os carcereiros e os ladrões?
Por que hás de me levar a mim?
Que tenho que ver com o céu?
E os infernos não me convêm
e me sinto bem nesta terra.

Com estas vocifereações
mentais é que eu me sustentava,
enquanto uma dor intranquila
passeava pelos meus pulmões:
ia de brônquio em brônquio como
passarinho de galho em galho:
eu já não sentia a garganta,
minha boca se abria como
o focinho de uma armadura,
e por minha laringe o doutor
de bicicleta entrava e saía
até que sério, incorrigível,
me olhou com o seu telescópio
e da morte me separou.

Não era o que se acreditava.
Desta vez não me concernia.

Se lhes digo que sofri muito,
que queria o fim do mistério,
que Nosso Senhor e Senhora
me esperavam em sua palmeira,
se lhes digo o meu desencanto
e que me devora uma angústia
de não ter a morte iminente,
e se digo como a galinha
que me morro porque não morro,
deem-me um pontapé na bunda
como castigo a um mentiroso.

 

(Traduções de Renato Suttana)

 

 

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