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PÁGINA
DE DIÁRIO
(Renato
Suttana)
Saída
ontem, à noite, para um passeio na rua. Havia – como se diz –
uma forte necessidade de “espairecer”, até porque a melancolia
do domingo pesava em excesso, gerando a necessidade do alívio.
Lembremos a bebedeira (despropositada) do sábado e o mal-estar de todo o domingo, com uma vasta produção de
pensamentos infecundos. Como a bebida nos causa transtorno! E o pior
de tudo não é o desconforto físico (essa fraqueza medonha e crônica
que persegue os bebedores contumazes), mas essa dissolução mesma
dos pensamentos, essa inconsistência que os desagrega e lhes tira
todo o poder de afirmar. Passei, pois, o dia às voltas com
isso – a fazer leituras dispersivas pela manhã, a caminhar a esmo
na tarde, etc., até que à noite resolvi sair e dar uma volta.
Como
está ocorrendo a festa da Padroeira da cidade, havia movimento na
rua. Encontrei-me por lá com meu irmão e sua esposa, mais o
sobrinho, que parecia divertir-se bastante com aquele vaivém de
pessoas. Miudinho, inquieto, o menino ia de um lado para o outro,
enquanto os pais tentavam acompanhá-lo – tarefa improfícua, em
se considerando as diferenças de velocidade que existem entre o ânimo
adulto e o infantil.
Desci
e me encontrei com V., que me chamou e encetou uma conversa. É uma
jovenzinha razoavelmente bonita (um tantinho obesa, talvez),
falante, que me foi apresentada há alguns dias por um amigo. Eu
disse a ela que não tinha intenção de permanecer por muito tempo
na rua, mas ela se espantou (como se retornar mais cedo para casa se
constituísse numa espécie de sacrilégio contra sua fé de boêmia)
e insistiu em que eu ficasse. Ao seu lado estavam uma irmã e o possível
namorado da irmã. A irmã era bonita, franzina, incrivelmente miúda,
se a comparássemos com V.
Trocamos
V. e eu algumas palavras desinteressadas. Fiz-lhe uma ou duas
perguntas, para introduzir conversa. Ela me convidou para darmos uma
volta.
Difícil
acompanhar a disposição de ânimo e o fio do pensamento de V. (se
é que houvesse algum). Pusemo-nos a caminhar, fazendo giros em
torno da praça. Demos duas ou três voltas, perfurando, a cada vez
que passávamos, a massa de pessoas que se aglomeravam diante da
igreja e ao longo das barracas da quermesse. Falávamos de tudo. V.
me contava a respeito de seu final de semana, em que havia bebido
muito (no sábado, se não me engano) e, aparentemente, havia se
divertido em igual ou em maior proporção. Contou-me sobre uns
contatos que fizera, com sujeitos desconhecidos, misturando fatos
provavelmente reais com outros que tinham toda a aparência de
haverem surgido de sua imaginação. Essa característica de V.,
conquanto não me preocupasse muito, ao mesmo tempo me incomodava e
me fascinava. Era difícil “tomar pé” no que ela dizia, pois não
se podia distinguir bem, em seu discurso, o que fosse verdade e o
que fosse invenção. Não que eu julgasse que ela estivesse
necessariamente mentindo, mas é que suas palavras criavam tal
impressão, ou seja, a de que nelas o fictício e o verídico não
se distinguiam com muita clareza. Se não estivesse mentindo, dizia
certas coisas com tal naturalidade e despreocupação que não se
podia pensar de outro modo. Além do mais, uma certa desordem,
presente em suas palavras, e uma certa negligência quanto aos
encadeamentos cronológicos e espaciais tornavam difícil, para um
ouvinte desatento (como seria o meu caso), acompanhar-lhe o fio do
raciocínio. Quanta dificuldade, para um sujeito acostumado ao labor
continuado das palavras e ao escrupuloso estudo das mesmas, em se
manter atento ao discurso de uma jovem tagarela de dezesseis anos de
idade!
Evidentemente
não havia má fé em minha negligência. Se minha compreensão não
era boa, isso não acontecia por acaso, pois havia fatores que
prejudicavam a comunicação, como o fato de estarmos dando voltas
em torno da praça e o ruído medonho que emanava de algumas caixas
de som que tinham sido ligadas diante da igreja. A certa altura, V.
me perguntou se podíamos beber uma cerveja. Disse-me que não podia
sequer pensar em cerveja, sem que lhe viesse esse desejo de beber.
Convidei-a, portanto. Recostamo-nos ao balcão de uma barraca e
bebemos uma garrafa, enquanto prosseguíamos com nossa conversa algo
desordenada.
Os
gostos de V.: ouvir música em volume elevado, alimentar-se bem, dançar,
freqüentar as festas públicas, conversar. Assegurou-me que gostava
de conversar e que, junto dela, ninguém se mantinha calado por
muito tempo. Quanto a isso, lembramo-nos por acaso de F., um sujeito
realmente taciturno, lacônico, que, segundo V., só dizia “o
estritamente necessário”. Ela se arrepiava diante dessa idéia.
Para uma faladora nata, não havia defeito pior que o costume da
mudez e do recolhimento. Se F. era portador desses defeitos, então
devia ter uma cotação bem baixa em seu sistema de valores. Mas
evitei fazer comentários e, sobretudo, evitei ensejar uma defesa de
F., o que não teria muito sentido naquela hora. Decerto, V. não
entenderia se eu lhe dissesse que, ao contrário do que ela pensava,
o silêncio e o recolhimento contam entre certas virtudes humanas,
sendo recomendados pelos bons moralistas. Ela provavelmente não
estaria interessada em ouvir uma preleção sobre virtudes cristãs.
Falamos
sobre vestuário. Mencionei o seu gosto pelo chapéu (do tipo cowboy),
que ela trazia arriado para as costas. Ela me disse que, no sábado,
havia comprado um uniforme completo de vaqueira, a fim de compor o
resto da vestimenta. O uniforme constituía-se de 1º) o chapéu
preto, de espuma (ou material parecido), com barbela e tudo o mais,
sem esquecer a medalha no alto, representando um cavaleiro montado;
2º) uma jaqueta de couro, com franjas, mais a calça, também de
couro e com franjas; 3º) um par de botas de cano longo (que ela já
possuía de outros tempos, segundo entendi). Para completar o
conjunto, ela comprara, acredito, aquela jaqueta e a calça.
Espantei-me com o preço, que achei excepcionalmente barato. Cheguei
a duvidar. Ela contou uma história na qual se via a engenhosidade
que empregara para obter aquelas peças a um preço tão baixo.
Pechinchara, como se diz; regateara muito. O vendedor, que era também
o fabricante, dissera que não podia vender por um preço menor,
pois assim teria prejuízo. “É pegar ou largar”, ela contestou,
fazendo uma oferta baixa. E, por fim: “Faça por esse preço, que
depois eu darei uma voltinha com você...” Julguei excelente essa
maneira de se encaminhar um negócio.
Ela
me apresentou a uma certa Letícia (não me lembro do nome) ou coisa
parecida, que veio até nós acompanhada de uma amiga. Pode ser que
Letícia fosse essa amiga – os nomes agora se misturam em minha
lembrança. Letícia era uma garota loura, de aspecto entre
tristonho e desconfiado, com excelentes formas e um rosto
razoavelmente bonito. A amiga era miúda (com certeza me dava pela
cintura) e bastante taciturna. Cumprimentei Letícia, com três
beijos nas faces. Cumprimentei a anãzinha, com três beijos também,
os quais ela retribuiu molhada e calorosamente. Encetaram conversa.
Letícia contou que dois sujeitos haviam aparecido em sua casa, numa
hora em que ela não estava, e procuraram por ela. Isso a aborrecia
tremendamente, quer dizer, a idéia de ter sido procurada em casa
por dois sujeitos equipados com um belo automóvel e de ela não
saber sequer de quem se tratava. Tive pena dela, por isso, se é que
era possível ter pena dela. A razão para o aborrecimento estava
naquela noite monótona, sem “programas”, que teria de passar ao
lado da anãzinha, com todo aquele “calor” para dissipar.
Não
me lembro do que lhe disse V. Afastei-me, para não ouvir uma
conversa que não me dizia respeito. Por um momento, tive mesmo a
certeza de que estava me tornando indiscreto. Disse a V. que ia
embora. Ela insistiu em que eu ficasse. Teria algum encontro marcado
para aquela noite? Essa pergunta um tanto absurda me preocupava. Uma
insinuação de Letícia me dizia que sim. Avistamos L., uma garota
que era amiga comum de V. e de uma certa V.*, com quem V. estava a
ter agora algumas diferenças. Aqui um enredo. Como descrevê-lo?
Lembro-me de que, há dois domingos, essa V.* me abordou na rua,
numa noite tristonha (por causa de um fato esportivo ruim), e me
disse que estava muito infeliz com a amiga, devido a uma calúnia
que esta lhe fizera. Para concordar com V.* (e pautando-me por vagas
noções de moralidade que, provavelmente, não vigiam entre essas
três amigas), desaprovei o fato, solidarizando-me com ela em sua
decepção e em seu desgosto. A essa altura, portanto, a amizade
estava cindida, e a confiança totalmente abalada. Para não me
entregar também à boataria, omitirei aqui o conteúdo da calúnia.
No entanto há que dizer o seguinte: a calúnia fora feita aos
ouvidos de L., a amiga atual de V.*, que incontinenti a transmitira
a esta última, numa prova de duvidosa amizade.
Que
belo triângulo de doidas. Agora, o que se achava em questão era o
fato de V., na qualidade de amiga magoada (que, a propósito, não
procurara se reabilitar perante V.*, negando ou justificando a possível
afirmação injuriosa a respeito dessa amiga), se considerar por sua
vez vítima de uma calúnia. Negava, para começar, a afirmação de
L. de que ela tivesse dito qualquer coisa ofensiva sobre V.* Depois,
queria tomar satisfações de L. e perguntar-lhe por que fizera
aquilo, abalando daquele modo uma amizade tão firme e sincera. Era,
portanto, assunto para muito bate-boca. Evitei intrometer-me e dar
palpite, até porque a querela não me interessava. Imagine –
tomar partido numa guerra entre comadres, cujo objetivo só Deus
sabia qual era. Que tinha L. a ganhar, destruindo assim a amizade
que havia entre V. e V.*? E o que teria V. a ganhar, caso L. não
estivesse mentindo ou inventando semelhantes histórias que,
inclusive, comprometiam a honra de V.*, além de levarem de roldão
a de H., que nada tinha a ver com a questão? V. aventou a
possibilidade de convidar H. para uma conversa a três e,
colocando-o a par da discussão, fazê-lo confirmar a verdade ou a
mentira do boato. (Aliás, não vejo bem em que H. pudesse ser útil
para desfazer o nó da discórdia.) Eu disse a V. que essa era uma má
idéia, pois apenas meteria H. na questão, sem que ele nada tivesse
a ver com o assunto. Ela concordou vagamente, mas desconfio de que,
em breve, o pobre H. também estará metido em toda essa patifaria.
Ora
bolas! Estava perplexo, embora não aventasse nenhum comentário a
respeito. Essa minha atitude olímpica era bastante inócua,
certamente, pois o que eu estava esperando? Se me metesse no
assunto, seria apenas mais um a boquejar mentiras e a tagarelar em
torno do vácuo. Se não me metesse, passava por mais um distraído,
que não se interessava pelas coisas. Para ser mais claro: se minha
intenção tinha um sentido pedagógico qualquer, este se desfazia
perante o interesse maluco daquelas meninas em se enredarem umas às
outras numa trama de incertezas, que não conduzia a parte alguma e
que servia apenas para dissipar tempo, desperdiçando-se palavras em
torno de uma questão cujo fundo se falseara desde o princípio. O máximo
que pude fazer foi, enfim, dizer a V. que elas tinham dado um
“sumiço” na verdade e que, naquele estado de coisas, seria
muito difícil reavê-la, sem que se manifestasse uma boa mea culpa por
parte de alguém. Mas essa mea culpa, pelo que parecia,
estava longe de ser possível, de modo que a trama ainda se
estenderia por muito tempo, gerando ainda muita sujeira.
Pergunto-me
se, frente aos boatos, é possível permanecer indiferente ou se o
próprio fato de pensar a respeito deles já não é participar
deles de alguma forma. Seja como for, abstive-me de dar opiniões.
Como termina a história eu não sei. Perante cada um desses atores,
somos levados a desconfiar do opositor. Perante V. desconfio de L. e
perante L. desconfio de V. E o que dizer de V.*? E de H., o que
dizer, se foi ele mesmo que, ao se envolver com essas meninas, se
tornou responsável indireto por tudo aquilo? Ah, mas aqui estamos
indo longe demais. E o pobre H., que nem se encontra na cidade
(estamos, portanto, a falar de ausentes, para usarmos o termo
jurídico), deve estar a estas horas sonhando com temas muito
diferentes, com outros mundos e universos que nada têm a ver
com este pequeno inferno de palavras.
20-7-1998
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