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Dura lição

 

 

O PAPEL DA POESIA NO MUNDO (II)


(Renato Suttana)


O papel da poesia no mundo sempre esteve em questão, tal como se, na impossibilidade de esclarecê-lo, a poesia devesse acabar. Mas o fato é que ela continua existindo, saibamos ou não definir o que ela é e tenhamos ou não palavras adequadas para expressar tal saber. Vai resistindo a todas as crises e a todos os percalços da história, incluso ao veredicto daqueles que, com voz lúgubre, anunciam de tempos em tempos a sua morte. Resiste, como resistiu, por exemplo, nos anos de 1950, no Brasil, aos manifestos da vanguarda, que, a pretexto de salvá-la do desaparecimento, alardearam aos ventos o fim de um de seus recursos mais importantes — o verso — e de tudo o mais que, ao longo de milênios, estivera relacionado à sua existência, desde o ritmo e as rimas até as imagens e os tropos.


Soava mais ou menos como se decretassem que, a partir de determinado momento, todos os indivíduos deveriam perder uma perna. No entanto os poetas não tomaram conhecimento desse barulho: vivos e absortos, caminhando sobre duas pernas, passaram ao largo da gritaria e continuaram a escrever versos (para o horror de quem achou que essa prática deveria ser abolida). Cultivaram altiva e teimosamente as chamadas formas tradicionais da poesia lírica (e só as chama de tradicionais quem não tem uma noção clara do que elas sejam) — tais como a métrica, as rimas e os formatos fixos de composição poética (a quadra, o soneto, o terceto, vituperados pelo ímpeto inovador) —, consagradas pela história e pela prática de milhares de indivíduos em todas as épocas e julgadas caducas desde o início do século XX por aqueles que tentaram colocar outras coisas em seu lugar, à maneira dos pintores dadaístas, que substituíram em seus quadros as imagens pintadas por objetos colados e outros artifícios e os levaram aos salões.


Na teima dos poetas, a poesia surgia de onde tinha de surgir. Não vinha do esforço deliberado de alguns indivíduos barulhentos, que pensaram e concluíram pela sua necessidade ou caduquice ao longo das décadas. Brotava do fato mesmo de ela já ter uma existência, isto é, tanto da possibilidade de se escrever poesia, quanto da presença, no universo da literatura, de cultivadores magníficos, como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Vinícius de Moraes (para só falarmos de brasileiros) e outros, cujo prestígio junto aos leitores e estudiosos nunca esteve em declínio. Para que então destruir a poesia? Ora, os poetas não queriam saber disso: seguiram em frente, porque — como disse Virginia Woolf em seu diário a respeito de um de seus romances — lhes interessava escrevê-la, ou porque precisavam escrevê-la, e o resto era supor que houvesse pessoas dispostas a lê-la.


É provável que a má vontade para com a poesia, traço comum do nosso tempo, tenha a ver com a sua recusa em morrer. Pedem-lhe respostas que ela não pode dar ou que só convêm à filosofia, às ciências e às sociologias de todos os tipos. Consideram-na inútil, porque nada esclarece, e então concluem pela sua caducidade. Supõe-se talvez que mais vale um tempo bem empregado na produção de objetos úteis e alimentos do que na lavratura de versos, e não estaremos em desacordo com essa ideia, pois, afinal, todos precisamos viver. Ademais, sonetos não são fáceis de escrever, exigindo aprendizado e treino, e o dom de compor elegias como as de Rilke não está disponível para a maioria dos indivíduos. Então, dá-lhe bradar que a poesia é inútil ou está ultrapassada, que não serve a nenhum propósito e que, portanto, melhor faremos se nos dedicarmos a coisas de mais pertinência, que ajudam a roda do mundo a girar — tarefa que, certamente, os poetas não podem cumprir.


A poesia não morre, porque existe. Esse aparente truísmo devia nos espantar a todos. Assim, ao falar dela, é possível que precisemos abrir mão de noções como as de utilidade e conveniência, substituindo-as pela de necessidade ou por nenhuma noção, que é o que às vezes responde melhor às perguntas impossíveis. Com isso, não queremos dizer que seja necessária, no sentido estrito do termo, mas que o fato de existir lhe dá essa característica, tal como a existência de uma pedra ou de um braço os torna necessários. (Ainda que, quanto ao braço, seja possível dizer que serve a alguma finalidade, mesmo não tendo surgido com o objetivo de servi-la e tendo apenas se adaptado a ela no processo da evolução). Da poesia, pois, podemos dizer que só serve a si mesma, e o fato de só servir a si mesma é que a torna fascinante e suscita as indagações de todos os tempos.


Dezembro de 2023


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