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Francis Picabia, A noiva

 

O NÃO-POETA QUE EXISTE EM NÓS

 

(Renato Suttana)

 

 

I

 

Costumo provocar meus amigos que me enviam versos dizendo que em determinados trechos de seus poemas a escrita do não-poeta (que existe em cada um de nós) predominou. A primeira reação que os vejo ter é, quase sempre, perguntarem – em tom abstrato – o que é a “poesia”. Reação, como se vê, essencialmente não-poética, gerada no âmago da alma do não-poeta que existe neles e que sempre aflora nessas ocasiões. A segunda reação é iniciarem um debate, de conteúdo igualmente abstrato, sobre o gosto da modernidade pela ausência de limites, ou sobre o fato de que essa modernidade aprecia misturar poesia e prosa num único todo – seja ele um poema, um conto, um capítulo de romance ou um romance inteiro –, porque assim deve ser. Nada menos poético e nada, portanto, mais de acordo com as ambições do não-poeta que espreita em cada um e que se manifesta, sempre, unicamente, para destruir a poesia (sugerindo inclusive a ideia de que poesia e prosa são a mesma coisa).

 

Em princípio, se poderia dizer que o contrário da poesia não é a prosa, mas a não-poesia ou a ausência de poesia (caso a ausência de uma coisa possa ser tomada como sendo o contrário dessa coisa). Tal como o contrário de um braço, de uma perna ou de um nariz não é uma mão, uma orelha ou as nádegas, assim também se dirá que poesia e prosa não se opõem uma à outra, porque são coisas de natureza distinta. O que se opõe à poesia é a não-poesia – aquela que o não-poeta, que existe em cada um de nós, insiste em contrabandear para dentro dos nossos poemas, seja disfarçando-a na forma de banalidades que “imitam” a descontração da linguagem prosaica (que, se calhar, é prosaica mesmo e nada poética, como o não-poeta – acompanhado pelos críticos – quer nos fazer acreditar que seja), seja na forma daquele segundo terceto ou último verso com que tentamos concluir o soneto inacabado e que o não-poeta sussurrou em nosso ouvido, como uma chave de ouro (mas que não é, na verdade, senão uma forma sutil de sabotagem cuja única intenção é destruir o trabalho anterior), para dar fim não ao soneto, mas à própria poesia.

 

O não-poeta é legião e por isso está em toda parte. Ele é aquele que impede, por exemplo, Bento Santiago de escrever os doze versos faltantes do seu soneto gorado, os quais uniriam os dois versos já escritos, como uma ponte ligando as margens de um rio (agravo que foi vingado no século XX por Francisco Carvalho – poeta de verdade e raramente vencido pelo não-poeta –, o qual, com habilidade e inspiração, escreveu não um, mas mais de uma dezena de conjuntos de doze versos bem medidos para suprir aquilo que o não-poeta sonegou ao personagem de Machado de Assis). Nesse aspecto, sua tarefa é apenas esta: impedir, não permitir que a poesia aconteça. E teria outra ambição além dessa? Provavelmente, não; mas o não-poeta é um demônio hábil e poderoso, que alguns indivíduos se propuseram a desafiar na época moderna (sendo vencidos, na maioria das vezes, por suas forças superiores), fazendo disso, inclusive, uma cultura (a cultura dos não-poetas que escrevem poemas) e que, assim sendo, dispõe de truques e ardis suficientes para enganar qualquer um.

 

No entanto, há poetas de verdade – temos de admitir – que fizeram disso (do combate ao não-poeta que existe em cada um) uma cruzada e um modo de estar no mundo. No Brasil, o nome que primeiro vem à mente é, com certeza, o de João Cabral de Melo Neto – poeta de valor, mas que passou toda a sua vida obcecado pelo seu demônio, até ser vencido por ele nos seus anos finais (vide as entrevistas em que admitiu ter parado de escrever porque não podia mais enxergar os versos que escrevia na folha de papel). Quanto a este grande, aliás, é curioso observar que, ao longo de mais de 60 anos, tudo o que a crítica mais admirou e comentou a respeito de sua obra (de verdadeiro poeta) – números, simetrias, sutilezas – foram exatamente os restos de um combate (como ele mesmo teria advertido aqui e ali) no qual a obra do não-poeta sempre compareceu, até o ponto de fazer suspeitar que a vitória não foi assim tão absoluta e que não teria acontecido apenas no final da vida do poeta, mas bem antes, ao longo da sua trajetória de autor infinitamente comentado pelos críticos. (É de lembrar, também, que ele, embora tenha escrito muitas coisas, não cometeu a indelicadeza de tentar dizer aos seus leitores o que é a poesia, cedendo às falácias do não-poeta, que poderia tê-lo conduzido a isso.) Ocorre que um dos dons mais impressionantes do não-poeta (que existe em cada um) é não só o poder de calar a poesia, conforme suspeitamos, mas, mais terrivelmente, o de meter palavras lá onde a poesia se calou; isto é, de encher de palavras o espaço que a poesia deixou vago ao se retirar – e de tanto mais palavras quanto mais largo for esse espaço. É a pior não-poesia aquela que demora mais a ser dita?

 

Sobre isso devemos meditar profundamente. Não há nada mais triste nem mais constrangedor para quem lê versos na atualidade do que ver por aí tantos indivíduos tentando convencer seus leitores (ou a si mesmos) de que os despojos da luta devem ser mostrados. E há aqueles, inclusive, que tentam convencer seus leitores (e a si mesmos) de que certas coisas que o não-poeta sussurrou em seus ouvidos, enquanto escreviam poemas, são de fato as mais importantes; ou seja, aquelas a que se deve prestar maior atenção, como se se tratasse do real coroamento de seus esforços. Seria esta a vitória do não-poeta, sua glória maior, que faz com que a não-poesia se imiscua lá, de algum modo, e seja tomada como um troféu? Sabemos pouco a esse respeito. Mas não podemos deixar de nos impressionar com versos como estes, de um poeta brasileiro de hoje, que tanto nos levam a pensar: “(...) Para escrever, despreparei-me / desesperei: escrevo sem parar, meu álibi, meu escuro / de papel, às vezes bandeira. A letra varia, louca. / Do garrancho apressado para pegar um flagrante / à caligrafia medida, meditada. Entre uma e outra / vale-tudo – rabisco, reparo, ruína. (...) Agora, digito, salvo / me perco, deleto, sem impressão.” Que podemos dizer deles senão que provêm da mente profundamente não-poética de um poeta que, já passado da maioridade e lutando contra o seu demônio interior, se distraiu por um momento e sofreu uma estocada decisiva?

 

Contemplar de frente a face do não-poeta pode ser uma experiência traumática para qualquer um, até porque nem sempre se é João Cabral de Melo Neto ou Mallarmé (poetas que, em geral, costumam ser bajulados pelo não-poeta que há em todo o mundo e que perversamente os emula, como se assim se vingasse do fato ter sido derrotado por eles tantas vezes ao longo da vida, e de modo tão fragoroso). Para se ter uma ideia, basta pensar que o não-poeta (bem como o não-contista, o não-romancista e o não-qualquer-outra-coisa) que há em todos nós gerou, no século XX, a tradição da teoria dita literária – esta, sim, em seu todo, profundamente antipoética, desde que sempre se preocupou em se perguntar sobre o que é a poesia (e como ela é feita) em vez de mostrá-la – enquanto os verdadeiros poetas prefeririam, mil vezes, apenas escrevê-la e dá-la a ler. Inventar conceitos pode ser útil em diversas circunstâncias da vida, mas, do ponto de vista do poeta verdadeiro, eles não importam de maneira nenhuma. Seria tudo isso apenas uma maneira de ganhar tempo, enquanto não chega a poesia verdadeira?

 

 

II

 

Há poetas que, simplesmente, não dão ouvidos ao seu não-poeta particular. São indivíduos impressionantes, sobretudo, e profundamente poéticos, cujas criações nos deixam sempre a sensação de que nossas perguntas e dúvidas são inúteis e destituídas de objeto. Quanto a eles, podemos dizer que escrevem apenas e que aquilo que escrevem é sempre poesia, havendo no entanto entre eles alguns que, embora imunizados contra as chicanas do não-poeta, gastam suas energias noutras atividades. Para aliviar-se, chegam até a escrever sobre a poesia (críticos e professores têm uma grande necessidade de ouvi-los) – isto é, fazem teoria da poesia –, entregando-se a certas lucubrações curiosas, complicadas ou extravagantes, que nos distraem frequentemente, mas que não nos ajudam a escrever a nossa própria.

 

Outros, mais rigorosos, se abstêm de escrever (quando não escrevem poesia) ou, para exercitar os seus dotes noutros setores da literatura, se lançam à composição de contos, romances, peças de teatro e outros mais. Mas, sobretudo, evitam conjeturar sobre a poesia em si ou, quando o fazem, é apenas se dedicando ao comentário das obras de seus pares. E há também aqueles que, escrevendo com excelência – como é o caso de Maurice Blanchot, Edmund Wilson ou Paul Valéry, para citar só três nomes –, e se debruçando sobre a obra alheia, têm o bom gosto de não resvalar para a indiscrição ou de não penetrar no terreno que o não-poeta percorre tão desimpedidamente: o terreno das definições, dos silogismos e da não-poesia em geral (exceto talvez Valéry, que, perdido o senso da direção, às vezes derrapa nas partes mais escorregadias), que apenas causa urticárias no verdadeiro poeta. Quanto a isso, merecem o nosso louvor, mas não há que negar que – talvez por isso mesmo – o não-poeta não raro se apodere de suas teorias e lucubrações para o seu propósito pessoal (que já sabemos qual é), utilizando-as, valentemente, para – claro – desmantelar a poesia.

 

Mas, afinal, o que escreve o não-poeta, quando escreve? Muitos responderiam que escreve prosa, porém estão enganados. Quem escreve prosa escreve prosa, comandado pelo romancista ou contista legítimo que existe nele. Já o não-poeta escreve apenas a não-poesia de que sempre foi capaz e que não chega a ser um gênero especial da literatura, até porque se manifesta apenas onde a poesia, tendo tido intenção de se manifestar, falhou e não aconteceu (por qualquer que seja a razão, mas suspeitamos que, sempre, por obra do não-poeta). Não se trata de prosa, nem de má prosa tampouco, ou de outra coisa qualquer: trata-se de não-poesia, somente – obra do não-poeta que existe em cada um e que só pode ser combatido pelo poeta de verdade, o qual, às vezes, não se dá ao trabalho de aparecer. É ele que faz mancar o verso, que transforma o poema num amontoado de conceitos ou numa exibição de habilidades técnicas, que nos faz acoplar um segundo adjetivo ao substantivo quando um apenas teria sido suficiente, que nos faz escolher uma expressão prosaica quando a expressão poética teria sido preferível (ou vice-versa), e assim por diante – pois seu cabedal de recursos é inesgotável. E é a ele, portanto, que devemos atribuir os nossos desastres.

 

Incapaz de explicar de onde vem a poesia, a sabedoria antiga inventou noções, entre as quais a de que a poesia era inspirada pelos deuses. Desbastada de suas conotações religiosas, tal ideia progrediu no tempo, chegando um tanto enfraquecida à época atual, que a converteu no conceito de inspiração. Certamente, se perguntados, não poderíamos dar a ela nenhum sentido preciso. Porém basta saber que, em muitos círculos, o uso do termo se converteu numa espécie de tabu, e nos perguntamos se isto se deu porque ele não responde à pergunta que o suscitou ou se porque, surgindo de uma pergunta (que, desconfiamos, teria origem nos arcanos mentais do não-poeta), aponta para qualquer coisa – a poesia – que o não-poeta não quer ver ou quer desmoralizar.

 

Seja como for, gostamos de imaginar ao menos que, nos dias atuais, por força da verdadeira influência que exerce sobre tudo o que pensamos da arte de escrever poesia o poder de convencimento do não-poeta – sempre à espreita em toda parte e sempre pronto a nos fazer gastar nosso tempo com perguntas irrespondíveis (e também a gastá-lo chegando à conclusão de que, por serem irrespondíveis, merecem o nosso desdém) – é uma noção que foi posta fora de circulação pelo próprio espírito que a formulou, isto é, o espírito da não-poesia, este que deseja sempre saber o que é aquilo que não vê bem e que, com efeito, só é porque não sabemos o que é.

 

3-2-2014

 

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