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O CASO DO DOSSIÊ QUE NÃO HOUVE E OUTRAS REFLEXÕES SOBRE REALIDADE
VIRTUAL
(Renato Suttana)
Dois homens são presos num hotel (e
outros estão implicados no caso), porque alguém os denunciou,
partindo da pressuposição de que uma ação ilícita estava para ser
cometida. Uma grande quantidade de dinheiro é encontrada com os
homens. Se o crime em questão só se define em função do ato ilícito que estava para ser
praticado, nós jamais chegaremos a conhecer esse crime, porque o ato de prender
não só o sustou, como também o tornou impossível. No entanto, apesar
de tudo, a prisão se realizou assim mesmo.
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Uma grande quantidade de verbos que
deveria se usada no passado (e no futuro) passa a ser usada no
presente: o dossiê que se estava para comprar já é o
dossiê comprado, e o dinheiro que se usaria para fazer a
transação se converte no dinheiro que se usa para fazê-la.
Falta, no entanto, a ação em si – o feito que justificaria a
punição.
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Há que reconhecer que vai aqui uma grande
distância entre uma imaginação e um evento concreto.
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O chamado “escândalo” do dossiê não está
tanto na efetivação de uma ação ilícita (que, para todos os efeitos,
nunca passou de uma presunção, de uma hipótese que só poderia ser
levada em conta caso se tivesse concretizado), nem, muito menos, na intenção de praticá-la (que
muitos outros poderiam ter tido sem serem punidos legalmente por
isso), mas na exposição, pelos jornais, de fotografias em que se vê
um amontoado de cédulas. Caso patente de conversão de uma
irrealidade em realidade. Em Marx (Manuscritos
econômico-filosóficos): “A inversão de todas as qualidades
humanas e naturais, a irmanação das impossibilidades – a força
divina – do dinheiro repousa na sua essência enquanto
essência genérica, alienante e auto-alienante do homem. O dinheiro é
a capacidade alienada da humanidade”. Pode ser que tal capacidade tenha operado o milagre.
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Ainda em Marx: “O que não posso como
homem, o que não podem minhas forças individuais, posso através
do dinheiro. O dinheiro converte assim todas essas forças
essenciais naquilo que em si não são, isto é, em seu contrário”.
E, mais adiante: “Se não tenho dinheiro algum para viajar, não tenho
necessidade (isto é, nenhuma necessidade efetiva e efetivável)
de viajar. Se tenho vocação par estudar, mas não tenho
dinheiro para isso, não tenho nenhuma vocação (isto é,
nenhuma vocação efetiva, verdadeira) para estudar. Ao contrário, se
realmente não tenho vocação alguma para estudar, mas tenho a
vontade e o dinheiro, tenho para isso uma vocação efetiva. O
dinheiro, enquanto meio e poder gerais –
exteriores, não derivados do homem enquanto homem, nem da sociedade
humana, enquanto sociedade – para fazer da representação
efetividade e da efetividade uma pura representação,
transforma igualmente as forças efetivas, essenciais,
humanas e naturais em puras representações abstratas
e, por isto, em imperfeições, em dolorosas quimeras, assim
como, por outro lado, transforma as imperfeições e quimeras
efetivas, as forças essenciais realmente impotentes, que só
existem na imaginação do indivíduo, em forças essenciais efetivas
e poder efetivo”. Assim, se tenho intenção de comprar um
dossiê que compromete meu adversário político, mas não tenho
dinheiro para isso, não tenho portanto nenhuma intenção.
Entretanto, se tenho o dinheiro, mesmo que não tenha a intenção,
tenho tanto a intenção quanto o poder de efetivá-la. Posso,
portanto, ser punido por causa de ambos.
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Uma frase, publicada em jornal (Folha
de S. Paulo), no dia seguinte (30 de setembro) àquele em que o
delegado de polícia entregou as fotos aos jornalistas para serem
publicadas: “PT tenta vetar fotos do dinheiro e quer impugnação de
Alckmin”. A frase é verdadeira quanto a eventos bem anteriores à
publicação das fotos, desde que o partido pediu que não fossem
publicadas, mas absolutamente falsa em relação à publicação
efetiva, uma vez que o partido não sabia dessa efetivação. A
troca de um sentido pelo outro produz o efeito de uma certa
convicção.
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Se, como quis Marx, o dinheiro é “a
rameira geral, a proxeneta geral dos homens e dos povos”, é a sua
exposição numa fotografia que o torna obsceno. Guardado num cofre,
longe das vistas de todos, ele se torna casto.
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A “montanha de dinheiro”, de que alguns
falaram nos jornais, é composta em sua maior parte de maços de notas
de 10, 20 e 50 reais. Há, ao que parece, apenas um maço de cédulas
de 100 reais. Se tudo fosse convertido em cédulas de 100 reais,
haveria talvez menos volume, menor “montanha”, e a coisa ocuparia
menos espaço numa página de jornal. Haveria, portanto, menos
obscenidade a ser exposta.
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A exposição pública das partes íntimas
de uma pessoa é obscena na proporção inversa da exposição pública de
uma grande quantidade de dinheiro: na primeira, a obscenidade está
na exposição daquilo que todos possuem; na segunda, daquilo que bem
poucos possuem.
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Uma foto, utilizada como publicidade por
uma instituição bancária brasileira, expunha a imagem de um
homem a segurar uma vassoura com que, supostamente, teria ajuntado
num monte, à maneira de um jardineiro, as cédulas que caíram como
folhas de uma árvore (cujas folhas eram cédulas). Supõe-se que as
cédulas eram falsas ou de brincadeira. A serem
verdadeiras, a foto se tornaria obscena.
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É obsceno também aquele que expõe a
obscenidade: a foto do jornal, a tela da tevê, o pornógrafo.
A obscenidade não deveria estar tanto no objeto exposto, quanto no
ato mesmo de expô-lo, daí se poder falar em escândalo –
o
escândalo da exposição.
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De certo modo, a imagem do dinheiro
publicada pelos jornais converte o crime que não se praticou no
crime que todos gostaríamos de praticar ou que, pelo menos, nos
sentimos capazes de praticar. Como em Marx: "A diferença
entre a demanda efetiva baseada no dinheiro e a demanda sem efeito,
baseada em meu carecimento, minha paixão, meu desejo, etc., é a
diferença entre o ser e o pensar, entre a pura
representação que existe em mim e a representação tal como é
para mim enquanto objeto efetivo fora de mim". A exibição das
fotos pela mídia nos torna a todos criminosos em potencial.
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Ainda em Marx: “O dinheiro é o bem
supremo, logo, é bom o seu possuidor; o dinheiro poupa-me além disso
o trabalho de ser desonesto, logo, presume-se que sou honesto; sou
estúpido, mas o dinheiro é o espírito real de todas as
coisas, como poderia seu possuidor ser um estúpido?” Se aquele que,
tendo o dinheiro para realizar o ilícito (e sendo estúpido – os
“aloprados” do partido), não o realizou, o fato de tê-lo o torna
esperto o bastante para realizá-lo. Pelo contrário, se, sendo
esperto – e não tendo o dinheiro para realizá-lo –, tentasse assim
mesmo realizá-lo, isso o tornaria estúpido em excesso. Trata-se,
pois, de saber em que medida a estupidez se equilibra com o poder de
mistificação do dinheiro (e da mídia). E trata-se também de saber
até que ponto vai a nossa capacidade de pressuposição da estupidez.
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Lêem-se, na Internet, as queixas de
centenas de pessoas exigindo que, além da exposição da fotografia
das cédulas, o dossiê que levou ao escândalo também deva ser
publicado. Ora, não havendo dossiê, a publicação converteria a
polícia em cúmplice do crime que se quer punir (e que por acaso não
houve). A polícia se tornaria, no caso, ela mesma o agente do
crime, e não o seu algoz.
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No entanto, como parece ser o caso, em se tratando de punir
intenções e não crimes efetivos, há que perceber alguns limites.
Um homem poderia ser levado em prisão por transportar consigo uma
grande quantidade de dinheiro. Poderia ser inquirido, sobretudo,
acerca da origem do dinheiro. Mas, se toda origem é desonesta, já se
vê o constrangimento. Imagine-se a situação de alguém que entrasse
no cofre de um banco e perguntasse: “De onde veio todo esse
dinheiro?”
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Curiosamente, a origem do dinheiro
apreendido com os (sempre supostos) militantes do partido é
lícita: tem a chancela de instituições bancárias respeitáveis,
como a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil. De onde vem
portanto a suposição da ilicitude? Do fato de que os homens não
parecem ser ricos o suficiente para carregarem consigo toda
essa quantidade de dinheiro? Mas isso não conduz a olhar de novo
para o dinheiro (e, portanto, para o obsceno), desviando a
atenção do crime que se deseja punir?
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Disse-se que, na ansiedade quase
infantil de surpreender um ilícito, a polícia acabou se precipitando
e, como se diz, jogando fora a criança com a água do banho. Na
verdade, não foi tanto a precipitação ou a ansiedade de desbaratar
uma "trama" que impediu que se tirasse maior proveito da
circunstância do que já se tirou, mas, pelo contrário, o
desejo – o sonho, por assim dizer – de ver a má ação concretizada é que precipitou o desfecho. Há
uma certa cumplicidade em tudo isso, que não deixa de suscitar o
nosso devaneio.
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Parece que foi Platão que disse que,
pela força do desejo, nós nos tornamos aquilo que desejamos. Seria
esta a questão?
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Evidentemente, deve-se reconhecer que há
mais interesses a resguardar entre o céu e a terra do que imagina a
nossa pobre filosofia: e um dossiê que se publica de fato,
principalmente se contiver dados verdadeiramente
comprometedores, é muito mais danoso do que o risco de ridículo que
se corre em tratar como real um dossiê que não chegou a existir.
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Ao que parece, a voz do denunciador
falou mais alto do que qualquer perspectiva real de acerto. Ela
disparou a possibilidade do fato, e o dinheiro fez o resto.
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Provavelmente, em outras circunstâncias,
ninguém se lembraria de perguntar àquele homem: “A que partido
político você pertence?”
23-10-2006
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