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 |   RETRATOS
            DE FANTASMAS NÍTIDOS (fragmento)  
            
             (Nicolau
            Saião)   Por
            entre muros imaginários, ei-los que chegam.  
            
             Minutos
            que sobrecarregam a memória mas que, paradoxalmente, a tornam mais
            leve, dão-lhes a cor e o perfil que lhes é próprio: de rostos ora
            serenos ora convulsos, arrepanhados, têm já a silhueta definitiva
            que os tempos arremessaram sobre as suas trajectórias e os tornam
            em visões simultaneamente bem próximas e longínquas.  
            
             Nos
            cafés, nas ruas e largos da minha adolescência, dentro das casas
            que necessariamente habitaram e onde num lampejo os imagino como
            figuras recortadas ou esculturas plasmadas em posições singulares,
            certos da sua pessoa ou humildemente à espera do tempo e por isso
            admiráveis de humanidade, eis que os busco com as mãos a tremer de
            ternura e inquietação. Eis que os procuro como restos sobrados de
            uma aventura por vezes comovedora, por vezes insuportável, mas
            sempre contemplada como algo que um dia irá fenecer mas que é também
            imarcescível e se relembra quando as vozes dos que partiram são
            mais nítidas e ecoam nas ombreiras do coração. Ou, pesadas de
            discrição e de silêncio, soam ao ouvido como uma ária em pianíssimo,
            tal qual um piar de pássaro nocturno no pinheiral da minha infância.  
            
             Nomes,
            agora, têm tão-só os que lhes dei, os que inventei para lhes dar.
            Já dispõem, digamos, da verdadeira liberdade civil, que é
            directamente proporcional ao privilégio de os evocar sem peias: com
            amor ou desagrado, dupla face da diversa gente que se apreciou ou
            abominou. Mas nunca com indiferença.  
            
             Desfilarão
            em barquinhos de papel pela “ribeira
            da Lixosa”(*) os que não souberam (mortos ou vivos que
            estejam) erguer a sua estatura para além da fasquia mínima. E,
            como num corolário de pacto mefistofélico, chegou para eles a
            altura da expiação, a hora de verem exposto o seu interior
            nebuloso. Tal ser feito no plano da escrita confere-lhes entretanto
            algum significado uma vez que, além do mais, me ajudaram por antítese
            a conhecer melhor o verdadeiro rosto da dignidade e da qualidade
            reais.  
            
             Os
            outros, os meus santos civis
            ou simplesmente humanos admiráveis
            que comigo se cruzaram na aventura de viver, creio que dispõem da
            verdadeira imortalidade, a saber: aquela que, mesmo anónima e solitária,
            gera um campo de forças de tal ordem que pelos anos fora faz um
            percurso como a elipse dum planeta, tocando aqui e acolá e forjando
            sinais de aproximação e de fulgurante realidade – mesmo se os
            que lhe sofrem o apelo de tal não se apercebem conscientemente. A
            esses comigo os levo na “volta
            à Serra”(*), a volta aqui imaginária da maravilha e da
            pureza temporal. Eles vivem em mim como flores perenes. Como humilíssimas
            flores de tocante recorte. E talvez vivam noutros também.  
            
              
            
             ***
            
              
            
              
            
             O Homem das Malas – Dormia num quartito emprestado e comia nas
            tabernas, a princípio ora aqui ora ali. Depois passou a comer,
            vinda a democracia, num sítio fixo pelo interesse de um benemérito.  
            
             Um
            olho sem vida, bola de carne vítrea de garoto mal-nascido que,
            todavia, a meu ver não inquietava os adultos nem assustava as crianças,
            mas curiosamente lhe dava um ar terra-a-terra de actor sem filme.
            Barba mal feita, casaco de clown
            bissexto ou de padre despadrado, pitando o seu cigarrinho
            irreparavelmente. Um estilo natural de quem sabia que nunca iria
            para um paraíso ou para o Café dos ricos sem um recado a entregar.
            Voz um pouco rouca como convém aos santos civis a quem quase se não
            liga em cidades distraídas ou constipadas. Mãos de carregador ao
            sol e à chuva. Trabalhando, trabalhando sempre como onagro estafado
            de solar ou de quinta das redondezas: como rapaz-de-mandados,
            levando embrulhos para este e aquele comerciante, com um
            carrinho-de-mão transportando malas e malões e um sorriso ingénuo
            de pássaro mal-amanhado.  
            
             Ainda
            de bibe, creio que o vi pela primeira vez junto ao lago da
            Corredoura onde meu pai me fora mostrar os patos navegadores, atracção
            ao tempo da criançada portalegrense. Saudou respeitosamente “o
            senhor comandante” e afagou-me o rosto de passagem. Mal
            vestido, decerto mal alimentado, os chuis
            tinham-no por semi-beberrão e nem o incomodavam. Apenas de quando
            em quando lhe atiravam uma que outra palavra como por desfastio,
            serenos na sua imponência de servidores desvelados do regime. Com,
            ponhamos assim, condescendência de pequenos sobas mirando fraca
            fruta para um apetite de omnívoros bem treinados. Aqui e ali o fui
            encontrando ao acaso da passagem dos meses e dos horários da Escola
            e do Liceu, dos bilhares, dominós e jogatanas a doer (cartas bem
            batidas e que às vezes nos deixavam sem cheta) e das deambulações
            à cata de namoricos tirocinando amores precários nas ruas das
            beldades operárias para os lados do Terreirinho e no bairro da
            gente fina, com suas pequenas madonas tafuis e distantes, sopeiras
            incluídas. E nas fitas do Cine-Parque hoje defunto. Muitas vezes
            lhe cravei, porque ele era
            generoso, belos exemplares da sua marca preferida, o apreciado “Três
            Vintes” já passado à história, uma saudade no seu invólucro
            amarelo-torrado que até parecia guloseima para fumadores fartamente
            abonados. E nunca, coração, um cigarrito me soube tão bem,
            tirante os “kentuckys”
            de mestre Gervásio, o carpinteiro que eu observava durante horas no
            seu labor de fino construtor de carroças.  
            
             Chamar-se-ia,
            de seu nome funcional, José, Armando, Zacarias? Simão, Joaquim ou
            António? A malta e toda a cidade lhe chamava “ó
            Sério” e não era por pirueta. Joaquim Sério não lhe
            ficaria mal, mas nunca o soube na verdade. Ou, se o soube,
            fragmentou-se, evolou-se enquanto designação identificada. Muito
            poucas letras tinha, poucas coisas devia saber. Mas era democrata,
            mais que isso socialista e uma vez no fim dum comício em que
            levantei os corações arrebatados com sete frases libertárias,
            veio estreitar-me a mão e disse-me com enlevo militante: “Conheci-o
            desde pequeno…” e cerrou-me revolucionariamente o punho
            musculado no braço direito.  
            
             O
            que guardo para valer em pé de página, digamos, é a sua figura
            curvada, já quase nos tempos do fim, sempre com o ingénuo sorriso
            de vagabundo filósofo pastoreando as ruas da cidade, suas
            companheiras de vida interior e exterior. Um São Bento Labre
            alentejano e sem exageros, que ele já estava reformado e trazia o
            fato limpo pelas senhoras da Misericórdia.  
            
             Na
            última vez que o vi a senhora dona morte, com a esperteza que se
            lhe conhece, deve-o ter aconselhado a ofertar-me um abraço. E eu
            regressei, talvez, um pouco depressa de mais ao carro, para que ele
            não me visse as lágrimas. Que ele não gostaria, decerto, de ter
            que dizer a São Pedro que o companheiro de revolução, de cigarrêtes
            e de fitas se fizera um pachelgas.  
            
             Deve
            concerteza, neste momento, levar pacotes ou recados de um santo
            qualquer para outro colega de merecimento. Ou, numa artéria
            celestial, sorver o seu cigarrinho com serenidade convicta. E, se
            calhar, já com os dois olhos emparelhados para passeios remansosos
            e segredos intemporais. À
            esquerda de deus pai.  
            
              
            
             O Político Truncado – Iria ter linda carreira, mas a bernarda
            abrilina modificou-lhe a trajectória. Deixou-o meio em seco e
            ligado a uma formação partidária dessas que balançam com o vento
            do Oeste ou, vegetando, concedem escassos réditos para tão grandes
            apetites.  
            
             Quando
            no tempo da outra senhora passeava
            de mãos a dar-a-dar, solene e pimpão, acompanhando os raciocínios
            e as confidências dum corifeu da situação passo a passo junto à
            esplanada do café “Tarro” – era belo de ver. Imponente,
            tostadinho e bem penteado como um galã de bairro de média
            estatura. Ficou lívido com o colapso do regime das conversas em família.
            Durante uns tempos esteve confinado aos seus botões, decerto atónito
            com o furacão que lhe desabava sobre as certezas e lhe cirandava em
            roda das dúvidas. Ele, que sempre olhara para dentro numa imitação
            de meditação profunda, ganhou uma espécie de melancolia que
            pareceu assentar-lhe como uma luva. Depois, espertou. Apreciador de
            homens providenciais, ainda é solene de ademanes e parco de
            conversas, excepto quando através de um líder a valer a pátria
            parece pedir. Um dia o maroto do mundo deixar-se-á desse bocejo de
            liberdades para todos e mudará para o que convém: e ele terá
            finalmente um cadeirão à altura da sua fidelidade perdigueira. Mas
            que não seja tarde de mais, que os anos passam e aos roncões de
            pequeno porte o tempo costuma pregar partidas desagradáveis.  
            
              
            
             A Velhota das Estrelas – Vendia-as, estrelas
            de farinha e açúcar com ervas de cheiro a condimentar, em loja
            modesta de frutas e legumes num recanto escuso duma rua improvável.
            É que se apanhava com o aroma das laranjas, queijos, nabiças, de
            repente – pois a lojeca ficava numa curva onde não se esperava
            que estivesse. Para mim, contudo, cheiros compensadores, penso que límpidos
            para gente que goste de bosques, quintas e hortejos. Hoje a loja
            desapareceu, engolida pelos quotidianos desesperados. E, para minha
            maior mágoa e ligeira fúria, nem sequer lhe deram sumiço mediante
            um bar finório ou uma taberna manhosa – limitaram-se a fechar a
            grossa porta pintada de castanho. Já entenderam o porquê da fúria:
            é que me ficou ali como um cadáver requentado, absolutamente
            cegueta e mudo. E, clarete, nem valeria a pena rebentar a porta à
            patada para, ao entrar-se, apanhar a adolescência evolada numa das
            prateleiras vazias.  
            
             Mulher
            de preto, a cara era como se diz um pergaminho. Não faria êxito
            num moderno supermercado. Lenço na cabeça, as mãos grosseiras de
            quem sabe dosear o doce nos caminhos da vida e nos bolos de canela,
            de arroz e nas leves boleimas ou, como em outros lugares se crismam, enxovalhadas.
            Muito calada, um ar grave de pessoa que tivera ou passara mundo.
            Passara, não passara – quem lho iria perguntar?  
            
             Desapareceu
            andava eu no fim das secundárias, que nas primárias a filava manhã
            sim manhã sim, com os meus tostões prontos para amendoins e as
            tais estrelitas, bolo de canela que ainda hoje move a minha gula saudosa.
            Escrupulosa nos trocos, duvido que alguma vez tivesse enganado algum
            petiz ou graúdo mesmo com distracções pelo meio. Fiquei-lhe
            devendo muitos minutos de gozo mastigador. E a não menor delícia
            daquele ar bondoso de aia exilada. E um resto impalpável, um não-sei-quê
            de desventura ou íntima tristeza. Cá para mim aquilo não era comércio,
            era puro destino fixado em dias ora melancólicos ora decididamente
            alegres oferecidos de graça, nos dias ensolarados, aos passantes
            fixos e descontínuos. E como deixar em escrita aquele silêncio
            interior, aquele perfume de realidade real que, agora, sei que
            gozei nos meridianos da doçaria humilde mediante esses contactos
            matinais, pensava eu que fortuitos e já perdidos no tempo?  
            
             Hoje
            já não há por aqui lojas daquelas. A última que naquele estilo
            conheci foi uma taberna na rua do Mercado, transformada ao presente
            em quitanda com luzes e balcão moderno. Curiosamente, também
            gerida nesses outroras por uma velhota parecida no pormenor, de
            perna arrastada e trajando de escuro.  
            
             Coincidências
            temporais, quero crer, numa cidade com viúvas para dar e vender.  
            
              
            
             O Santo de Pau Carunchoso – Metafisicamente, um peso leve. Ao que
            parece Deus manda-lhe lembretes adequados e ele, com gravidade mas
            sem cerimónia, com a naturalidade dos que se sabem escolhidos (sem
            vaidade!) distribui-os caritativamente como cumpre aos ungidos pela
            graça. É humilde, bem falante, ama os pobrezinhos e até
            compreende os ateus, esses desnaturados. Na sua santa compreensão
            sabe que o são apenas (não é verdade?) por desorientação. Que
            um dia voltarão ao redil – mas mesmo que não voltem merecem uma
            oportunidade. Assim como assim não são todos filhos do (seu)
            Senhor?  
            
             A
            tal ponto humano, delicado e escorreitamente uma alma de eleição,
            este Bossuet de pacotilha, este S.Tomás de trazer por casa fez
            sempre a minha admiração estupefacta: disseram-me com verdade que
            teve duas criadas anciãs e que no estado de moribundas lhes pegou
            na mão até darem o salto para a eternidade. Questionado sobre o
            facto, referiu que era para as auxiliar no momento derradeiro. E não
            ter uma delas voltado – ou até mesmo as duas – por um minuto à
            vida para lhe escarrarem na cara a verdade básica de que naquele
            momento um ser humano deve ser deixado em paz, porque cada um tem
            direito à sua morte, sem que ao lado esteja a bondade de um patrão.  
            
             Tão
            dedicado, serviçal e esclarecido nos quereres da Providência –
            que faz perceber aos mais lúcidos ou versados nos assuntos da Dogmática
            e da Patrística que decerto o sinal do demo não lhe anda longe. Ou
            seja: vai ter uma grande surpresa quando chegar o último suspiro e
            o Criador – em que ele crê com os quatro lombos –
            previsivelmente o atirar com um gentil mas decidido pontapé no
            traseiro para o purgatório, que gente como ele nem inferno merece.
            Mas talvez, ó céus, isso seja ainda matéria de júbilo, porque
            para estes semprempés místicos tudo é matéria de comprazimento e
            auto-consolação, tudo é magnífica ocasião de ascenderem, como
            ele vai ascendendo pouco a pouco, ao seio da mais celestial e
            gratificante santa abominação.     O
            Tio Pequenino – Homem do campo dos seus quarentas/cinquentas,
            topava a sua figura pequena e escorreita em todas as Feiras (das
            cebolas, das cerejas) e em tudo o que era festa ou romaria (do
            Bonfim, do Reguengo, da Sant’Ana, da Ribeira de Nisa, do Senhor
            dos Aflitos) onde eu me deslocava canonicamente acompanhando os pais
            e vizinhos com quem se fraternizava. Correctamente vestido, muito
            direito e asseado, notava-se que tinha nos ombros e nas mãos fortes
            e calejadas os sóis e os trabalhos da quinta ou da horta, do romper
            do dia ao cair da noitinha. Era proverbial, a certa altura, na
            barraca dos comes-e-bebes escorripichando com denodo e aprumo o
            seu tintol acompanhado de viandas delicadas como o costado, a
            isca, o peixe frito…  
            
             Nunca
            com ele troquei palavra ou aceno que fôsse. Nunca soube a sua graça
            ou a quem pertenceria e em que courelas granjearia o seu pão. Até
            um dia, mas já lá vamos. Para mim era apenas, com toda a velada
            simpatia interior, o “tio Pequenino” e bastava-me esta alcunha
            p’ra meus internos usos. Muito cordial e respeitador, tratava com
            cortesia, numa voz suave e campesina, os convivas avulsos. E a sua
            cara escanhoada e seca abria-se às vezes num leve sorriso de
            singeleza. A partir de certa altura, enquanto eu crescia e passava
            de infante a adolescente e de adolescente a adulto, como que deixou
            de fazer anos. Imutável, sentia-o deslocar-se através dos tempos
            como uma presença pacífica e serena. E que alegria eu senti,
            depois de ter voltado da loucura da guerra com a inocência feita em
            fanicos, quando um dia na Festa dos Aventais topei encostado ao balcão
            de tábua duma barraca bendita o meu “tio Pequenino”, que com
            grisalha convicção atirava a terra uma sandes de lombo de lindo
            recorte!  
            
             Se
            a festa era na cidade, digamos a do Senhor dos Passos, “tio
            Pequenino” deslocava-se ao Largo da Sé a mercar o seu torrão
            de Alicante e a sua boa ervilhana na barraquita posta rés-vés ao
            edifício dos Paços do Conselho. Sempre composto, sempre urbano e
            solitário nas suas andanças todavia comparticipativas. Também o
            via às vezes no mercado municipal (um dos meus locais sagrados)
            falando com este-aquele hortelão seu companheiro de labutas –
            mirando este figo, relanceando aquela meloa, apreciando esta
            couve…Eu era visto e achado, principalmente nos sábados, a
            deambular circulando o edifício da Praça. Coisa que ainda hoje,
            que já vivo por bandas vitais muito distantes, é um dos meus
            grandes gostos. E – cabeçorra distraída – também era meu
            colega na ida à massa-frita, ao santo brinhol
            acompanhado pelas canecas de café de cafeteira, fracote mas com
            um sabor que nunca mais, minha mágoa, terei na vida…  
            
             Ora
            um dia, passeando de carro (emprestado) com a família, teria eu uns
            dezanove anos, o meu primo que guiava fez-nos ir ter a um lugar que
            não conhecíamos bem, em busca de um outro parente de raspão,
            desses em sétimo grau mas que são indispensáveis. O meu pai
            desceu do automóvel e abeirou-se de um murozito de pedra em cujo
            lado de lá um hortelãozito, tapado com um velho chapeirão,
            mourejava ali à beira e perguntou-lhe sobre a morada do tal
            parente. O trabucador aprochegou-se, descobriu-se…e era o “tio
            Pequenino”, que em frases curtas e apropriadas iluminou a informação.
            Soube então que era dali
            que ele partia para as suas incursões festivas! E sem me dirigir
            palavra, num diálogo mudo, percebi nos seus olhos plácidos que
            também me reconhecera. Foi, durante um segundo, uma espécie de
            cumplicidade. Senti que ele pensara: “Olha…este
            é o tal…”. Que eu, para ele, devia ser o que ele era para
            mim – presença sentida aqui e acolá de seres que passam quase ao
            mesmo tempo pela Terra irmanados num destino comum de jamais
            trocarem palavra. Coisas da sociedade e dos acasos, diria eu.  
            
             Mais
            tarde – já ele começava a transformar-se numa presença esfumada
            – desapareceu-me do horizonte. Soube depois, ao folhear um periódico
            com a data já requentada, que morrera. A foto lá estava, era o
            “tio Pequenino” dos meus tempos de criança transfigurado em
            eternidade pela necrologia noticiosa. Ficou-me um nó na garganta,
            que a morte tem destes desembaraços: traz de súbito à nossa comoção
            uma figura de outrora, como se o olhar se irmanasse com a saudade
            dos tempos idos. Como, afinal, cumpre a quem vive, mesmo que
            virtualmente, como retrato perpétuo e inesquecível.  
            
              
            
             O
            Polícia de Papelão – Diziam-no um bom sacanola,
            pachorrentamente no giro como um buda ambulante de segurança pública.
            Suspeitavam mesmo alguns, cochichando-o aos correligionários, que
            fornecesse os arquivos secretos com material bom e fresco. Nunca
            tirei isso a limpo, se acaso se verificava, de resto ele era para
            mim muito mais uma gravura típica que propriamente um cívico.
            Barrigudinho, como se usava na época frequentemente nas agências
            de autoridade, tinha um carão avermelhado denotador – para além
            da estrutura biológica – do seu algum apreço por Baco. Com má
            consciência? Provavelmente, pois ainda não chegara o tempo da boa
            liberdade em que os mantenedores da ordem (do regime, quer-se dizer)
            têm largueza para frequentar os lugares onde escorre o sumo-de-uva
            com, talvez, excessiva frequência. Mas vão outros os tempos,
            dantes até se dizia à boca pequena que quando um cívico ia à
            tasquinha era para executar trabalho,
            verbi gratia espetando a orelha para conversas de gente que
            escavava ardilosamente na obra do homem de Santa Comba.  
            
             Quando
            à paisana, quase nunca o reconhecia: ficava como que transfigurado,
            mas um tique o denunciava – as manápulas atrás das costas e o
            passo cadenciado de quem tinha muitos metros de rua para desbastar
            ao correr das horas de serviço, por acaso de folga. Fazia voz
            grossa, que um dia bem lha ouvi num raspanete a um colega de estudos
            liceais. Devia ter seus azeites, mas ainda não incomodavam
            tecnocraticamente, em estilo gestapo, chegados que ainda não tinham
            sido os tempos caceteantes de mestre Cavaco. No fundo um pobre diabo
            diligente quanto bastasse para chegar à reforma. Um pobre homem,
            afinal, de certezinha camponês despejado na profissão, exilado na
            cidade e de certo picado pelos do topo. Teria alguma vez, na
            verdade, prejudicado ou feito mal a alguém? A mim parece-me que não,
            pois não teria do esbirro mais que a figura caricatural. Um azar,
            digamos. Como nas fitas, o físico do papel. E querem maior desculpa
            para um sujeito que, se calhar, nem via filmes policiais?  
            
             A
            Rosa de Todo o Ano – Não se chamava Rosa, ‘tá de ver, mas eu
            chamava-lhe assim. Criada de todo o serviço duma família de teres,
            ia à praça, varria as escadas do prédio de seus patrões, lavava
            janelas e batia tapetes, lá para dentro certamente se dava a
            misteriosas tarefas de cosimentos e cozinhados, habituada a alombar,
            percebia-se, com tudo o que requisitasse suor. Quando eu morava na
            parte velha da cidade, nos meus tempos de gaiato, encontrava-a
            frequentemente numa loja de tecidos a mercar carrinhos de linha e a
            buscar a caixa das amostras de botões, aparelho misterioso e
            encantado com encaixes sobrepostos como jardins suspensos que também
            eu transportava para minha tia, que cosia para fora como
            franco-atiradora de linhas e agulhas.  
            
             Sempre
            jovial, dava-se bem com vizinhos e lojistas. Quarentona, ainda
            denotava que fora linda cachopa. Mas, retirada das lides do coração,
            ficava-se perceptivelmente pela existência de mourejadoura a todo o
            pano. Constava que tinha um filho lá para os longes de uma mirífica
            Lisboa, marçano ou manga-de-alpaca de pequeno porte em lugares mais
            ou menos lendários. Portalegre naquela altura ficava longíssimo da
            capital, daí o desapego aparente. Um dia, ia eu nos meus catorzes/quinzes,
            perguntou-me onde comprara uma capelinha de macela que por esses
            dias de S.João eu levava nas mãos (todos os anos as compro,
            rendido às flores secas da tradição).”Foi
            ali na do senhor Xis, senhora Rosa…”, disse-lhe eu deixando
            escapar a boca para a crisma que lhe dera. “Eu
            não me chamo Rosa, menino! Sou …” e lá me disse o nome que
            agora omito a vosselências. E daí em diante, sempre que nos cruzávamos,
            cumprimentávamo-nos como velhos conhecidos. Sabia lá ela quanto eu
            apreciava a sua lhaneza natural, a sua inocente bondade de burrinha
            de trabalho e que eu somente deixava transparecer na minha saudação
            respeitosa!  
            
             Como
            outros de outros mesteres, perdi-lhe depois o rasto ao mudar de casa
            para lugares mais centrais. Ainda estará viva? Se assim for deve
            decerto trabalhar para os netos, nessas paragens lisboetas onde
            talvez se tenha juntado ao filho por reforma bem suada. Deverá,
            concerteza, continuar anciã de boa catadura: os pequenos lojistas e
            os vizinhos devem apreciá-la, num relacionamento fácil e contente
            com este saintéxupery feminino e anónimo cruzando a terra dos
            homens do quotidiano esvoaçante.  
            
              
            
             O
            Ti’Mané Vítima – Ou só o Vítima, que os anos abreviam até
            as alcunhas inventadas. Era carvoeiro e quando apregoava “Olh‘ó
            picão, picãããão!” o seu grito publicitário era uma
            queixa rouca e desgarradora que fazia pena e riso em simultâneo.
            Como uma acusação feita ao destino, quase no género dum Pamplinas
            sonoro. Daí o nome de Vítima que de pronto lhe colei para gastos
            internos.  
            
             Todos
            as tardinhas, com o jerico liberalmente carregado, passava o “Vítima”
            perto da minha casa. Às vezes um bocado aos trancos, que Ti’Mané
            gostava da sua pinga e não devia ser peco a servir-se da caneca. E
            sendo o burrico o seu meio de transporte, não corria o risco de ter
            de soprar no balão ou ser
            autuado, com vilania, pelos pasmas.
            Daí, concerteza, a sua solitária e serena reincidência que lhe
            desatava a língua e o punha em conversas íntimas, com perguntas e
            respostas só lá p’ra ele, num tom algo entaramelado mas
            convicto. Que filosofias de mágoa ou espanto lhe percorreriam as
            meninges? O “Vítima” jogava nos diálogos a uma voz, visitando
            lugares inacessíveis aos outros nos continentes dum discurso próprio
            e, confesso, isso fazia a minha admiração juvenil. Pela evidente
            constância, decerto dirigida aos manes.  
            
             Às
            vezes acompanhava-o um filho ainda novito mas que ele já dera às
            artes ígneas da carvoaria. Tinha uns olhos duma tristeza infinita.
            Mas, como eu o conhecia da escola, sabia que isso se devia mais ao
            enfarruscado do rosto – marca inevitável em que praticava
            semelhante tarefa. Calado, sobre o magro mas rijote, conhecia como
            seu pai as lides do fogo, o largo espelhado das chamas e, depois, o
            fumo acre e oloroso sobre os campos. Daí, talvez, o seu algum
            afastamento da malta colegial, rapaz-homem que já era. Mas pacífico
            – e com uma humildade comovente de pobre. Um dia, um peralta
            qualquer ofendeu-o e, ameaçador, colocou-se em posição ante os
            olhos algo acossados do jovem carvoeiro. Impante, bruto como as
            casas, humilhou-o com desfaçatez. Ou seja, teve azar. Com a minha
            delicadeza de orangotango fui-me a ele e deixei-o feito em cacos: e
            que isso conte a meu favor, essa zaragata de que me orgulho, nas
            contas a efectuar com os anjos guardiões do senhor deus dos exércitos.
            E nem sei se ele me olhou com os seus lúzios de labutador sem
            usura.  
            
             Há
            uns anos, andando eu a passear numa das vilas-dormitórios da grande
            Lisboa, dei com ele – com um filhote à ilharga – a entrar num
            cafézito de bairro. Fiz-me também entrado e tomei anonimamente
            qualquer coisa enquanto o nosso herói desbaratava uma sandes
            acompanhada a cervejola. Não era, portanto, um adepto do tintol
            como o senhor seu pai, já falecido.  
            
             Paguei
            o não sei quê que bebera. Saí, com o coração a bambolear como o
            Ti’Mané fazia. E na rua, enquanto ia respirando o ar proletário
            daquele bairro de operários, só me apetecia gritar baixinho “Olh’ó
            picão, picããããooo!”. Como uma queixa, digamos. Ou uma
            saudação daqui para o além, burrico incluído.  
            
              
            
             A
            Protagonista em Pessoa – Aí pelos meus doze anos, estando o
            meu pai como funcionário de confiança no stand
            da Peugeot de meu padrinho – que eu frequentava depois das aulas
            para ler livros e selecções do Readers Digest acantonados num armário
            do pequeno armazém – disse-me em certa ocasião, talvez tarde
            talvez manhã:” Vai levar esta encomenda ali a casa da D.Rosa”. Era mesmo em
            frente, nos altos do Café Facha que esta senhora D.Rosa Maria, viúva
            dum professor de Liceu e sobrinha (quase da mesma idade!) de meu
            padrinho, morava acompanhada de sua criada Clementina. Casara algo
            sobre o tarde, parece que por gosto de seus tios. E meu padrinho era
            o sr. João Vinte-e-um – um dos nomes, talvez pelo inusitado, mais
            conhecidos na cidade, tanto mais que a família, pela operosidade da
            famosa D.Rosalina, era a dona da pensão-hotel onde estacionava José
            Régio e, também, toda a gente de estatuto que visitava Portalegre.  
            
             A
            D.Rosa (Fernandes de Carvalho) já eu conhecia de vista. Era senhora
            de cinquenta e picos, bem vestida, a quem a idade mediana ainda não
            retirara uma certa elegância e, claro, uns olhos negros e
            pestanudos de portuguesa de lei.  
            
             Foi
            a aia Clementina quem veio abrir. Também a esta a conhecia e ela
            tratava-me cordialmente quando nos cruzávamos na rua do pé da
            porta. Disse em voz alta lá para dentro, com a sua voz beiroa, quem
            era e ao que vinha. E lá de dentro uma voz educada retorquiu que
            mandasse esperar. Depois a senhora da casa apareceu – e trazia uma
            espécie de quimono de seda sobre as roupas habituais, o que
            bastante me admirou, pouco avezado que estava a tais elegâncias
            senhoris.  
            
             “Olá,
            Chico – atirou-me sem detenças – entra
            aqui para a sala” E perscrutando-me: “Disse-me
            a Josefa que gostas muito de ler...”. Josefa era a minha
            professora de Português, drª Josefa Morgado, que me facultava
            todos os livros que me apeteciam nas aulas em que se escolhia
            livralhada para ler em casa, hábito que não sei se inda existe na
            comunidade colegial. E drª Josefa era membro da família por mor
            dos da outra banda, também oriundos do norte.  
            
             Confirmei.
            E ela disse-me então mais ou menos o que segue: “Se
            quiseres, no Domingo passa por cá. Vais cá lanchar. E depois vês
            ali os meus livros e poderás levar algum que te agrade”.  
            
             Assim
            o fiz – e foi o começo duma amizade que durou vários anos em
            directo e, em indirecto, toda a vida.  
            
             Num
            domingo por mês, lá ia eu a casa da D.Rosa Maria. Lanchava, lia Séculos
            Ilustrados, a revista Eva, exemplares do Bugs Bunny (crismado por cá
            de Pernalonga) e, à medida que fui crescendo no corpo e na sua
            estima, passei a ir-me embora só depois do jantar, sempre servido a
            preceito pela operosa Clementina. Interessava-se pelos progressos
            nos meus estudos, num dia achou que já era tempo de eu ouvir
            Mozart, Schubert e outros da confraria. E o primeiro livro policial
            que li, o “Crime na Mesopotâmia” da Agatha Christie,
            acompanhado de “A cidade dos estranhos” do grande Sherwood
            Anderson, foi ela quem mos emprestou.  
            
             De vez em quando, apareciam outros familiares, entre os quais uma
            moçita loira quase da minha idade – e eu punha-me a pensar como
            é se podia ter uma cor de cabelo assim, tão estranha e como que
            doce... Sei que mais tarde casou com um cidadão sul-americano e foi
            brutamente infeliz. Coisas da vida, pois então, que uma simples côr
            de cabelo não pode, que pena, resolver.
            
              
            
             Num
            dia, pesquisando nas prateleiras dos dois altos armários da sala
            onde guardava os livros, peguei num que pus de parte para levar.
            Tinha uma dedicatória do autor e rezava assim: “Para
            a D.Rosa Maria, que me forneceu o nome e o perfil. A muita estima do
            José Régio”. Quando pus sobre a camilha os três livros que
            seleccionara, a minha amiga pegou nele e disse-me: “Chico,
            não leves este. Pode estragar-se, apesar de seres cuidadoso e eu não
            queria ficar sem ele”. Anuí, sem fazer alarde.  
            
             E
            foi tempos mais tarde, ao lê-lo nas instâncias escolares, que
            comecei a juntar A mais B.  
            
             Quando
            fui para a tropa e depois para a Guiné, D.Rosa deu-me um grande
            abraço e uns beijinhos repenicados. Estava, via-se, comovida. E
            findo o meu exílio prematura, na volta, fui visitá-la e
            agradecer-lhe frente a frente os aerogramas que me mandara com
            palavras de conforto e umas notazitas de banco para animar a rota.  
            
             E
            lá segui meu caminho...  
            
             Um
            dia, já os anos estavam maduros – e as visitas espaçadas –
            encontrei-me com ela ao pé da Farmácia Romba. A Clementina
            morrera, ela vivia agora com uma prima lá no bairro dos ricos, no
            extremo da cidade. Estava quase cega. Perguntou-me pela família,
            pelos filhos, pela vida. “Já
            pouco tempo cá hei-de andar, Chico. O tempo é que nos leva...”.
            E levou. Finou-se, segundo me disse um seu sobrinho professor, daí
            a semanas, durante a noite e parece que serenamente.  
            
              “Belos
            passeios tinha Portalegre para dar. Rosa Maria, já mais calma,
            pensava no que ia ser a sua vida, naquela sua futura grande solidão
            em que o destino a lançara”. Cito de memória o Régio, que
            nem tenho coragem de ir buscar o livro para citar correctamente.   
   (*)
            A ribeira da Lixosa era o
            curso de água para onde naqueles anos se canalizavam os detritos da
            cidade. A volta à Serra
            é a estrada que rodeia Portalegre num anel que parte e que chega
            frente à Casa-Museu José Régio.  
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