O CRIME E A
SOCIEDADE – ESBOÇO DE UMA TEORIA
(Nicolau Saião)
Introdução
Neste pequeno estudo abordaremos o problema do crime
e os seus reflexos na Literatura Policial. Consideraremos o crime
como uma “série grupal”, na asserção que lhe é dada por Meininger,
que postula: “Constitui série grupal tudo aquilo que depende de
condições que pretendem passar por conjunto de causas”. Assim,
referir-nos-emos à cultura da responsabilização como um dado que é
contrariado por actos dimanados da entidade que propicia o seu
estabelecimento devido à intrínseca perversidade (cultura da
desresponsabilização) que é o invólucro estatal ao mais alto nível
dos seus próceres. Explicaremos o mistério do crime como um acto de
ocultação qualificada assente no fulcro hipócrita que é a este nível
o cerne do relacionamento societário na civilização ocidental
capitalista democrática, de bases judaico-cristãs; bem assim como o
esbatimento individual levado a efeito nas ditaduras capitalistas de
Estado (usualmente denominadas comunistas por razões de propaganda).
Far-se-á prova da existência de sociedades criminosas e sociedades
criminais, dando-se conta da dependência do sistema judicial e do
seu uso específico em relação às segundas.
Finalmente, ligar-se-á o tema do policiarismo ao
tema dos direitos individuais dos cidadãos, que se encaminham em
certos casos para o nadir.
Do crime como série grupal
Os cidadãos roubam. Os cidadãos matam. Os cidadãos
burlam e entregam-se a depredações as mais diversas. Leia-se, um
sector do todo – que é indiscernível. Este é um facto que se
verifica em todos os países do mundo, em todos os tempos e em todas
as sociedades. Contudo, importa descriptar como tal se dá e, por
último, porque se dá, levando em conta que a assunção da cidadania
(que configuraria as chamadas sociedades de Direito) é um facto
relativamente recente em termos modernos, sendo de notar que o crime
não recebia nem recebe o mesmo enquadramento sob o ponto de vista
filosófico e operativo e, nos países periféricos ou terciários, é
flutuante.
Deixemos por ora o ponto de vista operativo e
detenhamo-nos um pouco sobre o ponto de vista filosófico.
Assim, na opinião de uns autores existe crime devido
às causas primeiras, ou seja: o Homem, imperfeito, estaria
naturalmente votado às más inclinações, sendo missão da Moral
morigerá-lo ou enquadrá-lo adequadamente. Outros são da opinião que
o crime depende de condições sociais bem determinadas. Outros,
ainda, interrogando-se sobre o que é o crime, põem a tónica na
opinião que se tem em relação a actos característicos, defendendo a
teoria de que tudo depende do enfoque que se lhe dê (exemplificando:
“roubar é corrigir efeitos sociais”, como escrevia Roland
Castroville em “O espírito das leis e seus efeitos”). A nosso ver, o
crime é uma resultante de tudo isso. Efectivamente, o que poderemos
classificar de más inclinações? E ainda: o que é moral ou não moral?
Na América do Norte, em toda a civilização plain o
roubo inter-tribos diferentes era encarado não só com naturalidade
mas também consideração, havendo escalas gradativas: roubar cavalos
era socialmente mais meritório que roubar um arco ou uma lança,
considerados artefactos indispensáveis ao guerreiro ainda que
inimigo. (Um exemplo, para ilustrar comparativamente, da nossa
sociedade: num derby futebolístico meter golos é muito recomendável;
mas qual o jogador que seria aplaudido por roubar uma ou mais
bolas?!). Por seu turno, era altamente desprestigiante, passível de
flagelação (mas quem se lembraria dum acto assim, excepto debaixo da
influencia do álcool fornecido pelos brancos?), urinar na fogueira
do acampamento ou nos caminhos que levassem à fonte de abastecimento
de água. A defecação dentro do perímetro do acampamento e
logradouros adjacentes era permitida, mas só se fosse feita em
terreno ervoso ou fora dos trilhos. Mostrar as partes sexuais a uma
anciã era considerado um insulto grave, mas mostrar o traseiro era
tido como delito menor, quando não picardia sem importância ou filha
de exaltação fortuita.
Repare-se que o crime praticamente não existia no
interior das tribos estudadas (e nos sílvidas o panorama era
semelhante). Eram muitíssimo raros os crimes de sangue, bem como o
furto ou o roubo. Evidentemente que a relação inter-nações (Lakotas
versus Pawnees, Arikaras versus Comanches, Apsarokas versus Kiowas)
explica o facto: as tais “más inclinações”, na asserção ocidental
induzida e controlada pelos “operadores do sector moral”(igrejas)
ou, como nós preferimos dizer, os instintos dinâmicos e vitais de
combate e rapina esbatiam-se no confronto decorrente, sempre vivaz e
vigoroso mas não cruel socialmente.
Sem irmos a outros exemplos históricos, por
redundantes e para além do nosso âmbito de enfoque (remetemos os
interessados para a consulta de experts da romanidade e do mundo
grego), podemos concluir:
1. Crime é tudo o que, tendo efeitos
desestabilizadores, não é consentido por lei expressa ou
consuetudinária;
2. Crime é tudo o que recebe legislação específica
como tal;
3.
Crime é tudo o que interessa a uma sociedade que
assim se classifique.
(Exemplifiquemos um pouco: se alguém, nos tempos
romanos, dissesse em altos brados na rua que Júpiter era um canalha,
ladrão e gay desbocado, seria imediatamente preso e possivelmente
executado. Mas quem, actualmente, prenderia um cidadão por essas
imprecações?).
Haverá, no entanto e a nosso ver, que efectuar uma
necessária correcção para adequar: deverá substituir-se sociedade
por classe dominante nas “sociedades criminais”, porque é esta
efectivamente quem determina os ritmos sociais aceitáveis. O sistema
judicial, em qualquer país moderno ocidental secundário (pese aos
ingénuos ou iludidos que acalentam a ficção da existência de
“sociedades de Direito”) está dependente dos interesses definidos
por aquele sector social, bem assim como a acção das polícias. (Toda
a chamada gente comum conhece a realidade existente v.g. em
Portugal). O conceito “sociedade de Direito” só é aceitável se
pretender significar “sociedade onde o Direito escrito e a Lei
definem o ritmo social”, nunca sociedades onde este ritmo seja
definido pelo “equilíbrio positivo” que as determinações do Direito
conformam. Tal não se verifica, nunca se verificou e é uma perigosa
ilusão - para quem deseje ver claro – tal concepção que assenta,
digamo-lo decididamente, numa atitude autoritária dos dirigentes
sociais.(As pessoas não se interrogam muitas vezes por medo).
Com efeito, ao forçarem-nos, mesmo intelectualmente,
a conceber através da ameaça impressa (ou mesmo expressa) que o
Direito pauta o ritmo social das chamadas democracias, efectuam nada
mais que uma impostura (que lhes é necessária e intrínseca).
Efectivamente, é pacífico que quem manda neste país, por exemplo,
não são as Leis nem sequer a emanação maior do sistema político (o
Sr. Presidente da República, garantido pela denominada Assembleia da
mesma) e muito menos a emanação executiva (o Sr. Primeiro Ministro,
um mero “mordomo” ou efectivador de tarefas alto-administrativas),
mas sim o complexo industrial-comercial e a alta finança de que
aqueles são simples delegados no jogo político apelativo.
(Deixo à consabida inteligência dos leitores a não
necessidade de exemplificar. Mas não resisto a refrescar algumas
memórias menos ágeis: quem não se lembra do célebre caso dum
argentário luso que, depois de convocado pela tal “Assembleia”,
apareceu nos entrepostos da mesma quando bem quis, com o ar
assumidamente de mandante característico e, efectivamente, natural
que lhe assiste?).
Não será inteiramente necessário assinalar, mediante
menções de relevo, o que se afirmou naqueles três pontos acima.
Apenas epigrafaremos um íten: assim, por exemplo, é facto que não
sofre contestação que o assassínio é considerado o pecado maior
social-civilizacional, de acordo com o geralmente legislado (sendo
ficcionalmente o dado mais apelativo e motivador). No entanto, na
sociedade dependente em grau primário do complexo
industrial-comercial, isso não é pacífico. Efectivamente, como pode
definir-se assassínio? Conceptualmente, a eliminação propositada e
nefanda de um ser ou um grupo de seres com o intuito de se atingir
uma determinada conclusão racional e gratificante para o homicida. O
móbil pode ser a vingança pessoal ou social, o lucro – qualquer
espécie de lucro, físico, material ou espiritual – havendo gradações
específicas relativamente irrelevantes, aliás, mas inscritas para
entravar a descriptação in situ. O que importa estabelecer é que,
para uns, o assassínio atinge os direitos vitais inscritos na
espécie (eliminação da vida, que é pessoal mas depende de acto
fundacional do Criador), ao passo que para outros coarta de maneira
formidanda e decisiva a coesão social a um elevado grau de
insalubridade; outros, ainda, consideram que é um atentado, sim,
contra o adquirido”legítimo individual”, uma vez que elimina de
forma definitiva o direito à permanência distribuído pelos anos
possíveis.
Adicionalmente, pode perguntar-se: o assassínio
depende do tempo de execução? Pergunta pertinente, uma vez que se um
indivíduo atingir um outro, que entrementes leve um fragmento
considerável de tempo a morrer (há uma célebre estória policial que
aborda precisamente este facto) já poderá ficar enquadrado noutro
estatuto (a nosso ver, melífluo). E depende do instrumento que se
utilizar? Assim, que pensar dos industriais (companhias) que
deliberadamente extinguem determinados valores ecológicos ou
vivenciais, determinando a morte a médio ou longo prazo para
sectores da população ou etnias? Ou mesmo de nações que o fazem não
inconscientemente?
Em suma e concluindo: o assassínio inscreve, isso
sim, a perturbação mais intensa e comovente no seio dum agregado
maior ou menor. E é essa perturbação que importa qualificar. O
assassínio é punido e é alvo de sanção apenas na medida em que
conflitua com a normalidade legal existente em código. E nada mais.
Existem inúmeros assassinos que jamais foram punidos, tudo
dependendo até da agilidade processual da polícia ou dos magistrados
(há assassinos provados que são soltos pelos juízes porque se
verificaram, a seu ver, ineficácias legais de pormenor…). Pelo que,
se conclui: o que faria realmente mal, dum ponto de vista de Sírius,
seria a “ausência de censura”, inscrita em lei – e não da punição
efectiva. O que se pretende, ao censurar ou cominar o assassínio,
não é deter os seus resultados penosos (assassínios existirão
sempre…o curso do mundo não depende da maior ou menor quantidade de
assassínios que haja) mas desencorajar o seu curso marcado operativo
mental. E qual a razão? Creio que pode conceber-se o seguinte:
porque a assumpção da naturalidade do assassínio precarizaria,
desestabilizaria os processos sociais das classes - nomeadamente
daquela que é a efectiva desfrutadora da protecção do sistema
judicial – obrigando-as a existir de uma forma não reconhecível no
quotidiano. Ou seja, a cominação sobre o assassínio existe como um
repto à fragilização dos ritmos sociais dominantes que este põe em
causa.
No entanto, sempre que é necessário a classe
dominante recorre ao assassínio, muitas vezes de massas, sendo muito
normal, ainda, nas sociedades criminais, a desculpabilização dos
próceres de qualidade.
A Literatura Policial tem dado conta destes factos,
através não só do romance de enigma (whodunit) como do “hardboiled”
ou do “social thriller”. Repare-se que o acento tónico, no que
respeita ao assassínio, é posto sobre a responsabilidade individual
e de consciência do seu executor. A não ser assim não haveria
distinção sofrível e justificável entre assassínio e homicídio
involuntário (uma morte é sempre uma morte, como por exemplo na
civilização hebraica). Daí que nas sociedades criminais o homicídio
involuntário ou negligente seja punido com penas extremamente
exíguas, pois neste tipo de sociedade não se respeita a vida humana
mas sim os seus sinais formais de utilidade. O que permite esta
conclusão inquietante mas real: as sociedades criminais são sempre
pré-fascistas.
Em conclusão deste capítulo, temos então que é crime
tudo o que conflitue com os interesses sociais da classe dominante,
mesmo que por arrastamento ou inevitabilidade isso possa aproveitar
a franjas da população. No entanto, nas sociedades criminais – de
que este país tem sido um exemplo consistente – existe sempre um
manejo de desresponsabilização, muitas vezes conseguido mediante um
acto simples e bem conhecido (as incríveis demoras processuais, que
não são fortuitas ou infelizes mas sim propositadas, inerentes ao
sistema). Tal não parte de uma perversão da dita Justiça ou dos
magistrados (que são sem ironias em geral pessoas de bem), mas sim
porque é uma característica conformativa “genética”desta
estruturação social.
Sociedades criminosas e sociedades criminais
a. O crime é um barómetro, podendo ser um
conteúdo específico duma determinada civilização. Assim, por
exemplo, a sociedade romana assentava os seus princípios formais e
civilizacionais no roubo e na rapina, a que geralmente se dá o nome
de conquista. Em vista disso era uma sociedade esclavagista.
Possuidora e incrementadora de postulados e códigos de Direito, este
pautava os seus ritmos sociais mas de forma muito peculiar, uma vez
que era uma sociedade de castas e classes bem definidas. Curioso é
verificarmos que o crime mais insuportável para um romano era a
prática do fellatio com um escravo, não o homicídio ou mesmo o
parricídio. Era, portanto, uma sociedade criminal, pois são
“sociedades criminais” aquelas onde os postulados do Direito estão
ao serviço não da generalidade dos cidadãos, ainda que por
propaganda o sustentem, mas sim das classes ou castas sedimentadas.
Os Estados Unidos da América do Norte, por seu
turno, foram construídos mediante o pioneirismo, protagonizado por
gente de todas as classes e, a princípio, por gente que na Europa
tinha sido relativa ou realmente despossuída.
Esse pioneirismo assentou, a princípio, na
iniciativa individual caldeada pelo relacionamento dentro de
comunidades, muitas vezes com a mesma origem nacional. A pouco e
pouco, contudo, vazou-se no roubo e no extermínio de terras e dos
autóctones e na famosa mediaticamente lei do mais forte, o chamado
“livre empreendimento” – no qual o promotor comercial ou industrial
utiliza golpes adequados para estorvar, inibir ou ultrapassar os
concorrentes. E que é alvo, no caso de falhanço, descaímento ou
prevaricação acentuada ou grosseira, de duras sanções. Uma vez que
não havia propriamente ou realmente uma classe dominante
estratificada, cimentada e consolidada, havia que preservar a “livre
concorrência” que assim ia forjando a pátria ultramarina e é um dos
seus apelos fundacionais mais queridos e respeitados.
Esta nação, com todas as vantagens e desvantagens
duma sociedade aberta, é pois uma “sociedade criminosa”, ou seja:
verifica-se crime nela, mas este é duramente atingido uma vez que o
interesse da livre concorrência assim o exige e determina.
(No entanto, durante os consulados de Georges Bush -
seguindo-se aos prolegómenos de Lyndon Johnson, cuja subida ao poder
resultou do assassinato de Kennedy por apparatchikis, Richard Nixon,
cuja administração teve claros ressaibos de tipo cripto-fascista, e
Georges W.Bush, por razões de carácter – tentaram-se claros manejos
buscando modificar o país, criando sectores típicos de “sociedade
criminal”).
Nas sociedades criminosas existe, por exemplo,
corrupção – nomeadamente em sectores das forças de segurança – mas,
uma vez descoberta por operadores específicos, o jogo livre
determina consequentes condenações. Toda a gente sabe, é claro, que
um Presidente prevaricador (Nixon) foi destituído e presos vários
dos seus ajudantes. Numa sociedade criminal nunca, repito nunca, tal
coisa sucederá. Uma vez que as eventuais corrupção ou prevaricação
são consideradas naturais, tacitamente consentidas por consabidas,
quando não camufladas ou abafadas com o pretexto de que é a vida. Na
verdade, é um facto estrutural como se referiu atrás, não uma
perversão sectorial ou pessoal. Ou seja, não por intrínseca maldade
mas porque o jogo social, nas sociedades criminais, assenta na
manipulação e no arbítrio expandidos através dos anos.
Quem não conhece os casos, mais do que relevantes,
de políticos ou operadores endinheirados medíocres, onzeneiros e com
suficientes provas dadas da sua incapacidade formal, que se mantêm
anos e anos nos canapés do poder, ora sendo isto, ora aquilo – com o
maior relevo e proveito, apesar de já não despertarem qualquer
excitação no imaginário societário do homem comum (e cuja opinião,
segundo eles, justifica a sua democrática vilegiatura)?
Numa sociedade criminosa tal não é possível, porque
há que refrescar o sistema, há que dar lugar a outros protagonistas,
há que livrar os cadeirões para que outros eventuais parvenus
talentosos os usem e ocupem com consistência e imaginação (ainda que
oportunista e muitas vezes velhaca). É por isso que nessas
sociedades, a que se chama abertas, um que tombe não mais se aguenta
no alazão – é afastado naturalmente (fica reformado…).
Nesta conformidade já se entende porque é que a
Literatura Policial é epigonal ou imitativa nas sociedades
criminais. Não é realista e autónoma – para que tal existisse era
necessário que, como referiu adequadamente Louix Vax, “a regra fosse
sensível”. Ou seja, que o jogo “acumulação/posse” assentasse na
assumpção do risco. Em países onde tal não se verifique, os
criminosos de alto coturno não têm necessidade de efectuar
angustiantes manobras de ejecção, o sistema mantido pelos seus pares
políticos ou judiciais encarrega-se de o camuflar racionalmente (excepto
se interessa “liquidar” o fulano, que agiu com ingenuidade – ou que
se tornou indefensável por ter “dado nas vistas” excessivamente –
ou, não tendo de facto prevaricado, ser útil como bode expiatório
para entregar aos “paisanos”).
Assim sendo, eis porque em Portugal a única
“literatura policial” que tem existido com propriedade e
consistência tem sido o género ou subgénero a partir do “hardboiled”
e do “whodunit”, mas claramente à maneira de. Não existe o
“social-thriller” nem o “thriller político” (a não ser como
encenação inconsistente, como as rosas de Malherbe). Como podia
encenar-se uma novela, ou mesmo um filme – como na sociedade aberta
se faz a cada passo – em que por exemplo um juiz fosse um assassino?
Ou um antístene um torturador sádico? Ou um banqueiro um matador de
crianças? Isso não existe, esses esteios sociais são todos gente de
bem! O país é pequeno, somos todos primos e primas e todos sabemos
que não há cá pervertidos desses! Ainda que até só na literatura de
mistério…
b. Existe, todavia,
osmose – diríamos que por capilaridade – no vector “sociedades
criminosas” e “sociedades criminais”. Como as sociedades criminosas
são filhas, tal como a Literatura Policial, do chamado capitalismo
privado e da civilização industrial progressiva ou de ponta (ou
seja, avançada ou tecnologicamente interessada), tem capacidades de
seduzir, com as modificações sociais que o tempo forja, outras
sociedades. As sociedades criminais podem tornar-se sectorialmente
(senão de todo) sociedades criminosas e vice-versa, seja por
evolução ou involução. Veja-se o caso da Espanha, tornada sociedade
criminal durante a maior parte do consulado de Franco. Também
Portugal, paulatinamente, devido a sua adesão à união europeia e ao
capitalismo mundial de ponta, já tem laivos da outra sociedade,
ainda que muito tenuemente. Mas o reaccionarismo, o fechamento
incrementado pelas associações confessionais e a mentalidade tacanha
dos dirigentes faz desta nação um muito desagradável “melting pot”,
onde campeia a injustiça descarada, a exacção e o arbítrio que já
tem um claro sinal cripto-fascista que custará a erradicar pelos
mais “progressivos”. Ou seja: o crime emana dos próprios esteios do
Estado, quer por defeito quer por excesso. Será necessário recordar
os consabidos actos escandalosos, mas não de tostões ou jantares da
bola, em que se têm distinguido respeitabilíssimas altas
personalidades? (Tudo segredado pelas esquinas…).
Em suma: há sociedades criminais quando se verifica
corporativismo tácito e efectivo, ainda que dissimulado ou
resguardado; cimentação dos foros mentais mediante a acção muito
marcada de uma entidade administradora de ritmos espirituias;
existência de um capitalismo fraco ou incipiente, normalmente
periférico ou integrado por valetes; laxismo nos actos decorrentes
de leis ainda que “justas”, mas que os próceres sufocam.
Há estados criminosos quando existe corporativismo
oficializado e/ou doutrina de Estado imperativa e leis visando
apenas a permanência do regime político (ao passo que nas primeiras
se visa a permanência do regime social).
Há sociedades criminosas quando existe jogo
democrático e mistura de classes, capitalismo forte e utilização das
leis na dirimição dos conflitos (comerciais, industriais, pessoais
daí decorrentes).
Do crime como ocultação qualificada
Pelo que atrás ficou articulado, pode e é lícito
deduzir-se que: a) Não existe Literatura Policial consistente nos
“estados criminosos”, porquanto o crime é uma entidade flutuante e
verdadeiramente do foro da política. A aparente LP que se dá a lume
nesses estados é propaganda involucrada de literatura policial,
muitas vezes bem articulada mas na realidade fantasista - encenando
uma sociedade de facto não existente ou habilmente distorcida. b).
Existe forte Literatura Policial, que reflecte os traumas
societários e os ritmos daí decorrentes, nas “sociedades
criminosas”. c). É epigonal ou imitativa a eventual LP existente nas
“sociedades criminais”. Dos subgéneros, só são possíveis/credíveis o
“thriller psicológico”, geralmente de ordem passional e o “thriller
de acção”, pondo em cena detectives filiados no hardboiled e
criminosos crapulosos. Numa fase intermédia, o que sucede agora em
Portugal, de passagem lenta e paulatina para “sociedade criminosa”,
existirá o “social thriller” e, numa fase posterior, se não
acontecer nenhum golpe autoritário, o “thriller político”. Devido a
essa fase, existente aliás “au contraire” nas sociedades em processo
involutivo intermitente, apareceu há um par de anos o chamado
“thriller metafísico”, abordando com grande dose, aliás, de colorido
fantasista e algum eficaz oportunismo os aspectos subterrâneos e
“mal contados” (ou decididamente falsos) que cifraram pelos anos o
perfil de esteios religiosos, culturais, referenciais…(Ex.: Código
da Vinci, Equação Dante, Lápide Templária, entre muitos mais).
Vejamos agora a questão fulcral do “crime”,
nomeadamente o mais tenebroso deles ou, pelo menos, o que assume um
carácter mais assustador ou penoso: o assassinato.
Este usa ser, nas sociedades criminosas, fortemente
penalizado porque – como atrás ficou dito – introduz uma perturbação
extrema no livre jogo da concorrência (vital, social,
comercial/industrial). O que subjaz a um mistério policiário não
depende do crime em si, que apenas introduz a inquietação ou a
dúvida, mas sim da sua ocultação qualificada. Ou seja, numa novela
policial o cerne da questão é não o crime mas sim a sua descriptação.
Dito de outro modo: o que importa na LP não é que tenha havido um
crime (só assim podia ser LP…) mas que haja progressão narrativa
visando saber-se o como, e o porquê adicional ou subsidiário, que
são a antecâmara, em geral, do quem. É isso que explica que uma
estória policial “invertida” – os inquéritos do tenente Columbo ou o
célebre “A casa da flecha” de A.E.Mason – desperte interesse mesmo
conhecendo-se de antemão o assassino.
A ocultação qualificada assenta na existência do
“fulcro hipócrita”, serve dizer: a verdade, logo a realidade, é
camuflada em detrimento dum “facto suposto” que é apresentado como
tendo sucedido. (Ex.: o suspeito “não estava” no local do crime; ou
“não tinha razões para o fazer”, portanto não foi ele). O “fulcro
hipócrita” é pois determinante, tanto na vida quotidiana relapsa
como nos relatos policiários – por razões muito diferentes, claro. E
uma vez que os factos, dum ponto de vista filosófico, são
reversíveis, temos pois que a hipocrisia inça toda a sociedade
criminal sendo a sua característica fundamental, enquanto na
sociedade criminosa a característica é o acto ilícito. Ou seja: é
problemática, mas passível de tratamento, uma sociedade onde o crime
e a violência prévia ou envolvente recebe sanção adequada ou
apaziguadora; vive mergulhada em angústia sufocada, desiquilíbrio
camuflado e bloqueio (o tristemente célebre fechamento da sociedade
portuguesa) a população das sociedades criminais. Por outras
palavras: nas sociedades criminosas há riscos, mas também há as
justas expectativas de punição dos ofensores, o que permite a
criação de comunidades criativas; nas sociedades criminais vive-se
num ambiente social penoso, desencorajador, “podre”, uma vez que os
instintos dinâmicos se atrofiam devido à problematização do “fulcro
hipócrita”, que assim passa de possivelmente momentâneo para o todo
social (nos tempos salazaristas tinha-se medo da “própria sombra”,
por mor do “safanão a tempo”). Se por acção de uma modificação
súbita (como sucedeu em Portugal após o golpe de Abril), a caixa de
Pândora se abre, permanecendo os entraves sociais (desqualificação e
corrupção ética do sistema judicial, acção espúria da classe
política) a potencial violência cresce a pouco e pouco, sendo as
populações mal protegidas que sofrem os mais rudes embates. Crescem
também as depressões e os suicídios, uma vez que não é normalmente
canalizada a pulsão sádica existente em qualquer ser. E, como um
abutre sinistro, vai-se adensando sobre a sociedade a sombra
devastadora do fascismo e da vertigem autoritária. Enfeitada,
enquanto não chegam os tempos, pela violência crapulosa (assaltos a
bancos, violação de crianças, impune existência de díscolos que os
corrompidos ou incompetentes próceres tentam referir como
incontroláveis…).
Como qualquer observador sério e consciente
verifica, é isso que hoje está a suceder na sociedade lusitana.
Assim como nas outras sociedades criminais.
Teme-se, assim, que não seja preciso que os
islâmicos nos destruam. Nós próprios, por desvergonha de políticos e
outros operadores de topo, colocaremos teimosa e sordidamente a
corda no pescoço. Não esqueçamos, como dizia Vítor Hugo, que “cada
povo tem aquilo que merece”…ou não teve o talento e a dignidade de
evitar.
Bibliografia
Howard Jones – “O crime numa sociedade em evolução”
Walter Meininger – “Meditações sobre o crime”
William Prescott – As minhas viagens pelo Oeste”
Ariel Shermann – “Estudos estatísticos”
Denis de Rougemont – “O amor e o ocidente”
Fréderic Dard – “O que é a literatura policial”
Nota: Comunicação
efectuada aos Encontros de Tours de Literatura Policial
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