Audiência de outono
(Nicolau
Saião)
O edifício era como se
esperava que fosse: antigo, histórico, luxuoso e imponente.
Nunca o havia visto ao
vivo, mas os relatos não mentiam: sempre era a residência do
manda-chuva, o famoso dirigente que põe e dispõe e que tem as rédeas
do quotidiano cá do pessoal.
Eu conseguira a
audiência por cunhas a um tipo de influência no meio, um político
beirão que me conhecia de pequenino. Tentara primeiro com um pároco
da capital mas este não me pudera ligar peva: nisto de recomendações
os homens públicos regionais são de facto mais fiáveis que qualquer
eclesiástico mediano, no fundo novatos nestas andanças. Para ali
chegar tivera de pagar o normal em viagens p’ra outra banda, mas
tudo bem. Se a vida está cada vez mais cara…
O public relations
e o par de seguranças musculosos, de óculos escuros e que se me
jogassem um murro me transformariam em cocó de pássaro, deram-me
acesso à Recepção depois de lhes ter mostrado o passe que os
serviços respectivos me haviam facultado.
A recepcionista era
morena e em estilo pantera, de olhos verdes com um brilhozinho quase
discreto muito bonito de ver. Era claramente do círculo do líder,
uma das típicas mademoiselles da sua inteira confiança.
– Vamos ver se Sua
Excelência o poderá receber mesmo – disse numa voz ligeiramente
rouca que me esgalhou um pequeno arrepio. – Hoje tem havido mais
gente do que o costume: dois chefes de governo sul-americanos, um
dos maiores industriais do leste, um antigo prémio Nobel da Física,
dois bispos europeus… Já vê!
Dispus-me a esperar, que
remédio. O caraças da sorte, co’os demónios, decerto não me
abandonaria e eu poderia apresentar ao excelentíssimo a minha
petição! Enquanto raciocinava e o tempo ia passando, vi saírem do
salão onde o governante dava audiência um conhecido dirigente
desportivo, dois famosos generais, um distinto jornalista-escritor,
um cardeal e um secretário-geral, além duma elegante do jet set
e dois membros do sistema judicial. Todos com uma expressão contente
e quase exuberante.
A pantera de olhos
verdes, após ter atendido uma chamada interna, fez-me sinal com o
dedo. Aprocheguei-me. E ela, com o seu tom mais competentemente
profissional disse-me naquela voz sensualmente sugestiva:
– Lamento, mas comunicaram-me agora que Sua Excelência
vai estar muito ocupado no resto do dia…e se calhar até da noite.
Ainda irá reunir-se com dois ministros duma potência ocidental, um
núncio apostólico, quatro dirigentes muçulmanos, um cineasta
célebre, dois empresários de sucesso, três jogadores de futebol e o
dono de uma cadeia de televisão, além das presenças normais: um
juiz, dois pintores famosos, um opinion-maker, um novelista…
Terá de vir noutro dia!
Trinta vezes caneco! Que
pouca sorte! Lá teria eu, co’os diabos, de fazer a viagenzona de
novo, repetir tudo!
Nem a cunha dum político
beirão bastara, raios!
Não seria ainda hoje que
poderia avistar-me e tratar do assunto que precisava com o dr.
Lucifugo Rafacale, dirigente máximo da coisa e mais conhecido pelo
seu nome secular de Senhor Satanás… Arre!
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