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Mickey Spilane

 

O último dos duros

 

(Nicolau Saião)

 

As agências noticiosas deram ontem conhecimento de que Mickey Spilane, que os apreciadores conheciam como o criador de Mike Hammer, falecera depois de à guisa do seu herói ter resistido durante muito tempo a uma pertinaz doença.

 

Era o último representante da chamada “geração hardboiled” (duros de roer), mas dum género realista e desencantado que ficava no outro lado do espelho de Raymond Chandler e Dashiell Hammett.

 

Mike Hammer, ao contrário dos chevaliers sans reproche Marlowe ou Sam Spade, passara pelas vielas enlameadas do Bronx e de Brooklin donde o seu criador era originário e onde recebera as primeira lições duma Nova Iorque onde o seu pai era barman. Onde Marlowe artilhava um soco no queixo, Hammer socorria-se dum balázio entre os olhos. O universo onde se movia perdera a rude polidez e os vilões não eram de facto cavalheiros, ainda que perigosos. Eram cruéis, frequentemente nefandos e o seu palco era o de uma sociedade donde o romantismo fora banido e vivia nos escombros dum final de guerra (que ele fez como instrutor de aviação) e os ergástulos da “guerra fria” onde o som que vinha do outro lado do oceano não era o dos amanhãs que cantavam mas o ululante queixume dos campos de concentração estalinistas que ele sempre combateu a par do nazismo.

 

Os membros do partidão, devido a isso, desencadearam contra ele diversas campanhas difamatórias visando calar o seu espírito indomável. E, no entanto, foi ele que num celebérrimo “Kiss me deadly” (O beijo fatal) – que Robert Aldrich levaria ao cinema e tornaria lendário pois pela primeira vez era abordado o problema da proliferação nuclear – desmascararia o perigo e a inconsciência dos que visavam aniquilar a humanidade através da defesa dos seus interesses egoístas.

 

Esta entre outras verdadeiras baladas novelísticas, cujos títulos aliás passariam a fazer parte não só da iconologia policiária como do próprio léxico quotidiano: “A grande caçada”, “A vingança é minha”, “A longa espera”, “A minha arma não perdoa”, onde eram traçados os sinais reconhecíveis das megatowns com todos os problemas típicos dum mundo em transformação acelerada: gangsterismo, corrupção, alcoolismo e traficância, nomeadamente nas esferas institucionais – mas igualmente o sinal de que numa sociedade aberta o mal pode extirpar-se, dado que não é de índole metafísica mas sim originado por coisas bem reais e, por isso, irradicável.

 

Tentaram chamar-lhe racista porque falava sem paninhos quentes nos bairros negros pululantes de miséria donde a compaixão estava banida; e reaccionário porque não fazia o jogo politicamente correcto dos que a leste visavam instaurar novos cárceres; e machista porque denunciava o matriarcado americano, com o seu ror de felonias e de deusas hipócritas e aproveitadoras; e brutal, porque – como o têm feito nos tempos mais chegados Giorgio Scerbanenco e Jean-Christophe Grangé – nos descrevia um mundo tirado a papel químico do que todos nós conhecemos dos noticiários mais exactos.

 

Mas hoje a panorâmica está completa e já se percebe melhor que afinal fazia parte como, noutro registo, Horace McCoy, Faulkner, Irwin Shaw e muitos outros, ao grande e riquíssimo filão dos realistas americanos.

 

Caiu o guerreiro – e, por mim, relembro-o e saúdo-o com um simples e conciso “longo e duro olhar”.

 

So long, Mickey!

 

 

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