C.
Ronald ou os fogos da noite
(Nicolau
Saião)
A
voz dos deuses não é sempre que fala. Tal como a voz do poeta.
Mas, quando isso sucede, há fogueiras na noite que se põem a
tremeluzir. Contudo, a voz dos deuses é pouco segura, afasta-se
para além de nós, oscila, cria espaços de sombra à escala do
destino dos seus senhores: porque os deuses vão secularmente
desaparecendo mas a medida dos homens é diferente, resiste e a sua
sombra é mais humilde – como a dum gato, dum arbusto, duma
oliveira. Duma pessoa, simplesmente.
Recorra-se
então à voz do poeta. Ela tem fracturas, o sangue estanca-se, a
penumbra faz-se de súbito nuns olhos inquietos. Não importa, o
sinal aí permanece, se propaga e entende. Alastra. Seja num
descampado ou dentro duma casa, os sons ouvem-se, é inegável o eco
despertado. Em redor da nossa cabeça cria-se como que um espaço de
brusca realidade – e é então que as figuras e as palavras começam
a aparecer: estranhas salas repletas de mesas e reposteiros onde
passam claros e sóbrios vultos de mulheres, coisas simples aos
cantos que tomam outro perfil, o som de flautas, de violões e até
de guitarras espanholas. E de repente um silencio que se dilata mas
fica ocupado por um grito reboante e claro, possivelmente feliz. O
poeta interroga-se, mas não é tudo uma interrogação? Não é
tudo a dúvida de quem, não sabendo, conhece todavia muito do que
subjaz às frases? Evidentemente, é o mistério da poesia, essa
florescida necessidade que tanto parte do acaso como a ele conduz,
essa chama que o poeta acende com ramos e com papéis, com tecidos,
com substancias inomináveis, com os próprios dedos e que deixam
rastos de fogo nas paredes e, principalmente, nas páginas que se
organizam em forma de livros.
C.
Ronald conhece bem os diversos rostos das palavras. Assim como
conhece a face da alegria e do sofrimento, desse quotidiano que
muitas vezes nos fere e nos angustia.
Conhece
as ruas e a floresta, conhece o que há dentro duma cozinha e também
dentro dum coração desconhecido, o que se esqueceu para sempre
dentro dum quarto, o que se tem e teve, vulgar e por isso mesmo
absolutamente belo, numa saleta que se recorda duma casa que amámos.
Um rosto de velho ou de criança, as mãos dum amigo que se foi. Os
ruídos do mar e o vozear da freguesia quotidiana num bar ou numa
cidade que se visitou pela primeira vez.
Nos
seus poemas existe sempre uma busca do que é significativo, ele
procura sempre aprofundar o conhecimento possível para que se
entenda o como e o porquê da escuridão que por vezes envolve o
mundo.
A
meu ver, este poeta de que tenho falado com empenho através da voz
e da escrita é possuidor de um método de renovação da visão há
mais de quarenta anos. E muitos o têm entendido.
Nos
sons da sua poesia algo se prolonga e percebe-se neles a mais nobre
e serena música, como num mundo que discreto se renova e se
continua a ouvir através das páginas e dos campos onde as
fogueiras iluminam a noite.
Três
poemas de C. Ronald
O
GAROTO STRAVINSKY
Lendo
Carl Spitteler numa primavera horrível.
Não é possível ser grande
com tamanha tagarelice.
Stravinsky (o certo) descobriu isso
despindo-se (noutra). Passa a língua nas notas.
Dia maravilhoso nesse bar de praia e dizer:
estou em falta contigo, "a tragédia
não tem nada a haver com a sujeira que
deixa". Uma volta nos arrabaldes (lavam as
máquinas matricidas) póstumos entre colunas
gregas. Ah, nunca, antes
de estremecer no horário o ano vindouro com
novela numa TV idiota.
E parturientes de acéfalos
já desligados da casca. Ora!
Igor sustenta nosso futuro. Por aqui, tudo bem. Então discutem sem
definição alguma, encolhidos na alcova. Especialistas de
cemitério tampouco vi. Claro, somente coveiros,
mas estes nunca levaram a sério uma cova
e tampouco a própria.
(in Como
Pesa!, 1993)
NA
CANTINA DO BOSQUE
Recebendo
o presente dos amigos, começo
uma
idade nova sem mudar os hábitos.
Eu,
animal ainda não notado na natureza.
Pronunciem
um nome que a identidade se apresenta.
Não
é um local apropriado para a alma
a
realidade que os adultos inventam.
Qualquer
lugar deste país, embrutece.
As
aves choram o vermelho da terra esfolada.
Ah,
regato perfeito, a voz humana
só
é percebida depois de perdidas as palavras.
A
sordidez é toda a História e ali
qualquer
lembrança pode ser rival dos sentidos.
De
certo há muita coisa a nos integrar.
Uma
bela italiana a nos servir.
A
alma rústica não sabe o que é pensar
antes
que nos roubem, rápido, sua essência.
No
cardápio o avesso foi escrito por alguém:
“Temos
que comer o que nos é dado olhar”.
(in
A Cadeira de Édipo,
1993)
Um
dia vês o quanto o rosto pode mudar do amor que está por baixo
dele.
Há sons da destruída força. O íntimo revelado da caça após
aberta
num cenário silvestre; e não havia relevo de montanha que a
adornasse.
O rosto caçador de olho na mira contra si mesmo, sempre!
E sempre errando na distância humana que o espírito deixou.
Tudo aparece e não desvia o angustiado conjunto no infinito.
Sem alma nesse aumento então se altera, procura soluções
na semelhança "com o que é da terra e a terra canta".
(in
Cuidados do Acaso,
1995)
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