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Charlot
e os jogos do espelho
(Nicolau
Saião)
Podemos
questionar-nos: Charlot seria Chaplin ao espelho? Pergunta talvez
ociosa, mas que não deixa de ser pertinente. Quase diria com humor:
para ser Charlot, a Chaplin só lhe faltava o bigodinho.
Senão,
vejamos: a vida de Chaplin foi exemplar do ponto de vista de um ser
humano que forcejava por se enquadrar numa sociedade que sem cessar
fazia esforços para o remeter, com o clássico pontapé no traseiro
das suas comédias, para lugares inabordáveis.
Recordemos,
ao calhar, os episódios Lita Grey*, a tentativa de darem o nosso
homem como comunista por ter vendido bónus de guerra (Chaplin
comunista é de facto demasiado forte), a censura que lhe faziam em
Inglaterra por ter abandonado mais ou menos aquele rincão onde
oficiavam os comediantes, esses sim verdadeiros comediantes, no género
de Lord Chipendale ou Neville Chamberlain…
Por
isso é que hoje se nota sem precisarmos de lupa – basta-nos a
perspectiva do tempo, esse supremo crítico como lhe chamou André
Gide – que o riso de Charlot, mesmo o dos seus primeiros momentos
que a alguns distraídos pareceram simples vaudeville, é o que fica
a qualquer um depois de uma grande e pura tristeza. Pierre Hourcade,
que um dia se forçou a debruçar-se sobre os mecanismos do humor,
como personagem grada que era e por isso vagamente cómica, ia quase
a dizer gravemente cómica, tinha dessa matéria uma ideia que, com
maldade, classificarei de “perspectiva de proprietário”. Mais
ou menos na altura em que Chaplin nos dava o seu “Monsieur Verdoux”,
referia aquele académico que o verdadeiro humor é sempre amável
ou alegre, ou seja dito de outro modo: excelente pitança para
pessoas sérias e decentes que gostam de amenizar os seus dias.
Bem
melhor andou Wenceslau Fernandez Flores ao referir que “o
humorista é um descontente que se ri da Sociedade em vez de a
ferir” – o que remete Chaplin para o lugar que é efectivamente
o seu: um homem belamente encolerizado com os disparates do mundo,
como diria Chesterton, ao qual foi imposto, por inerência de
talento (ou, se preferirem, génio) um caminho traçado entre os
pardieiros de Londres e, finalmente, as ruas da imensa metrópole
americana. E que ele soube transfigurar e tornar perene.
Ainda
hoje se ri a bom rir durante a projecção de ”Os ociosos”, de
“A quimera do ouro”, de “As luzes da cidade”, de “Tempos
modernos”. Já não estou tão seguro que o mesmo suceda ao vermos
“O grande ditador”, ou “Um rei em Nova Iorque”, ou
“Monsieur Verdoux”, ou “A condessa de Hong-Kong”. Por esta
razão muito simples: hoje sabemos à nossa custa que as gargalhadas
podem gelar na garganta e que, no fundo, o que Chaplin encenava eram
não comédias mas tragédias e que o riso só lá estava para
sublinhar uma evidência já posta em equação por Lautréamont:
“Ride, mas chorai ao mesmo tempo. Se não puderdes chorar pelos
olhos, chorai pela boca ou por qualquer outro lado. Sejam lágrimas,
seja mijo, seja sangue, tanto faz. Mas advirto que um líquido
qualquer é aqui indispensável”.
Dizia
Brassai, conversando com Malraux e Picasso, que de cada vez que via
nas actualidades Mussolini a discursar, tinha a impressão que por
detrás lhe estava sempre alguém a dar pontapés no posterior. Mas
Mussolini era um patifório um pouco risível, apesar dos desmandos
que praticou na pátria de Leopardi. Quanto a Hitler o caso era
diferente: sinistro sem contemplações de picardia toscana, era de
facto um canalha de alto coturno, um verdadeiro criminoso e um ente
que, com a sua simples aparição, espalhava a inquietação à sua
volta como nos conta Trevor Roper citado por Jean-Marie Domenach.
Será então de espantar que hoje nos apareça muito mais ridículo
e verdadeiramente objecto de maior riso ferino? Porque o que admira
– o que assim torna a regra
mais sensível e com maior relevo – é como é que um patife
daquele calibre que de facto era não mais que um ser perturbado, pôde
ser tido como profeta e condutor de povos.
Porque,
efectivamente, o riso profundo, verdadeiro, que dói e liberta mesmo
à custa de um arranco interior, tem sempre como alvo o fundamental
e nunca o acessório. Pois os ditadores, mesmo disfarçados de gente
quotidiana, são sempre um pouco como as figuras dos baralhos de
cartas: metade do corpo para cima e a outra metade para baixo, como
se estivessem cortados a meio por um espelho que os anos articulam
apropriadamente.
Chaplin
e Charlot funcionavam noutra base, estavam de corpo inteiro nesta
história de imagens devolvidas por um vidro encantado. Agiam noutro
plano, que é o da realidade criada depois de se ter atravessado o
deserto da estupidez e da mediocridade habilmente forjada por um
quotidiano que se auto-designa como responsável e respeitável. À
sua maneira contundente, para além de tudo o mais, Chaplin
demonstrou-nos e continua a demonstrar-nos esta coisa pacífica e
intuitiva: que o riso, tal como os raios da manhã, são o mais
eficaz elixir contra a monstruosidade codificada e que, contra ele,
os ditadores e os bandidos
fardados ficam em petição de miséria – até porque acabam
por finalmente compreender que o riso é o verdadeiro precursor
daquilo que nas fitas vem efectivamente em sequência e que é a
finura de uma estaca plantada em pleno coração do fantasma.
Nota
– Lita Grey, actriz vulgar mas muito bela, foi casada com Chaplin.
Instruída por sua mãe, mulher ávida e cruel, apresentou queixa
contra ele com o pretexto de que este quereria praticar no leito
conjugal actos eróticos que saíam do habitual
– ou seja fellatio, cunnilingus e sodomia – que em certos
estados dos EUA são punidos com pesadas penas de prisão. Entre
pessoas casadas, repare-se, nomeadamente por qualquer uma das
diversas igrejas existentes e sem que haja violência ou
constrangimento moral pelo meio!
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