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Ruy
Ventura e as viagens através do espelho
(Nicolau
Saião)
1.
Por
vezes, atrás de nós, há um ruído insistente. Vamos por uma rua,
estamos sentados na gare dum aeroporto, num café pouco frequentado,
acabámos de nos levantar do banco de um jardim numa cidade
estrangeira onde nos encontramos absolutamente sós ou, então, numa
taberna de uma pequena estância balnear que visitamos pela primeira
vez.
O
ruído pode ser o de uma ferramenta manejada por um operário
desconhecido, um animal enclausurado que forceja por se escapulir,
uma qualquer máquina de que jamais veremos os contornos, o assobio
intermitente de uma sirene de oficina ou de embarcação. Mais
raramente, gritos abafados – que não identificámos ou que não
sabemos de onde vêm.
Quem
se esqueceu, quem pode olvidar a sensação de surpresa, de
estranheza, de arrepio que esse barulho, quebrando a naturalidade do
fragmento de quotidiano, despertou em nós?
Frequentemente,
os poemas de certos autores são também assim: arrastam, suspendem,
distorcem por um breve instante o mundo em que nos fixáramos, no
qual excursionávamos ou que nos preparávamos para ocupar. São
inquietantes, nostálgicos, palpitantes e, se nos sugestionam como a
súbita aparição de uma paisagem desconhecida mas reconhecível,
também criam em nós uma espécie de encantamento provocado por
misteriosos filtros ou poções de secreta proveniência.
E
afinal, para maior maravilha, tudo se passa no quotidiano. Tudo se
revela, existe, projecta e vive a partir desse dia-a-dia em que as
pessoas viajam, deambulam e se relacionam como se o fizessem num
universo penoso ou fecundado pela alegria. Um universo concreto,
onde existem sombras e luz.
Depois,
tudo começa a existir nos livros e em nós enquanto leitores: de
repente os poemas passam a pertencer-nos, tal como as visões das
maiores aventuras que eles transportam. E, mais e melhor, afinal
somos donos dos livros, essas máquinas de imaginar que a cada
instante traçam no espaço rotas intemporais. Como num sonho
(melhor, na realidade) somos habitantes dum país encantado, porque
também as palavras que formam os versos, matéria aparentemente volátil,
passam a ser tão nossas como um coração, um braço, as artérias
ou a mão alucinada com que erguemos os sinais tempestuosos.
2.
O
que mais me espanta neste autor (nesta pessoa) é a sua imensa
disponibilidade, a sua curiosidade insaciável que o leva a explorar
o interior pouco frequentado duma obscura loja de província ou de
vila satélite, para ali descobrir por uma inflexão do destino
livros há muito esperados e, depois, passar de repente para a audição
de um disco de Bach ou de Haendel antes de elaborar um texto de
reflexão política, efectuar um passeio à beira do Xévora, nos
caminhos de S. Julião, conversando animadamente, a propósito de
tudo e de nada, ao correr dos minutos: as aulas que irá dar, os
projectos que procurará concretizar, aquilo que ouviu em Espanha ou
encontrou em França – e sempre atento ao perfil melancólico ou
ardente de uma árvore que de súbito palpita à beira do caminho
ou, lá no fundo, que feição tem a água do rio que se espelha e
as colinas que ainda se divisam sob o sol antes da chegada do
anoitecer. Ou, nas suas horas, as meditações depois reveladas de
como é o terror, de como é a miséria duma sociedade espúria e
frequentemente concentracionária, de como é a graça e o privilégio
de viver, de como é a esperança, o amor, a devoção à Terra.
Tudo isto constitui a curiosidade dos verdadeiros poetas, o
anti-academismo dos homens de carácter, a independência de espírito
dos que sabem que, na verdade, tudo está em tudo, tudo contém o
todo e por ele é propagado como um verso que atinge o cerne da vida
renovada.
Na
poesia de Ruy Ventura “as
portas desaparecem com a noite mas as imagens ficam a meio da casa e
a luz sobe para que possamos ver o seu rosto”.
No seu mundo diário, que é um universo percorrido por
acontecimentos e quimeras que cobram existência civil porque
robustecidas pela vontade de tornar significativo o universo da
necessidade, “há sempre
alguém acenando para a mesa, um garfo ou somente um guardanapo
traduzindo para a mesa o sabor da terra" e tudo existe
livremente, mas gravemente – com a seriedade da vida que se escoa
– "como se a noite fosse
um sótão que há muito desapareceu”.
Em
Ruy Ventura o homem inteligente e fraternal, a figura cívica de
convicções e verticalidade que faz sombra a zoilos e a pequenos
patifes – e por isso tem sido alvo de difamadores, de corruptos
morais e de medíocres burlões – irmana-se com o poeta, ou seja:
aquele que sabe reflectir, enquanto executa o seu mester, sobre a
escrita e os seus meandros de temor e de serenidade, de busca e de
encontro.
E
por isso, para ele, decerto haverá sempre “uma
luz que ao permanecer sob a água”
será o seguro penhor de que mesmo que as casas se deixem, os tempos
se abandonem à medida que os anos vão esgotando o nosso percurso,
“há um tempo recuperado"
e que sempre haverá, aberta e acolhedora, repleta de tempos a vir, "a
porta que nos separava da terra”.
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