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Edgar Degas, Canto do palco durante o balé

 

O PULOVER VERDE

 

(Nicolau Saião)

 

Imaginou, de repente, as árvores da Quinta sob a lua. Nem um ruído. A charca cuja água espelhada, imóvel, continha as famílias de mergulhões, os insectos zumbidores, as plantas de que não saberá os nomes. A pedra grande, um horizonte nítido e solene. E ele parado, com pensamentos cruzados percorrendo-lhe o corpo em todas as direcções.

 

Do lado da casa viria um som indistinto, a princípio, crescendo a seguir como numa escala musical, transformado por fim num ulular. Um cão, um lobo, uma presença indecisa de ser solitário entre oliveiras e postes ainda sem arame farpado. Depois, a pouco e pouco, iria encaminhando os passos para o lado do pequeno bosque de pinheiros mansos, antes do local onde um dia descobrira rastos de uma raposa. Olharia então o firmamento: Aldebaran, Fomalhout, Canis Minor como que envoltas numa névoa precária e desconhecida. Uma sensação de frio, então. E a mão direita apertada, contraída, cerrada, um pequeno bloco de súbito levado junto ao queixo e depois aberto, desconstruído, com a palma e as suas linhas iguais a caminhos vicinais entre as árvores sob a luz estelar.

 

***

 

Mozart? Está bem, ouçamos então Mozart. Por exemplo. Ou outro qualquer, neste momento tanto faz. O dedo esquerdo (ou será o dedo da mão esquerda?) o dedo indicador esquerdo (minuciosos, sejamos minuciosos) passa lentamente sobre a pasta de pergamóide castanho, ausente, distraidamente. Um pequeno gesto nervoso (altivo?) para tentar fazer esquecer que lá fora, além da janela, ondulam camiões, carrinhos, camionetas de carga pela estrada (ou será rua?) onde outrora passaram personagens de finas roupagens, plumas irisadas, cavalos árabes e alazões… Sim, desculpa. Não, assim está bem, podes pôr duas pedras. O gelo esfria-me, se assim posso dizer! Claro, todas as piadas são de circunstância. São como… Mas deixemos isso. A janela, de portadas antigas, deixa passar tudo: por exemplo o ronronar das chaminés da fábrica. O sussurrar das conversas na pastelaria próxima. Se chegarmos bem a cabeça ao vidro, penetrando nos mistérios da matéria, os íntimos ruídos dos vermes na terra, formigas e micróbios vários, os neutrões e protões…Perdoa. Não, abstraíra-me. Como sabes, as coisas metem-se umas pelas outras. Mas dizias…A calma das pessoas perturba-me. É como um sinal do passado que não consigo decifrar. Qualquer coisa que se reproduz em cadernos, em gestos convencionais, em tiques de passe como o dessas sociedades secretas que…Não. O Vicente nunca mais me tocou no assunto. Ele aliás sabia que poderia acabar mal. E de parvo é que ele não tem nada. Sim, podes deitar. Desejaria que ele compreendesse que há coisas muito sérias. Um campo minado. Antigamente seria mais fácil. Ir-se-ia de espadagão nas unhas, envoltos em couro vermelho, com as regras do jogo todas no bestunto, na cabecinha, nisto que é circunvalações e navegações entre moléculas, pistons, blocos de ADN e proteínas, entraríamos nos dias e nas noites sem pedir licença a ninguém, marinheiros experimentados sobre a latitude e a longitude, os graus dos trópicos que…Sim, é verdade. Sem nostalgia, claro. Umas belas perninhas, com vossa permissão! Mas não consegue comunicar-nos nada de permanente. É como…O filho está agora algures em Inglaterra. Ficou lá depois da operação, coisa melindrosa. Tubos aqui e ali, parecia um marciano, felizmente correu tudo pelo melhor. Uma criança encantadora. Não, nada me fere, estou aqui a falar e a olhar, alguma vez teria de ser. Londres, Montpellier, Samarcanda. Percorro-vos, a vós onde nunca mais estarei, neste portal distingo a presença sonhada de um pé aventureiro. Não esquecerei aqueles rostos de homens e mulheres votados à mais intensa…Não, perfeitamente. Perfeitamente, percebi a ligação. A alusão. Umas batatinhas fritas, prefiro-as a outros salgadinhos, podes trazer. Por amor de Deus, quando ela voltar com a água, não a incomodes sem necessidade! O livro aberto sobre o sofá vermelho, um mapa a cores finamente desenhado como um brocado de Auxerre. A pança. Inteligente, moderno, sensível. Mais um passo e estaria lá. Na sabedoria. Assim é apenas um alto funcionário com leituras. Até Auriger, até Basile Valentin. Mas por fora, como convém aos profanos. Com gestos infalíveis, na sua ignorância leal. É com facilidade que transpõe a distância entre a verdade e a fantasia, um virtuose da santa liberdade de encarquilhar, misturar, confundir, esbater a diferença entre alhos e bugalhos. E cá estamos nós, vendo a toalha de mesa (de seda? ou de linho? ou de renda? nisto, tudo se perpetua, se entrelaça, bolas!) no seu peso, grandeza, espessura, na sua utilidade e inutilidade diárias trocando frases e temas, trocando pernas e braços e fica qualquer coisa então no ar como uma letra gravada, esticada, dizendo tudo em…A polícia? Mas, meu caro, os políticos necessitam que a polícia seja como é…Repara tu na América, nas sobras do Leste, por exemplo: são os bonzos da arte de imaginar peras e maçãs na alma dos outros, faço-me entender? Ficamos sempre envoltos pela névoa desses que olham a direito, com dureza e penetram até ao fundo, até ao medo e à amargura, até aos mais ignotos recessos do ventre e é impossível ausentarmo-nos de uma esquisita sensação de desgraça, crime, solidão, desvanecimento entre as coisas e os lugares, como um fumo que…Não, ouvia-te perfeitamente, aqui tens a minha opinião sincera: todos uns merdas. Exacto, uma trampa de gente que só serve para chatear. É talvez um lugar comum, mas digo-te que sempre me angustiaram. Lembras-te daquela vez à saída da Escola? Hein?... O que importa é recomeçar, temos de saber a distância entre uma e outra coisa e nisto de alta política…já se sabe. Beethoven? Talvez a Sétima. Ou os Cantos do Canteloube pela von Stadt. Ou mete um pouco de flamenco…Na azinhaga haviam derrubado um muro perto do eucaliptal. A música envolvia tudo, o sol no chão e ao correr das casas brilhando entre os bosquezitos. Aonde as tardes envoltas em cheiros próximos de vinha virgem, o espanhol dos bolos, a pastelaria ao fim do bairro, já quase no campo, olhando esta pedra, aquele lugar, aquele pomar ao longe?...Porque sim, meu caro, não te canses a perguntar demasiado. Era o que faltava! Tudo o mais é história com agá pequeno, tudo o resto…é uma treta. O que conta é a tua responsabilidade, entendo-te bem. Também eu me lembro, também eu me recordo. Tens toda a razão. E aquela vez em que te safei de morreres afogado lá no pego, no açude…Portanto… Lembras-te do Roque? É agora agente mineiro no Brasil. E o Figueira, com aqueles papilons e os fatinhos assertoados…Ná, não me constou. E até duvido. Por ele ser blasé, talvez. Já sabes que o diz-que-diz…Panasca mesmo é o Coutinho, aquele que chegou a director de Seguros… Ai não sabias? Bom, que o pó assente, meu velho…E que será do Viana? Que será dele? Assim está bem, Ângela. Upa! Basta…Um rio interior: limonadas, laranjadas, refrescos de grenadine, cervejas e copos rasos de tinto, uísques e brandies, leite e os chás diversos do Oriente. E café. O conteúdo passageiro, familiar, do interior do Homem, este preclaro homem erecto, sabedor, confuso e esclarecido que percorre as avenidas sob a chuva e o sol, que salta com o cachecol em volta do pescoço sobre uma poça e diz que a morte é eterna…Está claro, pá, a seriedade acima de tudo, afinal és agora um alto responsável, um dos que vêem as coisas à superfície e em profundidade… Diz lá então qual é a tua ideia sobre o assunto, o caso misterioso que me queres apresentar…

 

***

 

Acendeu um cigarro. No meio daquela serenidade o cigarro piscou, às primeiras chupadelas, como um sinalizador de avião que, passando na noite, cria em quem o observa uma nostalgia apaziguadora. Bom, acenderia então um cigarro. Luz e treva, como em África: em volta ruídos de pássaros desconhecidos, tric-trac de passos de animais em torno das suas moradas, o respirar multiplicado dos companheiros. Tocara o rosto de um, no escuro. Compacto, como uma pedra suada. A cartucheira pequena, sob o corpo, fazia-lhe pressão sobre o ventre, à esquerda, na fronteira dos pelos púbicos, lá onde o médico, mais tarde, anos depois, com tudo já acabado, esquecido, desfigurado, fixaria o lugar de uma incisão para que a pequena pedra de potássio cessasse de lhe atormentar os dias e as noites, soltando então a urina como uma rajada. Ouviu o gemer do Roque, medo que o convulsionava e lhe encharcava o espírito, sentia como que um vazio branco deteriorando os minutos. O cheiro do sangue, a perna esfacelada. Bem, sentar-se-ia na rocha musgosa ao pé do sobreiro isolado, o sobreiro onde se presumia que o velhote se acocorara olhando, o pasmo contraindo-lhe a cara, a mesma rocha onde se sentava em certas tardes tasquinhando o pão e o queijo olhando as cabras e as ovelhas que a alguma distancia, umas passadas, tratavam de pesquisar entre as demais ervas o quitute apetecido. Para os lados da cidade – e distinguia o seu clarão, uma que outra luz sozinha das residências da Serra – o acúmulo de estrelas era, seria, maior. Um que outro chape-chape nas águas da charca, cobra ou peixe navegante, ou mergulhão, rã retardatária na anónima claridade fortuita e no escuro que a abafava. A pedra grande, a clareira entre as árvores, a pequena encosta, ficavam mais acima, para lá dos carvalhos.

 

***

 

Poderia dizer-te que não acredito nem numa palavra dessa cegada toda, mas enfim…A verdade é que tu não costumas brincar, não tens imaginação ou senso de humor que chegue…Não, não é uma indirecta mas uma constatação…Pois, pior a emenda que o soneto…Mas tens de concordar que uma história dessas…Isso de os tipos estarem todos azuis…é forte. Não seria qualquer forma de cianose? E que tinta poderia tê-los deixado assim, não me dirás? Os homens azuis! Um dos velhos mitos do Homem. Com os cabelos brancos, branquíssimos, os olhos coruscando na madrugada, na noite misteriosa. A raça chegada das…Perfeitamente, ouço-te com a maior atenção! Não, deixa estar, não deites mais, já tenho a minha conta. Talvez daqui a bocado, vai tu bebendo que bem pareces precisar. Hum, hum, o que mais me intriga é esse…esse detalhe de terem um sinal, marca, entalhe em forma de hexágono na palma da mão direita…Queimadura? Sem bordos nem excrescências, um sinal perfeito. E na parte de trás, as costas da mão tendo como que a sombra de uma ave fantástica…Francamente, não sei que pensar. Pois, é para que saibas que os investigadores do oculto, os romancistas do obscuro como eu também se agacham…O pássaro-lira, a ave-fénix, o passaroco gigantesco do Sindbad, o papagaio que há tantos anos me saudava todas as manhãs quando ia para a Escola e a garotada se entretinha a provocar a suscitar para ouvir os assobios doidos os guinchos os ressaltos da pobre voz quase mecânica comovedora de simples ser de companheiro animal de infância vital e única o canário que me morreu e que cegara semanas antes e que só pelo instinto achava o alimento o poleiro o recipiente com água e que tinha pelo menos sete oito maneiras de saudar o mundo as pessoas e as coisas os pedacinhos de maçã e de ovo gema e clara de bichito digno e sereno cumprindo sua tarefa sua passagem pela terra…Então um deles era bancário e os outros dois comerciantes, um deles retirado, trinta e dois, trinta e sete e quarenta e nove anos a secas. Claro, foi o melhor que podiam ter feito, falar muito nisso seria impróprio e desajustado. Ora bem: disseste que horas antes um morador da Quinta próxima ouvira como que uma musicata, uma espécie de silvo agradável e como que ruídos de gente a rir, ao jeito de uma festarola…Copos e talheres e pratos barulhando, o plop de garrafas desrolhando-se entre joviais companheiros, como nos ficava então bem o aroma do alfa e do ómega traduzido em odores de plantas, de chouriço assado, de frango tostado, atum de cebolada, bacalhau desfiado como nas tascas tasquinhas da Serra e tu pagavas desvanecido tinhas pecúlio só teu de madrinhas e primas ricas, um regalo como em Sevilha, Barcelona, Paris, parece que ainda te vejo com um cigarro na mão todo contente, no quarto alugado a meias havia claramente vestígios de antigas vidas, antigos vagares de boémia de quem existe sobretudo para continuar vivo, já se sabe tudo muda tudo é, como alguns dizem, como fotografias desbotadas, como coisas a desfazerem-se e eis-te agora jurista, responsável autárquico, tipo da alta e elemento vibrante de uma situação e eis-me escrevinhador arrolador de imaginações, o tal espertalhaço a quem se pode consultar num caso bicudo principalmente se fomos companheiros de nostalgias…Está bem. Claro, a incompetência o desleixo das forças oficiais é uma naturalidade, não precisas de pôr mais no envelope…Bom. Só te peço que a partir deste momento não dês uma palavra a quem quer que seja! Deixa-os pousar…Eu sou apenas como uma aragem da Primavera, ora estou ora não estou. Se me permites o lirismo. Investigarei a fundo, como naquele caso de Vigo em que andavam lá de cambulhada bruxas e astrólogos e o tal tipo degolado com uma carta de Tarot entre os dentes…Fica tudo entre nós. Entendido? Guarda para ti o muito ou o pouco que sabes, pela minha parte sou só um tipo com leituras, um curioso…se assim se pode dizer. Nem à Ângela digas nada, faz de conta que cá estive para recordarmos velhos tempos. A sala envolve-se em silêncio: a mesa grande, a mesa pequena, ao lado o balcão coberto de pedra mármore, a bancada de tampo de fórmica e as retortas, os cadinhos, as pipetas e lá fora o belo sol de Outono e as pessoas passando já agasalhadas, já interpondo casacões de lã e camisas de flanela entre o frio secular e o cíclico, familiar, habitual arrepio e a pele mais escura ou mais clara, mais ou menos peluda ou suave ao tacto, gente, gente, meus desconhecidos companheiros de vida, gente que existiu, vai existindo, existirá ao mesmo tempo que eu, gente que me é alheia que não sabe que não pode saber o que é o segredo e o mistério gente que morre às esquinas do que se escreve ou pensa que se esconde em quartos sombrios e em becos de filmes americanos que jornadeia por sítios distantes e se comove com factos que sedimentam factos larvares de ultrapassada e vaga sabedoria…Podes, claro que podes, ficar tranquilo. Virei cá depois. Ou dentro de dias ou pode levar até mais dum mês. Veremos. Ó Ângela, já agora…Não, nem mais nada, obrigado! Foi bom, este bocadinho. Sim, qualquer dia repetirei a visita…Kiss kiss, minha velha, velha é como quem diz! Um abraço, pá. E vê isso dos bons jantares! Estás a ficar com um pedacinho de barriguita. Como Beethoven ou João Sebastião Bach, se calhar!

 

***

 

Apagou o cigarro com o pé. Estava frio. Chegou mais a si o casaco, sobre o pulover verde, com torcidos, que a operosidade sabedora da mulher nos tempos livres roubados à rotina quotidiana fizera para seu conforto enquanto ele estava longe, na aba da Serra, operando no seu serviço tão simples e tão complicado. Como uma renda, mas mais grossa. Como um mapa infinitamente certo, legítimo, intemporal.

 

Havia um clarão mais forte, agora, sobre a grande pedra chata para o lado dos cortiços de abelhas. Respirou fundo. Pôs-se de pé. Estava tudo certo, não era verdade? Pigarreou, lembrou-se de várias coisas díspares, como que distraidamente. Pigarrearia de novo, olharia para o fundo, para o horizonte, lá onde as estrelas eram mais brilhantes. Esperaria, então. Sentiria a música ou apenas uma espécie de zumbido nos ossos? Ou nada? Olharia uma última vez a escuridão da noite, com tudo o que lhe está associado, memórias velhas de caminhos e antiquíssimas lendas. Respiraria fundo, como se nada tivesse já peso ou substância, abandonados os medos, os remorsos e a tristeza, a alegria de ser apenas uma figura sob o céu. Começaria então a andar, um passo, outro passo, como se fosse manhã clara de Verão.

 

Casa do Atalaião, Dezembro de 1994

 

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