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ARTE
E EROTISMO
(Nicolau
Saião)
No
descontínuo da existência humana o erotismo assegura a
continuidade do som envolvente. “Este
corpo fala”, dizia Lacan. Suspenso entre dois silêncios, o da vida e o
da morte, o erotismo é mais que mero sinal na campina onde os
fantasmas primordiais do espírito vagueiam sem destino.
Se
ao princípio foi o Verbo, logo a seguir o Homem teve de
confrontar-se com um surpreso e confuso balbuciar. “Coisas
de deuses”, dir-me-eis familiarmente. “Coisas
universais”, onde se reproduzem realidades misteriosas,
responder-vos-ei. Afirmando a desordem
sonora (que é uma bem ordenada configuração) contra o tímido
império de uma perturbada realidade muda, o erotismo participa na
instauração duma realidade outra, transfigura as experiências e o
próprio sentido da Natureza circundante. Não é arbitrariamente,
pois, que Marianne Roland-Michel nos diz que a
humanidade só existe graças à infinidade milenar dos
acasalamentos, aos sucessivos nascimentos, num encantamento e
encadeamento inumeráveis como a areia dos desertos. Homens e
mulheres enlaçam-se na noite dos tempos e procriam, por muito que
se recue no passado. Daí nós aqui estarmos hoje, gerados e
geradores.
A
arte é, antes de tudo, linguagem dos sentidos em movimento. À arte
não se chega pela Razão: a poesia, como dizia Lautréamont, “é
um rio majestoso e fértil”; a pintura erótica, por seu turno
– na minha concepção metafórica – é uma região silvestre
onde vagueiam Dionísio e as ninfas, acompanhados por todas as
estrelas e cometas que constituem o seu séquito. E, como se sabe,
os deuses pagãos enquanto símbolos existem no nosso tempo, se os
soubermos ver, que o mesmo é dizer: se soubermos reconhecer-nos no
sagrado que é a vida.
Em
1908 declarou Alfred Loos que “toda
a arte é erótica”. Esta frase tem de entender-se no contexto
em que foi pronunciada. É uma verdade que a arte pertence ao mundo
de Eros, ao mundo que se opõe a Thanatos, que mais que o território
da morte é o lugar da não-existência, das frias pulsões
destrutivas. No entanto, a arte erótica tem características que a
definem: ela epigrafa o corpo
amoroso e a pessoa sexuada, apresenta-a simultaneamente como objecto
e sujeito de desejo, coloca os dados da questão na capacidade
humana de fruir o espaço da sexualidade e de transfigurar essa
experiência em poesia e libertação da nossa triste condição de
seres mortais.
Já
o mesmo não se dá com a pornografia: esta, pelo contrário,
recenseando falsas premissas (é um mundo de frieza e de supressão
da lógica dos relacionamentos e mesmo da sua exemplaridade) é uma
espécie de caricatura existencial – terreno onde apenas se jogam
esquemas pré-determinados, naturalmente controlados por razões
simplesmente argentárias e de comércio deliberado.
A
arte erótica tende pois a sublinhar uma evidência
fundamental rodeada de sombras suspeitas, a trazê-la ao
quotidiano salubre. Na infinita madrugada dos corpos que se amam, as
classificações só contam se evocam e provocam um rito mais
perfeito e gerador de novas e exaltantes comunhões interiores: a
experiência banal eleva-se até ao ponto supremo, ao vértice da
comunicação. Tal como, na religião, a cerimónia de ordenação
sacerdotal comporta uma unção, uma transfiguração – mesmo que
ilusória, porquanto é dirigida a uma entidade fora do mundo, um
deus – no acto erótico passa-se a outro plano, aquele que une
dois corpos, duas mentes, duas experiências, dois percursos. Amar não
é dois tornarem-se um, mas um tornar-se dois – é, por extensão,
o ser humano tornar-se universo. O
amor é uma infinita repetição. Para o enamorado a sua amada
é todas as mulheres - e vice versa. O Homem, definitivamente
re-ligado, existe então em plenitude. Daí que o acto amoroso seja uma
simulação da morte (ultrapassando-a soberanamente) e não uma pequena
morte como queriam os aristocratas libertinos e derivados
menores ou uma grande morte como propunham os sádicos, míopes sexuais que
necessitam de óculos/faca, ou os autoritários no plano social,
membros em geral de crenças reveladas com o seu ódio ao amor
humano, que esplendidamente se ergue contra o egoísmo teocentrista.
A
voz sibilina que até nós chega do fundo das eras traz com ela a
certeza de que a realeza
absoluta pode ser compartilhada por todos os homens e mulheres
que se livraram da pequena escala hipócrita e redutora que os próceres
societários armadilharam tendo-os como alvo (expressa, por exemplo,
através do negócio da moda e da cosmética, do aperfeiçoamento
corporal como um absoluto, da pacóvia alegria de blocos para
solteiros, jornadas para a terceira idade, etc.). Assim se explica
que as religiões reveladas, que subjazem a deuses autoritários,
persigam aberta ou dissimuladamente o erotismo, o corpo e a sua
dimensão amorosa enquanto discretamente incentivam pela sua acção
castradora e estupefaciente a pornografia e os recalcamentos societários.
É esta a explicação, também, para a atitude do mundo argentário,
que descaradamente explora as forças eróticas – que primeiro
sufoca – nos bordéis e nas lojas de sexo. Ou a do mundo da política
totalitária, que procura incluir a feição sexual, controlando-a,
numa razão de Estado ou de partido.
Uma
face, na arte, não é apenas uma
face: milhares de momentos de outras faces nela se representam e
consubstanciam. O nu da imagem corresponde à nudez assumida do
homem e da mulher em comunhão, pois o erotismo é o sinal da sacralização do mundo
concretizado em seres que se amam e possuem. Viaja-se através de um
corpo como se viaja em busca dum planeta a milhares de anos-luz. A
arte erótica, seja pelo traço e a cor de Cézanne, Watteau,
Bazille, Clóvis Trouille, etc., ajuda-nos a encalhar a nossa barca
nas margens onde cresce o mirto e a rosa, onde os fulgores do dia se
transmutam incessantemente na penumbra de que os amantes necessitam
para os mistérios do seu coração.
Suspensa
entre o brilho duma imagem ausente e a saudade daquilo que a imaginação
nos concede, a arte erótica fala com vital soberania: e é desta
maneira que se assume como signo da humanidade liberta, eternamente
colocada além das aparências passageiras e compreensivelmente
sujeitas ao desaparecimento final.
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