ODE AO CENTRÃO
Centrão, ó grande Vaca, antes: veleiro,
barco a vogar por sobre a situação —
tendo uma assombração por timoneiro
e um vampiro a servir de capitão!
Teu propósito, certo e nada obscuro,
com um pouco de esforço se vê bem:
pois não há ao teu redor barreira ou muro
ocultando o sentido que ele tem.
Que engoliste governos e dobraste,
sob o teu punho às vezes suave e amigo,
muito espinhaço e até mais rígida haste
(que te abraçou sem medo do perigo),
sabemos muito bem, e do secreto
orçamento, que agora faz girar,
como um lubrificante predileto,
o carrossel do mundo, a rodopiar.
Sob a sopa de letras que te bordam
(com teus pês progressistas e teus esses,
teus eles liberais, que tanto engordam
somando-se a esses dês que mal padeces);
com tuas cantilenas, tuas liras,
teus pachecos, teus maias, teus pastores,
e as tábatas-batatas de que tiras
uns emolientes e gentis sabores;
com teus cabos, majores, teus sargentos
prontos sempre a pregar aos centuriões,
em favor da família e dos rebentos,
os costumes que orientam gerações;
com os bovarys-bivares a que entregas
as chaves do teu reino e o nosso juízo
(como num jogo em que há só cabras cegas,
ou uma amarelinha sem paraíso);
e uma ânsia eterna de privatizar
tudo o que seja público: minérios,
água, eletricidade, escolas, o ar,
o petróleo e as estradas sem mistérios
que vão aonde Deus manda, pois é vasto
o fértil território nacional;
mais o desejo de aprovar um gasto,
“furando” o teto que nos cobre mal;
e o pragmatismo, e o imemorial respeito
à bolsa de valores e ao mercado
e à banda financeira — que é, suspeito,
o único credo que hoje tens rezado
e o único som que muita gente escuta,
com os ouvidos fechados, ulissianos,
a tudo o mais que nos convoque à luta
sobre a terra, nos céus ou nos oceanos —;
e a bancada da Bíblia, e a outra bancada
da bala, e mais aquela que não sei
(de boi talvez, do bode, da bordoada,
do índio morto lá longe, além da lei?);
e o agronegócio a impor seu evangelho
do latifúndio e do desmatamento,
que bem processas no teu aparelho,
capaz de muito impulso movimento;
e a floresta já a meio calcinada,
e a saúde dada às moscas, e atualmente
a ciência pobrezinha, depenada,
à mercê das marés e da corrente;
com o teu “cunhismo”, agora já sem cunha
ou mudado em “lirismo” (ou coisa pior),
e os lobbies a que emprestas carne e unha,
sempre em nome do novo e do melhor
(deixando o povo, que te entrega os remos,
a roer um osso ou pata de galinha
cozida a lenha, como agora vemos,
pois já lhe falta o gás lá na cozinha),
vais levando a jangada nacional —
outrora bandeirante e escravagista,
e agora — por quem és! — neoliberal
(mas foi já beletrista e modernista) —
a esse longínquo e ainda ignorado porto
a que chamamos de democracia
(e ao qual não chegará quem já está morto,
tombado no roldão da pandemia).
*
Ai, papéis! Voto — ações — impresso ou não!
Ai, esse papel moeda que te acende
e a cada vez te dá novo empurrão,
do qual, no entanto, o mundo inteiro pende!
Que te falta? Ah, te falta, em belo dia,
dares ao país um parlamentarismo,
que o parvo ignora e o utópico elogia
e o esperto prega feito um catecismo
para as tias do Zap, que aceitam tudo,
e até o Gilmar há tempos foi levar,
no afã do “Fora Dilma” (alegre entrudo),
ao teu conspícuo exame, consular. —
Vem, Castro Alves, vem ver por onde andamos!
Vem tu, Machado! E Oswald! Vem, velho Ary!
Vinde ver a aquarela que pintamos
com tintas de to be but not tupi!
Vem, Lima! Vinde, Euclides e Lobato,
Candido, Darcy, Buarque, e quantos mais
tentaram compreender teu jogo exato,
em suas teses fundas, sempre atuais.
Cazuza, a cara que te vão mostrar
é aquela do Centrão — velhinha bossa?
Ai, Gonzaga, o sertão vai virar mar
ou secará a floresta, que ainda é nossa?
Anitta, abre de novo a tua porta!
Tatua no teu glúteo: “Eu sou Centrão!”
Chama de novo para o que só importa
a pública e urgentíssima atenção!
3-6-2022
ACRÓSTICO
Viciado em autoengano e fantasias,
A dar, todas as quintas, um piti,
Gosta mesmo é da praia e do jetski,
Aos quais aplica as suas energias.
Líder do povo não, mas de torcida,
Do qual lobistas fazem o seu santo,
A produzir, sob a fumaça e o espanto,
Ruído e lorota a cada arremetida,
E especialista só em pôr no WhatsApp,
Para o terror ou o gozo dos velhinhos,
Um cordão de fake news e
burburinhos,
Brandindo-o contra o sol, feito um tacape,
Lá vai, com o cartão já estourado,
Inaugurar um poste numa esquina,
Caso quadre; e depois andar, cansado,
A outras férias — o rei da cloroquina!
7-6-2022
SETE DE SETEMBRO
(inspirado
num texto de Cristina Serra)
I
Ao
Sete de Setembro foram todos,
marchando na avenida, de soldados,
os párias, os escroques, os sem modos,
os cornudos, os parvos, os toldados.
A cabeça entupida com os engodos
que — fartos — nela foram despejados,
e uma avidez e a decisão dos doidos,
feito robôs ao longe controlados,
foram os pulhas e os sabotadores
de parcimônia e lei, e os violadores,
da antiga ideia de democracia:
e os atrevidos, os sem temperança,
e os destruidores de toda esperança,
com seu rancor exposto à luz do dia.
II
Foram
os mercadores da desgraça
e os agros traficantes de vacinas,
os argentários, com sua pirraça,
seus vermífugos, suas cloroquinas;
e os parceiros das artes assassinas
a trombetear promessas e fumaça,
e os biltres dos covis e das esquinas,
com seu parco valor, sua honra escassa.
Foram, com uma fúria de gigantes,
os vassalos do dólar, e os venais,
e os feitores do escombro, os fabricantes
do caos, e os corvos da constituição,
sempre a rasgar a lei dos nossos pais
e a espezinhar os sonhos da nação.
III
Foram os entusiastas da tortura,
com suas camisetas e uniformes,
e os fariseus, e os mágicos da usura,
prometendo milagres desconformes;
e os partidários do Ustra, proteiformes,
que a piedade não rege nem segura,
e esses rambos senis, de ombros enormes,
e a polícia do crime e da amargura;
e os chantagistas de almas desoladas,
para os quais cada fé vale um vintém,
pregando o inferno à beira das estradas;
e os detratores da arte e do saber,
e os piratas do mundo, aos quais convêm
boquinhas, rachadinhas, e o que vier.
7-9-2021
DONS
Dá-vos
grana, dá petróleo,
dá terras, dá ideologia,
dá mares, dá litorais,
dá floresta, dá folia.
Deu-vos ontem, dá-vos hoje.
Dá-vos, com veia furiosa,
de improviso, de vencida,
cinco minutos de prosa,
cinco gramas de ansiedade,
cinco dedos, cinco brados,
cinco sustos, cinco dardos,
cinco planos mal tramados.
Dá-vos água, dá-vos pedra,
dá-vos ouro, dá-vos nióbio,
dá-vos armas, dá-vos a ira,
dá-vos a fé do micróbio.
(Só não dá trela a estrangeiro,
que é coisa de dar a amigos:
mas a vós — se algo vos dá —
dá-vos ameaças, perigos.)
Deu-vos, dá-vos, dar-vos-á.
Dá-vos o que há para dar:
corda para muita forca,
barco para naufragar.
25-1-2019
GOLPISTA
Dom
Judas, para ser enérgico,
para mostrar que é homem sério,
um dia declarou, colérico,
diante de todo o ministério
(porque também tinha aprendido
na vida a lidar com bandido),
que não toleraria aquilo:
que não suportaria ouvi-lo.
Disse que trataria à altura
toda e qualquer provocação
de gente que, com má tenção,
denegrisse a sua figura
(de homem compenetrado, sério,
que comandava um ministério),
chamando-o de golpista, insulto
que não lhe merecia indulto.
Falou assim, com seu ar sério
e sua verve mais enérgica;
e então instruiu o ministério
a que desse resposta alérgica
(franzindo o cenho decidido
de quem sabe tratar bandido)
e a não deixar passar em branco
qualquer provocação ou tranco.
“Dizei” — disse, quase apoplético —
“a quem vos chame de golpistas
que golpista é quem, por patético,
o pôs no mundo; e vigaristas
(pois, com vileza e má tenção,
desprezam a constituição)
são os que aplicam apelidos:
golpistas rudes, desabridos.”
Assim falou naquele dia,
ensaiando o seu ar mais sério,
alçado afinal à chefia
de um reluzente ministério
(e diante da televisão
que lá fora por convicção);
e o seu aspecto era colérico,
e o seu gesto era de homem ético.
E até não economizou
nenhuma letra, e caprichava
na sintaxe, que embonecou
e que a mesóclise coroava
(cereja desse colorido
bolo — dir-se-á — sem partido),
a exibir o seu ar mais sério
diante de todo o ministério.
E desde então, a cada vez
que alguém o chama de golpista,
retruca, com intrepidez,
bem na cara do vigarista
(dizendo-o ignorante, anormal,
farsante, inconstitucional)
e desfia, conforme ouvi,
esta léria que escrevo aqui:
“Que golpistas são vosso pai,
vosso avô, vosso tio e irmão;
que maior golpista é a que vai
convosco ao altar ou, senão
(replica, decidido e enérgico,
chegando quase ao apoplético) —
o que me parece mais sério
e não contém nenhum mistério:
neste mundo que descaminha,
vossa avó ou vossa mãezinha!”
2-9-2016
DECORATIVO (II)
Já
foi bem mais decorativo,
até o ponto de usar correio
para mandar à presidenta
o seu protesto putativo
(serpente sem cabeça e meio),
dizendo exatamente aquilo
que o tal protesto contestava:
que era mais que decorativo
(e a atitude, apenas, bastava,
entre tantas, a desmenti-lo).
Nem precisou aplicar nisso
toda a força do seu anseio:
que o protesto, levado ao vento,
como um termo de compromisso,
deixou à mostra o seu recheio.
Porém quis mais: gravou mensagem,
como para acrescer o efeito,
que o noticiário, submisso,
vazou num átimo, perfeito.
(Vá saber por que malandragem!)
Por certo ao fim desse arranheiro
só não explicou a que veio,
até porque, já de esquisito,
acabou ficando mais feio
(se é que o efeito era verdadeiro).
E agora mostra a quem aceite
a tarefa de compreendê-lo
que de isento só tinha o cheiro —
pois era bem mais um martelo
ou um revólver
esse enfeite.
12-4-2016
DECORATIVO (I)
Mandou
cartinha à presidenta
em que se queixa, lamurioso,
dizendo que já não aguenta
esse papel vexaminoso
de andar assim pelo Planalto,
numa vacância sem sentido,
como um desenho ou um motivo
que a gente aplica num tecido
sem um critério definido:
ou um bibelô posto no alto,
decorativo.
A presidenta, mulher séria,
provavelmente compreendeu,
mas frente à inusitada léria
não disse o pensamento seu.
E convenhamos: esse assunto
com que o povo quer se entreter
de assombração, de morto-vivo,
para quem tem mais que fazer,
um sentido só pode ter
(na composição do conjunto)
decorativo.
A vida passa, felizmente,
sem dar preferência a ninguém.
Desenvolve-se e, consequente,
ao fim do teatro a razão vem:
quem governa é quem foi eleito.
E assim, no verão do Distrito,
vai desbotando esse adesivo:
já cinzento e bem esquisito,
com seu matiz confuso e aflito.
E vai perdendo o seu efeito
decorativo.
16-12-2015
O PÁSSARO
“Você
deve estar se perguntando: como uma ave tão
grande saiu de uma janelinha de primeira
instância?”
(Leitor do Conversa
Afiada)
Um pássaro tão grande e tão vistoso
não
cabe certamente em qualquer ninho:
quem
o vê tão bicudo e assim ruidoso
até
supõe que se incubou sozinho.
Mas
não: brotou de um certo buraquinho —
onde,
apesar do canto cavernoso,
teve
infância qualquer de passarinho,
antes
de ser o passarão plumoso.
Agora
garganteia. — De um só furo
sai
às vezes, num jato, o todo ovante
do
mundo, e sai às vezes o futuro.
(Havendo
empuxo, é certo: essa ave eclode,
vai
além dos limites do que pode,
vai
de pintinho a galo num instante.)
25-11-2015
VAZÃO
“Coisa
que, ao que parece, não interessa muito ao
promotor-vazador...”
(Fernando Brito)
Porque
lhes falta o senso de limite
Requerido
por sua profissão,
Ou lhes
falta o equilíbrio que a razão,
Mais que o
decoro, apenas nos permite;
Ou porque
falta o senso de justiça
(Tantas
vezes alheio ao tribunal)
Ou o
humilde pudor da movediça
Regra, que
assim se esmera em fazer mal;
Não lhes
sobra afinal, para o exercício
E para o
entender justo, a parcimônia
Indispensável
ao seu alto ofício —
Restando-lhes
o estoque de acrimônia
A que se
dá vazão desta maneira:
Só
comparável, mesmo, à da torneira.
24-10-2015
ATRASO
“Sinal do
despudor da imprensa, um colunista da Veja
escreveu que espera que Cunha derrube Dilma
antes de ser preso.”
(Paulo Nogueira)
Que a polícia não chegue tão depressa,
com o apito e as algemas; que haja ao menos
tempo para fazer o que interessa
e destilar uns últimos venenos.
Com um traquejo e liberdade plenos,
que o réu por vir (nossa final promessa)
ainda possa orquestrar, nesses terrenos,
o samba da insurgência, que atravessa.
Que a polícia se atrase um minutinho,
e um minutinho seja suficiente
para incendiar por dentro aquele ninho.
Queira o bom Deus que a lei, sempre emperrada,
sempre lenta e capenga, não invente
de vir correndo agora, em disparada!
3-10-2015
SONETO
TARJADO
“...
manejado entreguista...”
(Lido no Conversa
Afiada)
Puseram tarja preta em ████████,
que, depois da fatal Privataria,
nada tem a esconder. Mas quem diria?
É que o excesso de zelo às vezes erra.
Eis outro caso em que o silêncio berra
bem mais que a tribunícia gritaria.
E, lé com cré juntando, a vaca é fria:
não se vê Zé como esse ████████.
Dar ao gringo o pré-sal por ninharia?
Travar de novo a “manejada” guerra
da “Petrobrax” – que até o capeta adia?
Boa lição tudo isto, amigo, encerra:
que, enquanto a opinião dorme ou fantasia,
por trás da tarja (lê-se) ████████!
24-7-2017
URUBUS
“Não
tenho prova cabal contra ele — mas vou
condená-lo, porque a literatura jurídica me
permite.”
(Ministra Rosa Weber, do STF)
“O abutre sobrevoa o Pré-Sal”
(Lido no Facebook)
Porque a literatura me permite,
evoco aquele verso sem consorte
em que, desarvorado, o poeta admite
que um urubu pousou na sua sorte.
Depois que se atingiu certo limite
outra coisa não há que mais importe
que reparar que, quando se demite
o escrúpulo, a verdade vira esporte.
Outrora voavam alto, ameaçadores,
perscrutando os quintais e os arredores,
ou descansando, às vezes, nos telhados.
Hoje, porque ninguém lhes cortou a asa,
mais atrevidos — vê-se — e mais ousados,
entram e vêm pousar dentro da Casa.
3-7-2015
O
MERCADOR
“Porque
você não consegue convencer a população de que
ela vai perder o direito de votar no
presidente da República. Então, se a gente
construir uma figura em que ela continua
votando no presidente, você pode ter um
parlamentarismo.”
(Deputado Eduardo Cunha)
Convencer o eleitor a que não vote
é mais difícil do que convencê-lo
de que o meu novo implante de cabelo
me deixa mais bonito (outro calote).
Para vender aquela ideia nova,
transformarei em shopping
o Congresso,
onde a marcha fatal do retrocesso
se apregoará sem argumento ou prova.
(Tal como a Lava Jato em Curitiba.)
Montarei lá, sem que o pudor me iniba,
uma tenda de sólida armação
onde o fisiologismo, a homofobia,
a teocracia, a influência, a felonia
se ofertem sempre – a preço de ocasião.
1-7-2015
CRUZADA
I
Tomado de um espírito valente,
entre godo e cruzado, e decidido
a dar cabo do insólito partido
que tinha eleito mais de um presidente,
resolveu, como quem vê de repente
um brilho damasceno (produzido
por umas coisas que leu a corrido),
sair a campo — ardoroso pretendente —
e atravessar, com ânimo viril,
mil quilômetros (cheios) de Brasil,
de São Paulo a Brasília — bem cortados.
Palmilhou — diz a lenda — todo o trecho
em sola de sapato; e no desfecho
foi recebido pelos deputados.
II
Eram vinte somente — diz o vento —,
com muito mais valor que quantidade,
os que lá estavam para aquele evento,
que só a polícia achou ser de verdade.
Onde foram parar os convocados
da imprensa e dos jornais, que, por ofício,
deram mais atenção a esse estrupício
do que aos cem mil da greve, desprezados?
Se a resposta foi pífia
(aproveitando
o termo do Barbosa) e se faltaram
holofote e barulho à brincadeira,
ao menos esta coisa desovaram:
uma selfie
(crescida a cabeleira),
com o Marco e o Bolsa (Júnior) se apertando.
III
“Dia agitado” — disse alguém, na imprensa
(por bem pouquinha coisa, se acrescente) —
aquele em que, da expectativa imensa
(se a houve), se tropeçou eventualmente
na decepção, que confundiu a gente,
formada, assim como uma chuva intensa
que findou no Planalto brandamente,
por outonal garoinha, no ar suspensa.
Dizem, no entanto, que por carregar
essa aguinha minguada até Brasília
não bastou só sapato e muito andar:
por exemplo, na Força fez-se alguma
força, e se deram rodas a essa bruma,
um ônibus servindo de vasilha.
IV
O
ápice da aventura — aqui se insiste —,
cujo
lema era o Fim da Corrupção,
foi
posar numa foto, o dedo em riste,
com
o Cunha e os outros, em conversação.
Quem
do destino escapa? Quem resiste?
Pois
foi o caso; e agora vem a ação
da
Procuradoria, cujo alpiste
lá
foi jogado e aguarda a conclusão.
Mas
nós, que de profetas temos nada,
só
nos resta esperar que essa cruzada
mereça
um dia melhor patrocínio
e
que, em vez de gastar com mau defunto
a
vela do bom senso, encontre assunto
em
coisas de mais juízo e tirocínio.
12-6-2015/2-1-2016
O
PITBULL DO GOVERNADOR
Ninguém
pense que vai passar
para o outro lado da barreira,
onde estão a confabular
os deputados de carreira
e os que trocam fava e favor.
Quem se atreva verá o canino
do pitbull do governador.
Ninguém passa para o outro lado
onde todos serão intrusos
e onde o futuro está lacrado
como num quarto de desusos;
que da barreira é guardador,
com raivas e ímpetos incríveis,
o pitbull do governador.
Vêm clamar por democracia?
Vêm pedir que a justiça exista,
que haja sol sobre o escuro dia? –
Seja o padre, o médico, o artista,
seja o aluno ou o professor,
ninguém passa sem esbarrar
no pitbull do governador.
Ninguém chega àquele outro lado
onde a bomba não faz barulho
e onde o polícia está pintado
de um cor-de-rosa sem orgulho:
ninguém alcança esse interior
sem passar pela vigilância
do pitbull do governador.
1-5-2015
Mais aqui
PENICAÇO
Em plena noite morna apareceu
(quando a outra, que a direita não atrela,
didática e assertiva, esclareceu
que a culpa no final nem era dela),
de cuecas, através de uma janela,
como um confuso atleta que perdeu
a razão, e a bater numa panela
foi dizer a que veio (a imprensa deu).
Engano ou sonho – aquele pandemônio,
que o fez surgir assim, na noite breve,
para pagar esse esquisito 'mico'?
Não sei. Porém é fato que lá esteve,
instigado por íncubo ou demônio,
a confundir panela com penico.
10-3-2105
PROCISSÃO
Dia – amanhã – de pôr a camiseta
daquela imaculada instituição
de que Havelange foi patrono e irmão,
tendo o Teixeira à frente da retreta.
De pendurar no peito uma tarjeta
com uma prece para São Galvão
e outra para o anjo cuja inspiração
fez de Furnas a casa do capeta.
De rezar a São Medici e a São Judas
e a São Lacerda, que o bom Deus não tem,
com as bênçãos do Agripino (e outras ajudas).
E de brandir um exemplar da Veja
de que o Moro foi capa (ou quem mais seja) –
penitente e contrito ele também!
11-4-2015
NO
BONDE
"Esse bonde não
para."
(Jornalista
embarcado)
"Hipócrita:
indivíduo que, ao professar virtudes que não
respeita, assegura as vantagens de parecer ser
aquilo que despreza."
(Ambrose Bierce, Dicionário
do Diabo)
Fingindo
embora calma e relutância
e uma espécie
feroz de compromisso
(de quem não
se descura do serviço),
lançou seu
grito contra a militância.
"Lula, Dirceu,
e o resto da patota,
e a
secretária, e o diabo, e o escambau –
tudo parte
(bradou) de um só mingau
que vai no
mesmo bonde" – era a lorota.
Já com o
fígado menos opilado
(até porque
seu mau humor esconde
algo como um
pecado original),
seguiu em
frente; e agora, ali sentado,
contempla um
latifúndio de moral:
de antemão
embarcado nesse bonde.
14-3-2015
O BANHO
Se o eleitor
não me quer, se me rejeita,
não me resta
senão correr à imprensa
para expressar
a minha mágoa imensa
em escritos
que a bile não enfeita.
Neles, fazendo
pose de quem pensa
e com razões
somente o mundo ajeita,
a plebe vou
nutrindo insatisfeita
de uma ração
que a torna mais intensa.
E aguardo, ao
fim da festa, o resultado
que não me
tornará mais popular,
mas que há de
me deixar mais aliviado –
como quem sai
de um banho insuficiente,
com sua
alminha suja e impenitente
do veneno que
vem de destilar.
11-2-2015
A
EXPLICAÇÃO
Voluntarismo
é assunto de família
Ou
de pele, conforme se interprete
Valor
e preço. E a história se repete
Onde
o valor não se herda com a mobília.
Lavra
um incêndio, que afinal consome
Um
paiol de surpresas, empilhado
Num
fundo de quintal lá do passado,
Tocando
a franja do meu sobrenome.
Agora
vêm pedir-me, tardiamente,
Resposta
e explicação para o que é um ovo
Incubado
onde nunca o viu o povo? –
Sei
apenas que, do árido ao grotesco,
Mérito
é ter, conforme o sabe a gente,
O
talento que vem do parentesco.
19-10-2014
Mais aqui
PREGÃO
“92% de aprovação.”
(Lorota mineira)
Aprovado até mesmo pelas moscas,
pelos pombos e pelos cachorrinhos,
vou,
com palavras vagas e algo toscas,
apregoar meu valor pelos caminhos.
Quem
me conhece não me compra, é certo;
mas
não perco a esperança de vender-me
lá
onde o esquecimento é um campo aberto
e
o mérito uma coisa da epiderme.
A
quem queira arriscar-se dou o preço,
levando em conta os custos do adereço
com
os da pantomima em acrescento:
que
acarreto no fim a quem me pague,
somado à encantação que me propague,
um
ágio de noventa e dois por cento!
18-10-2014
A TORNEIRA
Madame, essa torneira vaza tanto,
com
uma velocidade de gargalo,
que
– juro – não será nenhum espanto
se
for do tipo que, lá em São Paulo,
vazou do Cantareira para o vento
a
água que em sua casa vai faltando –
coisa que me dá trato ao pensamento.
Mas
enfim estou só conjeturando.
Mais
importante – veja – é constatar
que,
embora infrene, essa torneira tem
um
modo complicado de vazar,
que,
quando importa, jorra desbragada,
num
ímpeto fluvial; mas, se convém,
emperra e trava, e às vezes vaza nada.
3-10-2014
Mais aqui
O
PRÍNCIPE E A IGNORÂNCIA
Em
mais uma entrevista, incomparável,
o
Príncipe me chama de ignorante.
Diz
ser uma atitude de tratante
ir
pedir voto ao pobre e ao miserável.
E
mais: que por essência, inconsignável,
esse
eleitor não sabe do bastante
e
vota às cegas, como se, tateante,
palmilhasse na treva impenetrável.
Lendo a Privataria e a Operação,
entendo o que ele diz, e me aventuro
a
sugeri-las a quem vai no escuro;
pois
quem as lê, se o próprio juízo o aguça,
no
Príncipe e na sua agremiação
não
põe sufrágio, nem que a vaca tussa!
7-10-2014
Mais aqui
DE
BLACK BLOCS E GREYHOUNDS
"A
República não pertence a Vossa Excelência
nem à sua grei. Saiba disso."
(Ouvido
numa alta instância da justiça brasileira)
Supremo,
amargo e irado, esse Joaquim,
Uma
vez desafiado, não hesita:
Põe
a polícia em cena, que exorbita
E
obriga o outro a calar. (Simples assim.)
Rancor
contra o advogado que, insistente,
Batendo
à porta com punho incansável,
Leva
de novo à vista do Honorável
A
velha petição do pretendente? –
Cabe
explicar: conhecimento e (penso)
Knowledge é a mesma coisa. Mas quem
diz
Batman diz labareda,
fogo intenso. –
Logo
se entende que, se houver demanda
Ou
se a grei se desgarra – por
um triz –,
Cabe
mostrar ali quem é que manda.
13-6-2014
SONETO
ACRÓSTICO
“Não é o
que dizem os auditores do INC-PF. O laudo
tem 43 páginas e em nenhuma delas
consta o nome de Pizzolato, ou do então
ministro Luiz Gushiken, responsável pela
publicidade do governo de Luiz Inácio Lula
da Silva quando estourou o escândalo do
Mensalão.”
(Maria
Inês Nassif)
Julgar
e justiçar formam às vezes
Uma
espécie de absconsa dobradinha,
Resolvida
por alto na levinha
Intimidade
da alma e seus reveses.
Manda
a prudência e manda a honestidade
Ponderar
a balança da justiça,
Refreando
o impulso da vontade omissa –
Um
e outro em nome, apenas, da verdade.
Debaixo,
pois, da raiva vingadora
E pronta,
que a si mesma se penhora,
Nasce
ou se cria um germe de serpente,
Cujo
veneno, ou doce ou sub-reptício,
Infecta ocultamente com o seu vício
A falsa
fé de que ela se ressente.
14-5-2014
INSTANTÂNEOS DA MARCHA
I
Dona Coisa ficou muito
irritada
quando
entendeu que a marcha em que Deus ia
era
contraditada nesse dia
pela
outra, antifascista nominada.
Esbravejou com ar de
endemoniada
(gesto
que bem podia, mas havia
seminaristas
lá, de alminha pia),
e por
gente mais sã foi afastada.
Qual o motivo da demonstração?
É que, apesar de Deus e
do rosário,
o
protesto, bilioso e resmungão,
era contra o partido do
governo.
(E todos
sabem que, entre a terra e o inferno,
o diabo –
e aqui se prova – é apartidário.)
II
Vaiaram
os roqueiros na avenida,
e houve
quem suspirasse, nesse auê,
pela
volta do infame CCC
com uma
saudade sonsa e agradecida.
E o que
dizer da louca algaraviada
que
estamparam nas faixas e cartazes
levados
lá por uns gentis rapazes
que de
explicá-la não sabiam nada?
Porém
espantou mais foi o desejo
incivil
de dar cabo do adversário,
por
“linchamento” – um disse, assim sem pejo.
Diante de
um objetivo tão sumário,
é correr
para casa, entre cautelas,
e trancar
logo as portas e as janelas.
III
“Representada”
pelo Malafaia,
a moça do
cabelo colorido
foi, sem
ideologia e sem partido,
dar seu
recado ali, naquela raia.
Noutra
parte, uma dona resumia
todo o
desassossego que ela tinha,
dizendo
que gastar com moradia,
se é
coisa de esquerdista, é “pegadinha”...
Talvez
por não gostarem de votar,
propugnavam,
com uma angústia rara,
pelo
intervencionismo militar.
É que,
conforme a moça expressou bem,
pedir a
ditadura e a exceção tem
menos
perigo que exaltar Guevara...
IV
Estudar
na USP é coisa perigosa
(prefira-se
homeschooling) – disse a moça;
e o
comunismo, a praga venenosa
que o
juízo ponderado não endossa.
Da
mulher, perscrutando a opinião sua,
bem
facilmente se compreende que é
muitas
vezes melhor morar na rua
do que
ter presidente do PT.
Que nos
Esteites não há golpe (ouvi),
porque lá
existe uma democracia
bem mais
desenvolvida que a daqui.
(E, por
que a nossa cresça em peso e altura,
não há
melhor alvitre neste dia
que ir às
ruas pedir a ditadura.)
Mais
aqui
25/28-3-2014
EM
FOGO BRANDO
“Sei
apenas que a solidão é um lugar pequeno
demais para seu ego.”
(Fernando Brito)
Ego tão vasto assim num lugar
morno,
tendente a frio, cabe muito
mal.
(Ficaria melhor num grande
forno
ou num ensolarado litoral.)
Para expandir-se bem precisa de
ar,
de água, de azul, do “fervo” e
do reclame –
coisas que acabará por
encontrar,
não
aqui, mas nas praias de Miami.
Por
enquanto, porém, vai definhando
num
cozimento “pífio”, a fogo brando,
que não
crepita e só produz fumaça.
Dessem-lhe
uma fornalha e muito espaço,
e iam
ver quanto ruído e estardalhaço,
quanto
bolo ainda dava aquela massa!
29-3-2014
A PRESIDENTA
Firme ao timão,
não ouve a gritaria
de quem,
aborrecendo lá chegar,
quer empurrar a
coisa, dia a dia,
em direção a algum
fatal lugar.
Concentra-se no
esforço, perseguindo
a tarefa infinita
do futuro
e contra a maré
brava resistindo
do
mal-intencionado e do perjuro.
Vai
desafiando as ondas, de uma em uma,
sobre
mar de sargaços e mentiras
que,
iroso, já tragou mil bergantins;
enquanto
à sua volta se avoluma
um
cardume raivoso de marlins,
de tubarões,
de bagres, de traíras.
28-3-2014
GLOSA A MOTE
“Foi
feito para isso sim!”
(Ouvido numa alta
instância da justiça brasileira)
Respondeu-lhe o
arcanjo assim:
“Foi feito para
isso sim!”
Foi só para dar o
exemplo
de coisas que não
se aplicam
às vestais daquele
templo,
que tal como foram
ficam
desde o princípio
do mundo,
e por isso em nós
suscitam
só um suspiro
profundo
quando os ânimos
se excitam?
Respondeu-lhe o
arcanjo assim:
“Foi
feito para isso sim!”
Ou foi mesmo para
dar
mais um repelão à
roda
que estava quase a
parar,
apesar de hoje ser
moda
na ideia de certa
gente
o difuso
pensamento
de derrubar
presidente,
que ali gira e é
cata-vento?
Respondeu-lhe o
arcanjo assim:
“Foi feito para
isso sim!”
Mais aqui
10-3-2014
A LAVAÇÃO
D. Gilmar
suspeitou do meu dinheiro,
achou que
era lavagem, o maroto.
E então
pensei comigo: "O capiroto
fez do
cérebro dele um aranheiro!"
E nem dei
bola. E fui depositar
meu
detergente em conta de quem fosse,
sem ter
quaisquer satisfações a dar
ao
desconfiado e a seu veneno doce.
Mas eis que,
descontente, o tagarela
voltou a
campo e disse num jornal
que aquilo
era uma afronta ao tribunal.
Que sujeira!
É por esta mais aquela
que, em
reforço da escova e do sabão,
dobrei a
monta da contribuição.
Mais aqui
18-2-2014
CAUSA SECRETA
Já não há para mim
Constituição
Ou lei que não promane
do meu veto,
Agora que aprendi a dar
decreto,
Que tenho o Tribunal na
minha mão.
Um doce para quem souber
mostrar,
Instado por desejos de
justiça,
Meu truque mais sublime
e, movediça,
Minha causa secreta, a
prosperar.
O que me move mesmo, de
verdade,
Não digo a toda gente,
nem revelo
Ao indiscreto olhar da
ingenuidade. –
Reino sobre o meu feudo,
incontestado,
Com o Código a meus pés,
ora fechado,
A me servir de estrado
ou escabelo.
29-11-2013
LANCHE NO
TRIBUNAL
Ouvido
mouco é regra lá na casa –
mas às
vezes, em caso de pressão,
quando
retorna à pauta o “Mensalão”
(que de
carvão começa a virar brasa)
do
tucano, uma pausa é conveniente
para
pensar ou mesmo para o lanche,
contendo
assim a insípida avalanche
da
enorme urgência que entorpece a mente.
Um
sanduíche e uma Coca descem bem
e um
cafezinho, para quem não tem
úlceras
que o impeçam de avançar:
e
depois, no retorno, a retomada,
sem
reparar que se mudou de estrada
e que agora
se vai a outro lugar.
Mais
aqui
27-11-2013
MENOS EU!
Quem
quer que leu o Dória sabe bem
que
serve qualquer um, menos aqueles
que eu
levei a Brasília no meu trem,
misturando
o meu gene ao gene deles.
Pode
ser qualquer pássaro – a andorinha,
a
gaivota, a maitaca ou o albatroz,
contanto
que, de pluma mais levinha,
num voo
reto, chegue lá sem nós.
Para
alívio de todos – ou, melhor,
conforme
disse o antigo Imperador:
“Se é
para o bem de todos...” – aqui fico.
E aqui
paro, onde Judas me perdeu
e onde,
falhado herói, me sacrifico:
seja, pois,
qualquer outro – menos eu!
Mais aqui
25-11-2013
JURAMENTO
Minha intenção não é ser
presidente,
E sim fazer justiça,
embora o ofício
Um incômodo aspecto de
comício
Assuma às vezes,
colateralmente.
Mas de onde foi que
deduziu a gente
O pensamento de que era
um suplício
Receber lá, das mãos do
próprio Aécio,
Tamanha distinção, de
Inconfidente?
A insígnia chega a
tempo, merecida,
Recomendando o circo de
uma vida
(Tendente a medalhão da
Academia).
Um princípio no entanto
abraço e acato:
Fidelidade ao lema que
me guia –
Onde quer que me saia
mais barato.
Mais
aqui
21-11-2013
FESTA NA REPÚBLICA
A República Nova não
admite
Festas em que se comam
outros frutos.
Está no regimento. E a
lei permite
Somente aquele – em
termos absolutos.
Toca o Joaquim – que a
fez independente,
A ela emprestando
incluso o próprio nome –
Doida valsa, que
degringola a mente,
Aumentando a fadiga, o
enfado e a fome.
Comer o doce, entanto,
só no fim,
Ou depois que o tivermos
adoçado
Com o meio amargo açúcar
de Caim.
Até lá, que se dance à
perna solta,
Dando um passinho, às
vezes, para o lado –
À direita e de leve, a
cada volta.
Mais
aqui
e
aqui
20-11-2013
GLOSA A MOTE
Se o
teu jurista é o Merval,
entras
bem e acabas mal.
O advogado
na penhora
cortou
parte do teu rabo
e
simpático anda agora
menos a
Deus do que ao Diabo?
E vives
já desconfiado
de que
a lei não te contempla? –
Pois há
nó mais bem atado;
pensa
nisto, pois te exempla:
se o
teu jurista é o Merval,
entras
bem e acabas mal.
O juiz
da tua comarca
de
penas tais te carrega
que
trepida a tua barca,
que o
teu burro te arrenega?
E o
promotor lá na corte
te
despela e te exorciza? –
Que
isto, amigo, te conforte,
pois
teu coração precisa:
se o
teu jurista é o Merval,
entras bem e
acabas mal.
Mais
aqui
19-11-2013
NA REPÚBLICA DO
JOAQUIM
Prossegue o
autor, descrevendo as grandezas da República
Nova.
Na
República do Joaquim
quem
tem olho não chega a rei.
Há
que saber tresler o Código
e
empurrar a Constituição
e –
lépido – ignorar a LEP
e
outras chatices que há na lei.
Na
República do Joaquim,
proclamada faz só três dias,
há
que ter ouvidos de pedra
e
fingir que não houve nada
quando o alarme soou lá fora
junto com outras gritarias.
Na
República que o Joaquim
proclamou, com a corda toda,
no
último 15 de Novembro
(com
intenção de fazer melhor
ou
quem sabe só remendar
a
outra que já saiu de moda)
comunista não terá vez;
mas
os togados e os banqueiros,
e os
solitários da internet,
e os
colunistas do Estadão,
e
outras aves de voo baixo,
e os
joaquins hão de ter poleiros.
Na
República do Joaquim
de
óculos é que se enxerga mal.
Portanto há que tirar os óculos,
ou
se fingir de analfabeto,
e
bufar diante dos embargos,
e até
dormir no tribunal.
18-11-2013
ACRÓSTICO DA
REPÚBLICA
Não fui eu que a
inventei, mas no seu dia,
Ousando mais que o
próprio Marechal,
Valentemente, me lancei
a tal,
Arremessado além do que
podia.
Minha intenção de luz
não carecia:
Era fazer valer,
regimental,
Nossa ambição de dar ao
Tribunal
Toda a justiça que ele
merecia.
E foi então que – de uma
canetada –,
Violada a própria regra
da prudência
E o que mais me
embargasse na empreitada,
Levantei meu decrépito
espadim,
Honrando lá com velha
independência
A República Nova do
Joaquim.
18-11-2013
NOVATOS E VELHACOS
"Sou
velho, mas não sou velhaco!"
(Ulysses
Guimarães)
Bom
era que o novato nem votasse
ou
que, votando (um tanto à revelia
de
quem conselho vende à luz do dia),
o
seu voto, ainda verde, não contasse
e ao
estabelecido se somasse;
ou
que, somando menos – pois cumpria
dele
abater proporcional fatia –,
no
prato da balança não pesasse.
Tacitamente, a coisa se acertava
(se
fosse o caso), nesta situação,
corroborando a pena que se exige
e no jornal
produz boa impressão
(se fosse o
caso). E a gente cancelava
o
regimento – se é que ele ainda vige.
Mais
aqui
19-9-2013
SONETO (QUASE)
DESPERTO
Sabemos finalmente onde ele estava –
o
documento que no imaginário
do
gigante dormido não constava:
perdido lá, no escuro de um armário.
Perdido não: com zelo extraordinário
subtraído ao malvado que o guardava
da
prateleira com que nem sonhava
nosso ardor de protesto, funcionário.
Se
não dava soneto, agora dá:
que,
com a proteção de São Gilmar,
não
foi em cana quem o deixou lá,
nesse sono que dura já sete anos
e do
qual, sob os gritos de uns fulanos,
parece que afinal vai despertar.
Mais
aqui
9-7-2013
SONETO
PARNASIANO-BLABLARINO
“Eles não guardam a
memória de qualquer movimento anterior de
massa, e por isso é que chegam às vias
públicas assim como quem tritura farelos de
estrelas nas mãos consteladas.”
(Carlos Ayres Britto, Ministro do Supremo)
“É tão
importante, mas tão importante, que ele não
sabe o que significa!”
(Paulo Henrique Amorim)
“O
Verde é o último reduto do conservador de
armário. O Verde platinado.”
(Comentado
no Conversa Afiada)
A
verde desmemória nos convém,
triturada, tal como a cintilância
de
uma estrela nas mãos da militância,
que
sai às ruas, com partido ou sem.
Não
compreender o assunto é entender bem –
ensina-nos, aqui, Sua Excelância,
numa
alada, estelar, última instância
(onde os farelos contarão também).
Seria o caso de um conservador
que
anda ouvindo – direis – o que, pasmado,
não
faz sentido, mas tem brilho e cor?
Ah,
viu nos astros: viu, na conjunção
zodiacal, entre o pasmo e a explicação,
um
blablarino Verde, platinado!
Mais aqui
15-7-2013
SONETO
MAJESTÁTICO
Batman do pensamento
intransitivo,
Resoluto e valente, que
o Merval
Imprimiu, para efeito
magistral,
Como um herói na capa do
seu livro,
Knowing it all, supus, desse portento
(E, if not, não
importa: fiquei sendo),
Levo ao extremo o meu
afã tremendo,
Levado eu mesmo por
tamanho vento.
Se me perguntam onde, em
que reduto,
Terminada a missão que
ora executo,
Repousará meu sólido
traseiro,
Em pífia caverninha ou
em cediça
Ermida é que não é, mas
no altaneiro
Trono (de ouro e
granito) da Justiça!
24-7-2013
O INCÔMODO
A realidade, sempre a
realidade
Repelindo, embargando,
atrapalhando
Esses planos redondos
que fazemos,
A cada passo um novo
arquitetando.
Lá onde aquele mundo
mais bonito,
Incrivelmente rosa e
platinado,
Dourado, até, no fim de
um belo arco-íris,
Ao som de um jingle
leve, saltitado,
Dançava alegremente –
uma criança –,
Entra ela, atropelada,
barulhenta,
Não dando a mínima para
o sublime
Aviso que na porta se
apresenta:
Oco e cheio de vento,
como um pote,
Como um vaso velhusco,
agora friável,
Ou um fruto só casca,
onde chocalha
O caroço pedrento e
imastigável. –
Pedra por dentro, e
pedra no telhado:
E esse incômodo atroz de
coisa torta,
Rumor que faz na tarde,
indesejado,
A
realidade, quando bate à porta.
Mais
aqui
12-7-2013
SONETO EM
ACRÓSTICO
De
prender o Dirceu eu gosto mais
Ou
às vezes o impávido Genoino,
Recorrendo
às argúcias do meu tino,
Mais
exatas que as pistas capitais.
Ir,
decidido, às favas da evidência
Não
comove o meu senso de justiça,
Do
qual se nutre, sem qualquer preguiça,
O
meu desejo insone de excelência.
Na
hora de despachar uma sentença,
Ouvir
o passarinho que em mim canta
Faz
do meu caso uma cruzada imensa.
Abro
o livro na página, e decido.
Toca-me
dar o exemplo. E só me encanta
O
domínio do fato em meu ouvido.
Mais
aqui
e aqui
9-7-2013
CANÇÃO COM O
PARAFUSO A MENOS
Aos filósofos da Internet que
têm uma opção de estado de direito para
sociedades de massa além da democracia
Sob as chuvas que
não caíram
e entre os ventos
desencontrados,
ao som de músicas
absurdas,
dançam os
desparafusados.
O que soa nos seus
ouvidos
ecoa nas
coreografias:
alguns dançam
feitiços, mágicas,
outros dançam
ideologias.
Mas eis que o
parafuso ausente
pelo visto não lhes
faz falta:
vede como o seu pé
se move,
vede como desliza e
salta.
O parafuso que lhes
falta
deixa um oco em sua
cabeça
por onde o vento a
invade e estufa
e faz com que o
miolo amoleça.
(O bom senso não
está à venda
na bodega do seu
Joaquim,
nem no bazar da
dona Eulália:
por isso é que se
dança assim.)
Vede como dançam
bonito
(mesmo faltando o
parafuso,
mesmo sendo o vento
contrário,
mesmo que o ritmo
seja abstruso),
em meio aos ruídos
do momento,
os que-fazeres da
magia,
a mecânica da
orelhada
e as fórmulas da
ideologia.
Sob as chuvas que
não caíram
e entre os ventos
desencontrados,
ao som de músicas
absurdas,
dançam os
desparafusados.
6-7-2013
AS VIRGENS
ILHAS
Para as mais virgens
ilhas nós iremos
quando o Fisco chegar,
batendo à porta;
quando, impulsivo, vier
numa hora morta
pedir um documento, que
perdemos,
de cujo paradeiro nem
sabemos
(ou esquecemos, pois já
não importa
ou só importa ao vento
– letra morta) –
tudo em nome do
Imposto, que tememos.
É para as Ilhas
Virgens, abençoadas –
mais virgens que as
mais virgens das amadas –
que fugiremos, sem
mostrar o DARF
e expondo parte alguma,
ou quase nada,
da nossa anatomia
delicada
ao tridente do Fisco,
que nos garfe!
Mais aqui
4-7-2013
SEIS
SONETOS DE OCASIÃO
I
Volta o golpismo à moda.
E eu, do meu canto,
sobre o teclado, como um
mandarim
caseiro, sem sair do meu
jardim,
“digito”, “clico”,
“envio” – e não me espanto.
Cumpre assinar a lista –
doce encanto –
ou postar no Facebook
(esse quindim
do qual quero um pedaço
para mim)?
Pois lá vou eu, a me
indignar, portanto.
Vejo. Escuto o Jabor,
que se desdiz.
Ouço o Alckmin dizer, lá
de Paris,
que bala de borracha não
dá certo.
Não sei. Vou acender uma
velinha
para a alma do Lacerda,
que Deus tenha,
e outra para a do
Civita, o Roberto.
II
Com o nariz de palhaço
em posição,
formando em frente ao
rosto uma bolota,
saio à rua e não penso
na chacota.
Que quero? Que procuro?
Sei, e não.
Saio do meu sossego: a
situação
é que me faz assim
perder a rota.
E se o mundo acabar só
em lorota? –
Bem, estarei cumprindo
uma função.
É Vênus Platinada. É
Can-cansei.
É Marcha da Família, a
que o bom Deus
somente acorre se falece
a lei.
Nesta promiscuidade de
objetivos,
eu mesmo já não sei
quais são os meus,
e mal distingo os modos
dos motivos.
III
Na passeata do vândalo,
o ladrão
também tem vez, e vez
tem o espertinho
que lá entrou de gaiato
– um passarinho –
para lograr, à sombra, o
seu quinhão.
Tem vez o demagogo – tão
levinho –
que, ali bradando contra
a corrupção,
vai repetindo um lépido
bordão
cuja origem apenas
adivinho.
Tem vez o mercador da
novidade
que, sem medo às
carrancas da verdade,
grita aos ventos: Aqui
se faz história!
E tem vez o valente,
mascarado,
de bigodinho ralo, bem
cortado –
sem nome, sem partido e sem
memória.
IV
Sem causar furacões nem
maremotos,
mas, com a vênia de uma
intenção bela,
fazendo do protesto
passarela
ou só pretexto para
belas fotos,
entre slogans
sonantes e remotos,
a que sem convicção a
alma se atrela
(mas que a fazem sonhar
e acendem nela
um corisco de urgências
e alvorotos),
lá vamos nós, formando
na avenida,
ao lado dos audazes e
atrevidos,
uma corrente longa,
indefinida –
a depredar os prédios da
justiça
e a queimar as bandeiras
dos partidos,
cuja ideia nos obsta e nos
atiça.
V
“... por isso ele
entendeu que aquela era a hora de lutar por
TUDO de uma vez só: saúde, educação,
salários justos, etc.”
(Cauê
Madeira)
Foi
então que o gigante despertou,
porém
sabendo mal que ainda dormia:
e
foi, convalescente, à luz do dia,
bradar
um vago lema que escutou
e
defender a Causa a que o chamou
uma
sombra que ao longe aparecia,
fazendo
a longa lista (ele entendia)
das
guerras que, dormindo, não lutou.
Cumpria,
pois, pugnar por tudo e nada
ao
mesmo tempo, ao modo de quem tenta
pôr
em dia uma agenda abarrotada.
E
saiu à rua, incerto, estremunhado,
com
a cara pintada ou mascarado –
cheio
só das razões que o sono inventa.
VI
Quem deixou o gigante
adormecido,
cantando-lhe a
longuíssima canção
do auriverde Combate à
Corrupção,
de ir Morder a Bandeira
do partido,
de eleger presidente o
Destemido
Vingador do impalpável
Mensalão;
e depois o acordou, na
confusão
dos cartazes e lemas,
maldormido?
Quem derrubou a PEC num
só instante
com a ajuda do brado
retumbante
que lá ecoou sem
acordes, rimas, pausas? –
Por certo que não foi o
mascarado,
iroso, nem o ardente
desmiolado,
grande entusiasta de
todas as causas.
Mais
aqui
18/27-6-2013
A
POLÊMICA TOLENTINO-CAMPOS REVISITADA
(COM UM ADENDO)
"Eu não sou tradutor,
traduzi algumas coisas."
(Ferreira Gullar)
Tolentino esbravejou
forte
contra esse aspecto de
esquimó
que misturava – estranho
esporte –
risos e caras de dar dó.
Falar com o travesseiro
não
convém, a não ser numa
urgência,
como ante a ameaça de um
tufão
ou coisa de igual
pertinência.
Mas fique lá o relógio,
quieto
e empoleirado sobre a
porta,
e passemos ao que é
concreto,
ao que de fato nos
importa:
Arnaut Daniel, Corbière,
Marino,
Hopkins, Gregório,
Kilkerry
João Donne, John Airas,
Aretino,
e até mesmo Pignatari
(forçada a rima, já bem
gótica),
eu citaria, com prazer;
mas com "pessoa
intersemiótica"
não saberia o que fazer;
e rimava o meu
"arrebol",
que o Tolentino
detestou,
com "girassol" ou
"rouxinol",
(pois ele é ele, e eu eu
sou);
já "traquitânia
colonial",
"emocional verborragia"
ou até "culinária
verbal"
são termos que eu
evitaria.
(E, embora o Campos
desaprove,
darei mais uma estrofe
ao poema,
pois o meu eu quero com
nove,
mesmo que nada acresça
ao tema:
para evitar – tenho
pensado –
futuras precipitações,
proponho um
abaixo-assinado
contra todas as
traduções.)
ADENDO
Pena no poema não caber
a Spaghettilândia, esse
espanto,
pois ao dez chego sem
querer,
e haja paciência para
tanto...
(Referências aqui
e aqui)
Buenos Aires,
18-9-2012
O CURRÍCULO
DO POETA
No currículo do poeta
(ralo demais para o
concurso),
não se diz que ele foi à
Lua,
não se diz que domou um
urso,
não se diz que agarrou
de jeito
um crocodilo, um tigre,
um touro,
nem que foi ao fundo do
mar,
nem que encontrou algum
tesouro,
nem que transpôs um
Himalaia,
nem que, valente e
confiado,
engoliu a areia do Saara
ou que cruzou a Mancha a
nado.
No currículo do poeta
se diz (conforme fé vos
dou)
que ele ganhou prêmios à
beça
e publicou e publicou;
e que afinal, de livro
em livro,
foi que chegou àquela
altura
(que para todos os
efeitos
vai mais alto que uma
cintura)
de si mesmo e de ter
subido
(como quem sobe uma
montanha),
com um currículo assim
cheio,
para mor brilho da
façanha,
a uma espécie bem
rarefeita
de topo ou de cimeira
(ou quase)
de si mesmo, que é mais
difícil
(pois nada lhe serviu de
base)
quando pensamos que
subiu
sem auxílio de escada ou
asa,
mas agarrando-se somente
a um rochedo que o
empurra e atrasa
(e soma negativamente
o que já é dívida
bastante,
de que o currículo dá
prova;
mas isto é o menos
importante),
dando em vermelho, no
final
da conta, um saldo
negativo –
nada capaz de
impressionar
quem mede a soma,
inconclusivo
(sabendo entanto toda a
gente
que uma lista assim tão
comprida
como um recibo, ao
menos, vale
que vale o ralo de uma
vida).
Buenos Aires,
22-5-2012
ABDÔMEN
TIPO EXPORTAÇÃO
(de
uma revista de moda brasileira)
Não
só nosso bumbum tem feito estremecer
os
gringos mas também – conforme uma notícia
que
vem da Europa milenária e pontifícia –
o
ventre bem torneado e lindo de se ver
Vede: até mesmo o Times
veio a reconhecer
(à
inveja misturando um tico de delícia)
que
a lipoaspiração levada com perícia
e
o bisturi podem fazer retroceder
a
inútil flacidez que no abdômen se enquista
(“a
técnica se indica” – observa o especialista –
“para
jovens que a têm logo abaixo do umbigo”)
Explica-se
portanto a inglesa ebulição:
tal
arte há de abolir do ventre o corte antigo
e
moldar a cintura em forma de pilão.
3-2-2011
O
PARTIDO
A
Paulo Henrique Amorim
Pode
ser que por trás desse partido –
A
que chamas, sem menos, de golpista –,
Regular,
qual maestro rigorista
Toca
um sutil concerto bem urdido,
Insistindo
no ritmo desejado
De
que tira um prazer particular,
O
aspecto partidário, insuspeitado,
De
um partido real possa faltar
(Ao
qual, porém, talvez só não faleça
Intenção
e atitude partidária);
Mas,
para que a verdade se esclareça,
Pondo-se
em posição mais ordinária,
Resta
admitir que à coisa, assim disposta
E
funcionando assim, dessa maneira,
Não
faltam, pelo menos, por aposta,
Senso
de urgência e a ginga costumeira:
Ao
partido da imprensa, indeclarado
(Gato
que a cada noite é menos pardo),
O
que lhe sobra é o jeito, indisfarçado,
Leonino
do rugir (ou de leopardo):
Presas,
garras, a astúcia e, certamente,
Inclusas
no pacote, entre outras pistas –
Se
a pele aqui se torna transparente –,
Tangida
pelo faro das conquistas,
A
mesma gana e a audácia dos golpistas!
3-9-2010
COMENTÁRIO
A UMA NOTÍCIA
A pedido da Nestlé, a
Prefeitura de São Paulo decidiu reduzir a
qualidade nutricional da sopa que pretende
distribuir em um programa que irá reunir pais
e alunos aos sábados nas escolas e creches
municipais. A gestão Gilberto Kassab (DEM)
diminuiu a quantidade de carne, frango e
verdura exigida na sopa depois de um apelo
feito pela multinacional durante uma consulta
pública para a compra do produto. A previsão
das nutricionistas do município era que uma
das sopas tivesse 7 kg de carne, 2 kg de
cenoura e 3 kg de "outras" hortaliças (por 100
kg de sopa desidratada a ser distribuída). Com
a mudança feita diante da manifestação da
Nestlé, a mesma sopa deverá ter só 0,5 kg de
carne, 0,8 kg de cenoura e 1 kg de "outras"
hortaliças.
(Folha de São Paulo, 12-9-2007)
Ralear a sopa não implica
diminuir a quantidade
dos ingredientes que a compõem,
que lhe dão corpo e densidade.
Diminuir pode ser também
acrescentar ao alimento,
isto é, deitar água à medida,
tornando ralo o seu cimento.
Isso apaga o incêndio da sopa
e acende o fogo da ambição,
que às vezes grassa tanto mais
quanto mais água há na ignição.
15-9-2007
DAR E NÃO DAR
Cozinheiras
de três escolas municipais da zona leste de
São Paulo afirmaram que ganham um prêmio para
racionar comida nas unidades, revela
reportagem publicada nesta terça-feira pela
Folha...
(Folha Online, 11-9-2007, http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u327418.shtml)
Dar e não dar são dois extremos
de um mesmo dar que não se engana
na conta: o mesmo saldo exato,
mesma atitude muquirana.
Dar o que é pouco e racionado
(como quem toma ao dar, ou furta) –
é dar entre paredes, cercas,
dar com critério e rédea curta;
o que às vezes é como não
dar ou nem dar, que distribui
uma ponta, um farelo, um grão,
que a quem recebe diminui.
Quem de dar pouco tira um prêmio,
isto é, faz disso o seu cenário
(ou o seu teatro) e se compensa:
e dá, sempre, mas ao contrário –
vai enchendo a parte vazia
do que era necessário encher,
enchendo-a de um vazio cheio
que tanto mais pode conter;
enquanto, da outra parte, enchendo
um vazio que se esvazia
quanto mais se enche de si mesmo,
enche só como quem desvia;
porém sem nunca errar na conta,
porque sabe de onde tirar,
tirando de reter o prêmio,
fazendo de tirar um dar.
Dar e não dar são como espelhos,
ou como as pontas de um cordão:
de um lado a consciência limpa,
o correto do gesto e da ação,
mas do outro: o dar que não
franqueia
ou que, dando como quem pede,
faz de dar um tirar aos poucos –
dar que mais toma do que cede.
11-9-2007
A
UM BLOGUEIRO DA INTERNET
I
Se não
compreendes um assunto, fala dele.
Considera que o
teu leitor o sabe menos.
Põe nisso
convicção e duzentos venenos,
como um sapo que
os traz ocultos sob a pele.
Publica só as
cem cartas que te bajulam,
que afirmam
concordar com tudo o que disseste.
E ignora as
outras mil cuja opinião conteste
teu frouxo
discorrer, onde os erros pululam.
Qualquer que
seja a conveniência do argumento,
escolhe sempre o
mais adequado ao momento.
Faze disso um
mister ou uma profissão.
E, quando a
obscura voz da verdade te sonde,
não penses outra
vez, mas de pronto responde
que exerces tua
liberdade de expressão.
II
Qualquer que
seja o caso – ou claro, ou duvidoso –,
mostra que tens
sobre ele uma opinião formada,
que deve
anteceder a própria coisa dada
(como um fruto
de cera em prato luxuoso).
Sê firme em teu
julgar e sempre imperioso,
dando a entender
que tua fé não teme nada,
que foi o
próprio céu que te mostrou a estrada,
que és pai de
uma coruja e de Minerva esposo.
Não deixes que
um qualquer, para bancar o tal
(nem o próprio
Platão, nem seu melhor pupilo),
seja teu
professor, mesmo que liberal.
Mas dize sempre
que és livre para entender,
que ninguém pode
te obrigar a compreender –
pois a verdade é só uma questão de
estilo.
BAIRRO NOBRE
Foi-se ao
trabalho. O dia todo cheio,
sem um minuto
para distração –
que empresa não
é jogo, nem passeio.
(E ainda pensam
que é fácil ser patrão...)
Ela também tem
uma ocupação –
embora não
precise, e ele ache feio.
Dar aulas numa
escola. Por que não,
se é preciso ir
à luta, sem receio?
Lá dentro a
velha pensa: “Que maçada!
Depois de tão
comprida caminhada,
foi se casar com
esse vira-lata!”
Passa um carro
lá fora. E o menininho
aparece na
porta: cópia exata
do burguesão,
que é pai do burguesinho.
CONVITE
PARA O ENFORCAMENTO
Vem-me por e-mail o convite
(enviado não sei
por quem)
para assistir ao
videoteipe
do enforcamento
de Houssein.
Recebo-o com
desatenção
e deito-o fora,
mas no instante
em que o suprimo
um pensamento
se equilibra em
mim, hesitante.
Que cor é que se
pôs aqui,
que não é só uma
cor qualquer,
mas que de viva
aguça em nós
esta ansiedade
de saber,
que é mais que a
ansiedade vulgar
que toda morte
põe em curso,
a ponto de gerar
o equívoco
de uma incerteza
sem recurso?
Talvez se trate
só da morte,
mas neste caso a
morte é mais
que o espetáculo
cotidiano
das mortes
vulgares, normais;
talvez se trate
de saber
que a morte aqui
se disfarçou
em morte-objeto,
a morte-coisa
cujo preço se
calculou
segundo o apelo não do show
ou do alarido
que se faz,
mas de um
valor-morte, visível,
que o morto
finge por detrás –
valor que,
entanto, não esconde
o fato de na
morte vista
(mesmo a mais
cara e mais notória),
como um defeito
que se enquista
sob a superfície
domada
da cor e do
disfarce, haver
um traço da
outra morte: aquela
que é sempre vulgar e qualquer.
23-1-2007
DE
MANCHETES E ERRATAS
"Essa
história de manchetes enormes e uma errata
desse tamanhinho, que ninguém lê, me parece um
ato de absoluta arrogância."
(Geraldo Grossi, Ministro do TSE)
É de supor que aquela parte
da verdade que lá não coube
e que ocupou pequeno espaço
na outra verdade que se soube,
quando editada ou corrigida
(se é que se pode corrigir
o que
se chama de verdade,
sem desfigurar ou mentir –
sem inventar uma verdade
que à anterior se superponha,
como quem fala enquanto dorme
e trata por real o que sonha),
venha ocupar maior espaço
do que ocupou na outra ocasião,
justificando que se imprima
uma nota de correção.
Mas pode ser que às vezes faltem
à verdade que se corrige
o
estofo, a consistência e o gosto
que de uma verdade se exige:
pode ser que a uma tal verdade
falte o peso que justifique
o esforço mesmo de escrever
uma errata que a retifique.
Então, nem tanto pelo escrúpulo
de dar a verdade à verdade,
mas de medir com parcimônia
o jeito, a forma, a densidade
que há de haver no medir palavras
com que se diz o que não deve
no dito adquirir novo peso
(maior que o primeiro que teve),
se faz que a errata não alcance
comprimento maior que aquele
que se deve dar ao não-dito,
cabendo inteira dentro dele:
se faz que tenha bom tamanho,
conforme o fiel que se utiliza,
sem desperdício da (já escassa)
verdade que se economiza.
out./2006
JINGLES
DE CAMPANHA
Os jingles de campanha vão
dizendo com estrondo, com
uma espécie de bom humor
que é mais da intenção que do som –
que é como a isca com que se atrai
o eleitor-peixe, que se quer
pescar não com o anzol da espera,
mas com a tarrafa do que vier –,
que o candidato da comarca,
o benfeitor da freguesia
(parente do contraparente,
primo do sogro de uma tia),
é melhor do que o que está longe,
porque se enxerga menos mal,
tal como a obra de algum oleiro
que se dispõe sobre um jornal.
*
No “santinho” ele sempre exibe
um sorriso de quem se ri
da improvável e nada santa
coincidência de estar ali
(como quem foi ali lançado
por algum tiro de canhão
e, tendo suportado o impacto,
faz de tal coisa o seu refrão).
*
Talvez se pense que esse peixe
(o eleitor) – tão pouco assanhado
pela torrente-senador
ou pela maré-deputado
(mas que só se pesca aos cardumes)
–,
por míope e surdo, necessite
de muito ruído que o desperte
e muito bom humor que o excite:
que seja peixe de água turva
ou que, lento, nade melhor
quando o atraem as rimas fáceis
e a
grande cara num outdoor.
(Cara que, não nos iludamos,
nada tem de recife ou penha,
mas é móvel como as areias
ou antes, na pesca que a empenha,
como uma efígie do dinheiro:
familiar só para quem tem;
que, a flutuar na água em que
pesca,
vai tão depressa quanto vem.)
*
Os jingles de campanha vendem
como se próximo o distante,
o que tem asas e se escapa,
batendo-as, leve, num instante.
Para atrair o peixe-voto,
dão-lhe por isca uma ave esquiva,
que, inerte sobre a superfície,
não se adivinha que está viva.
Quando esse peixe, cego e surdo,
mal consciente do que abocanha
e de que a isca é mais abundante
na estação de pesca, a campanha,
morde nada, ou só morde rede,
que é o que lá está para morder –
ave defunta e de papel,
mas bem capaz de se mover.
set./2006
À
MARGEM DA ATUAL SITUAÇÃO POLÍTICA BRASILEIRA
Os justos mordem os injustos
de um modo límpido, oficial,
utilizando-se dos dentes
que lhes concede o tribunal.
Certos de que só desse modo
é que se extirpará o caroço
de mal que empesta a carne, mordem
mais fundo – até o limite do osso.
(Outrora se fazia assim
nos tribunais da salvação,
talvez com um pouco mais de arrojo
e desvergonha na incisão.)
Se acaso mordem outro justo
com dentes que a justiça deu
(e após dizem que foi o dente
e não a boca que mordeu),
cospem por cima uma saliva
de preceptivas e morais
com que pensam cauterizar
as chagas novas, naturais.
Por não morder-se mutuamente
ou só morder o que convém,
deixando intacto tudo mais
que a justiça distingue bem,
não procedem conforme a grega
razão costuma prescrever:
isto é, primeiro dando à luz
o que antes não se pôde ver;
mas vão espalhando ao redor
uma poeira de intenções,
de bons propósitos, de sãos
desígnios, justificações,
que só se expressa em oratória,
e em gestos amplos, tribunícios,
que a outros olhos talvez pareçam
mais adequados aos comícios.
Vão lançando uma rede larga
e de malha fina em que o peixe
da opinião pública se enreda
(conforme o engodo que se deixe):
pois pouco importa a claridade
que a vista possa pretender:
importa o imperativo do ato,
a missão nobre de morder.
(agosto/2005)
DESCONSTRUINDO
O DEPUTADO
A situação tomou
a peito
desconstruir o
deputado
e o faz virando
pelo avesso
o que não tem
avesso ou lado:
apanha um fio e
logo faz
com ele vir o
pano todo,
e então com o
fio que puxou
amarra-o,
prende-o de algum modo.
Mas esse peixe,
que não cabe
na própria rede
que o captura,
viscoso, logo se
escapole
e salta a outra
maior altura.
(Quem é que
agarra tal salmão
no fluxo louco
da corrente
e diz que nada
na verdade,
ou diz que
trama, e diz que mente?)
A oposição,
porém, segura
de que tem
contas a acertar
não com o
difícil deputado,
mas com quem o
esteja a enredar,
trata de
reconstruí-lo, armando
de nova linha o
mesmo tear:
e o faz levando
mais para o alto
o peixe que não
quer pescar.
(Ou põe de volta
cada carta
que a situação
embaralhou
e vai – Penélope
– ao encontro
de um Ulisses
que não voltou.)
E arrepanha, e
alinhava, e cirze
essa esperança
de tecido
com que há de
reparar os furos
do deputado
descosido.
(E aplica nisso
tal fervor
que em cada
ponto que se esgarça
mal se descobre
a cosedura
do sério ou o
remendo da farsa.)
E o deputado,
por seu turno,
ave ou truta que
se desvia
de cada língua
que o bajula,
de cada farpa
que o desfia,
lá paira, enigma
ou charadista –
inacessível como
um céu
à situação, que
nunca o viu,
à oposição, que
já o perdeu.
30-6/1-7-2005
(Poemas e
crônicas de Renato Suttana)
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