O FRASCO DE MÁXIMO AUGUSTO
(Maria da Conceição Paranhos)
La beauté n'est pas raisonnable.
Slogan da Baccarat para o ano de 2001.
Máximo Augusto é um homem imprevisível.
Cientista infatigável, pesquisador de minúcias, um dia desses,
enviou a um periódico de sua cidade o seguinte aviso:
No dia 5 de abril, entre as quatro e
cinco da tarde, no Shopping Barra, garagem 2, entre a ala Norte e a
ala Oeste, perto da descida das escadas rolantes, ao lado de uma das
pilastras mais próximas a esse local, perdi um pequeno objeto
importantíssimo para mim. Recompensarei regiamente quem o trouxer à
Rua Desiderio Arabutã, 22 – Itapoã. Para quem não conhece o bairro,
fica perto da Rua Vinicius de Moraes, onde mora o escritor Ildásio
Tavares.
No mesmo dia em que o aviso saiu corri
ao setor indicado. Enquanto olhava o chão com afinco achei uma
camisinha usada, um papel amassado em forma de bolinha diminuta
(abri-o, curiosamente, e ali estava escrita a palavra “imagem” em
vermelho – propaganda de loja de cosméticos), um lenço de papel
usado (com a marca “ex” impressa em alto relevo na folha) e um
pequeno espelho de bolsa. Corri, em seguida, para a porta da casa
de Máximo Augusto. Lá já havia oito pessoas em frente à porta. Cada
uma levava alguma coisa nas mãos, todas em frascos transparentes de
vidro: migalhas de pão, uma borboleta viva, pétalas de rosas
envelhecidas pelo tempo, azeite de oliva, uma mecha de cabelos, um
caramujo vivo, uma aranha viva e uma bolinha de papel pautado
amassada. Eu levei o espelhinho.
O criado de Máximo Augusto fez entrar as
pessoas uma a uma. Seu patrão estava na sala principal da casa,
sorridente, apaziguado, atento. Aceitou tudo o que se lhe
apresentou, e retribuiu a cada um: um pão, uma roseira plantada num
vaso, um ramo de oliva verde conservado em soro fisiológico, óleo
aromático, uma caixa com folhas de alface, um tronco seco de
flamboyant e um caderno volumoso, com pauta. Todos e cada um nada
disseram. Aparentemente, gostaram da recompensa. Quando chegou a
minha vez ele pediu licença aos demais com toda a educação que lhe é
peculiar e me chamou, reservadamente, ao seu gabinete.
Disse-me, sacudindo energicamente meu
ombro enquanto andávamos:
– Então, o que bebe?
– Não bebo, obrigado.
– Mas nem um suco?
– Um copo de água está perfeito.
Máximo Augusto pediu ao criado para
providenciar as bebidas – para si, um Gin Fizz. Pois então, senhor.
Luciano Travolta.
... Luciano Travolta... É o escritor de
romances, não é? Luciano Travolta...Os Escombros da Cidade, Meu Pé
de Pau Brasil – que foi apontado em “Os mais lidos”, na Folha de São
Paulo em seis meses consecutivos, estou certo? Sou seu leitor,
parabéns. O seu personagem, Desiderio Arabutã, dá nome à rua que
moro, percebeu isso? Foi nesse personagem histórico que o senhor se
baseou para extrair o nome do seu protagonista, não é?
– Isso mesmo.
– Como adivinhou que o objeto perdido
foi o espelho?
– Não adivinhei não. Foi o único objeto
que encontrei no local indicado que não parecia com algo jogado como
imprestável. Mas fiquei em dúvida, pois é um espelho feminino.
Depois de um longo silêncio, Máximo
Augusto falou:
– Desejo contrair matrimônio. Só posso
imaginar essa situação concretizando-se, se eu puder meditar à
sombra de algo. Desejo contrair matrimônio para meditar à sombra de
minha própria imagem conforme vista por outrem além de mim mesmo.
Ou mesmo, à sombra de chifres de alce, já que a sombra desses cornos
é provavelmente suficiente. Evito outros tipos, como os de touro, de
bode, ou de bode montês. De búfalo, nem pensar, são muito arreados e
propiciam a incidência dos raios solares em plena testa. Pensei em
Miranda Citeréa, a viúva do pobre Malvindo Palermo.
Essa mulher, além de ser formosíssima,
aceitaria de bom grado um casamento de conveniência. Assim sendo, e
conforme o figurino de nossa época, não tardará em trair-me, pois as
mulheres são assim mesmo, e este é um problema insolúvel a meu ver.
A única coisa que me preocupa é quem ela escolherá por amante, pois
alguns homens, ao possuírem a mulher alheia, insistem em colocar na
testa do marido chifres de veado; outros, de búfalo; outros ainda,
de anta; mais outros, de carneiro. E o que me interessa realmente, é
meditar sem sobressaltos.
Insinuei:
– E o senhor acha que eu...?
Contestou:
– Não, de modo algum. O senhor faria
crescer em mim um complexo que Freud explica como de unicórnio. O
senhor sabe como são os unicórnios, não sabe? Claro que sabe.
Habitavam nos confins da Mata Atlântica, quando havia Mata
Atlântica. Agora que predadores a depauperaram, o unicórnio vive até
nos zoológicos municipais. Vou lhe contar um pouco sobre os
unicórnios. Não é possível domesticar um unicórnio. Mesmo porque,
assim que avista um ser humano, volatiliza-se.
Ingressei na fala de Máximo Augusto com
determinação:
– E o senhor sabe que, nesse momento,
seu único chifre cai por terra e ali fica em pé, como se fora um
broto recém-plantado, e, logo em seguida, põe folhas e frutos? As
folhas são delicadas como as da avenca, mas os frutos são
estarrecedores: grandes, viçosos, em tons de rosa ao vermelho
encarnado. Podem ser perigosíssimos para raparigas em flor, se
usados com leite em forma de “vitamina“ – designação brasileira para
mistura de frutas ou de uma só fruta com leite, no liquidificador.
Na Califórnia se diz “smoothie”, “maciozinho”, coisa que Marcel
Proust não chegou a saber – soubesse-o, provavelmente sua obra teria
sofrido significativas modificações na trama dos acontecimentos. Mas
isso, de qualquer modo, fica irrelevante para o conjunto de sua obra
e mesmo para um só livro ou uma só página de livro, pois o que conta
mesmo é a forma como ele veiculou seus temas e motivos. Por isso é
que me parece insuportável quando uma pessoa qualquer, com uma
convicção estarrecedora me diz: “minha vida daria uma história”
Outro dia mesmo, fui vítima desse disparate. A pessoa que enunciou a
frase fatal ainda acrescentava, gesticulando com ênfase:
– Um dia lhe conto, não se importe, que
lhe conto. Aí é que você vai ter o que escrever!
Ora, não preciso de nenhum assunto para
começar a escrever nada, nunca precisei, e infeliz do dia em que
possa vier a precisar! Mas, voltemos às raparigas: elas, ao tomarem
a “maciozinho”, viram estátuas de marfim. O homem que as contemplar,
nesse estado, perde para sempre o desejo de entrar em contato com
moças que falem e se locomovam no espaço.
Máximo Augusto ouvia o relato, com vivo
interesse. Chegou sua face para bem perto da minha, a ponto de me
fazer recuar um pouco pelo incômodo da situação.
Interrompi a explicação para dar um gole
de água.
Máximo Augusto também deu um gole no seu
Gin Fizz e vários outros, pequenos e sucessivos.
– Pois o senhor chegou ao nó da questão.
Depois de ouvi-lo, cresceu minha determinação de casar-me com
Miranda Citeréa. Eu soube desde o início que o senhor acharia o
caminho para a concretização de meus desejos. O unicórnio resolve
tudo.
Fiquei a olhá-lo, sem entender o que
essa história do unicórnio tem a ver com o seu projeto de casar-se
com Miranda Citeréa, e o que é que tudo isto tem a ver com sua busca
pelo jornal.
Máximo Augusto percebeu, talvez, minha
indagação, pois se levantou intempestivamente e exclamou:
– Só com essa condição é que me caso, só
com essa condição!
Soou a campainha. O criado trazia numa
pequena salva de prata em forma de sapato de mulher, adornada com
motivo art nouveau de cabeça feminina, um soneto de Camões, que
cito:
No shopping
Um rapaz cego entra no magazine
com seu Dog alemão, guia de cego,
e anda até a seção, diretamente,
de roupa íntima, da masculina.
Uma área livre, ele demarca, então,
com sua longa bengala encastoada,
provinda das lonjuras do Ceilão,
e começa a cantar sua toada.
Segura, do seu cão, as patas louras,
e dança e dança uma tarantela,
enquanto o vendedor, meio pateta,
procura entender o gesto louco.
“Senhor, posso ajudar, alguma idéia?”
“Não, obrigado, é minha, essa festa”.
Máximo Augusto agradeceu enfaticamente,
deu uma gratificação à velha senhora, um casulo de bicho de seda
enrolado num lenço de algodão cru, ao que ela balançou a cabeça
afirmativamente e, com determinação, saiu, dizendo em voz alta,
várias vezes: “A cama está feita, a cama está feita!”.
Máximo Augusto casou com Miranda Citeréa.
Esta começou a traí-lo com um rapaz muito decente e discreto, cujo
nome não me lembro mais. Mas quando se deparou, um dia, com a planta
de frutos encarnados, que crescia nos fundos do quintal de Máximo
Augusto desde o dia da minha primeira visita, sem que ninguém se
desse conta, não resistiu: colheu algumas e fez uma suculenta
vitamina ou “maciozinho”. De imediato, transformou-se numa estátua
de marfim de extrema beleza.
Quando isso aconteceu, Máximo Augusto
começou a meditar com afinco. Comprou um óleo cuja especificação,
não deixa dúvidas:
Óleo Sullube-32
Altamente estável contra oxidação
aumentando a vida útil
Habilidade de dissolver formações
residuais para limpar máquinas velhas
Alto índice de viscosidade garantindo
sua estabilidade
Excelente compatibilidade com
elastômetros
Vida útil de 8.000 horas
Redução dos custos de manutenção com
filtros separadores de Ar/Óleo
Baixa volatibilidade diminuindo o
arraste de óleo
Baixa toxicidade
Consuntividade térmica maior que outros
lubrificantes sintéticos.
Depois de suas meditações, fez o
seguinte: colocou os oito frascos numa máquina granuladora que havia
utilizado há anos, nas suas experiências com cristais de rocha, e
abasteceu-a com o óleo. Quebrou a estátua de Miranda Citeréa em
partes iguais e também a colocou na máquina. Granulou tudo, até
obter massa fina e leve, molhando-a, de quando em vez com água
mineral Itaparica. Formaram uma pasta homogênea, de cor verde kiwi.
Colocou a pasta numa tigelinha de cristal de espessura mínima e
depô-la em lugar a receber o sol durante sete dias ao amanhecer.
Enquanto fazia isto, eu preparava minha
viagem para o Egito, onde iria realizar um sonho: conhecer as
pirâmides, coisa que eu pretendia fazer com detalhe, principalmente
a de Keops. E assim o fiz, embarcando no Aeroporto 2 de Julho (é
assim que continuarei a chamar o aeroporto da minha cidade).
Cheguei ao Egito no dia seguinte, com
dois transbordos. Nessa mesma noite, fui visitar o observatório de
Astronomia. Vi Sirius cara a cara em seu resplendor magnífico.
Depois contemplei a Lua e logo reconheci suas montanhas e crateras,
tão familiares para mim, já as conhecia de outros observatórios,
inclusive no estado da Bahia. Entrei em estado de comoção ao
reconhecer o monólito que já visualizara em Feira de Santana:
enorme, desamparado, em meio de imenso deserto – que parecia de
leite coalhado. Quando assim me senti, tomou-se um sentimento de
simultaneidade espacial: Cairo e Bahia estavam reunidas ali,
enquanto eu contemplava, a seguir, Sirius de novo, e de novo as
montanhas lunares.
Não é senão quando grácil, ágil,
esbelto, prateado, luminoso, apareceu por entre os interstícios do
telescópio um soberbo exemplar de unicórnio. Agora era não me dar a
perceber, para que não se volatilizasse. Mas ele pressentiu minha
presença e volatilizou-se, e enquanto seu chifre caía por terra,
resvalou de sua crina um retrato de mulher. Pensei em que tristes e
malogrados seres somos, os humanos, que não somos capazes de pôr
folhas nem frutos. Deixei a planta intacta a crescer no
Observatório.
Acima, coroando o passeio, um cometa que
passava.
Nesse mesmo dia, retornei à Bahia.
Pressurosamente, decidi-me a roubar alguns objetos em minha casa
mesmo, para tê-los comigo, pela primeira vez, em meu gabinete. Abri
o armário maior da sala e dali tirei um trapo de tecido preto, que
arranjei como um saco, e ali fui colocando os objetos, colhidos aqui
e ali e, logo em seguida, os fui dispondo no gabinete. Primeiro foi
uma fotografia feita por Lúcio Mendes, fotógrafo baiano de Juazeiro,
da Pietà, de Michelangelo; depois, um livro de autor desconhecido
com capa em policromia, de Sérgio Rabinowitz (coloquei-o em minha
mesa de trabalho, ao lado do papel em branco); três CDs: um,
contendo a Rapsódia Húngara, de Brahms; outro, a Fantasia para
violino e piano, de Schubert e o álbum Maluco Beleza de Raul Seixas
– este, presente do professor e poeta Ildásio Tavares; outro, uma
reprodução primorosa de As meninas de Renoir, pelo artista plástico
alemão Ewald Hackler; outro um Mané Mole, comprado na saída do
antigo Banco da Bahia, por meu pai – levado para fazer rir a mim e a
meus irmãos, para nossa casa; outro, um brinquedinho da galinha dos
ovos de ouro, em galalite (ao pressioná-la para baixo, põe ovos),
que ganhei de minha mãe aos 4 anos; outro um potiche pequeno,
contendo passas brancas, compradas pelo poeta alagoano José Inácio
Vieira de Melo, para mim; outro, um terço de madrepérola benzido
pelo Papa João XXIII, a mim ofertado pelo poeta Luis Antônio
Cajazeira Ramos; outro uma primorosa edição de cartas eróticas, a
mim emprestada por um poeta contraventor; a obra completa de Jorge
de Lima, que o poeta Carlos Cunha me enviou pelo correio há trinta
anos; a linha editorial completa das Edições Cidade da Bahia,
presente do escritor e editor Guido Guerra; uma estatueta em marfim
marchetado de ouro, da Rainha Vasti, presente da escritora Myriam
Fraga; um tríptico de pássaros no vôo, xilogravura medieval,
presente de Calazans Neto; uma caneta gravada com meu nome,
lembrancinha do poeta Ruy Espinheira Filho; a obra completa de
Gregório de Mattos por Fernando da Rocha Peres; uma têmpera de
cavalo em galope amarelo, do escritor Florisvaldo Mattos; um CD de
Gustav Mahler, contendo a “Ressurreição”, presente de aniversário
por meus 30 anos de literatura, do poeta Antônio Brasileiro; uma
licoreira de cristal da Baviera, com líquido amarelo, presente da
insigne museóloga Malba Vellame; reprodução do quadro Het straatje
(“A Ruazinha”) de Johannes Vermeer, da professora e escritora, poeta
inédita, Celina Scheinowitz; o livro Voyage au Bout de la Nuit, de
Céline, mimo do Professor Nelson Rossi; o Livro Vivo, do Professor
Antônio Barros; a obra completa de Tasso da Silveira, enviada pelo
Editor Gumercindo da Rocha Dórea; uma coleção de mamulengos em
papier maché, homenagem de Maria Manuela; A Pomba da Paz, óleo de
pintor baiano, cedido pela bondade de Sante Scaldaferri; uma garrafa
de areia multicolorida, feita pelos presidiários da Penitenciária
Lemos de Brito, a mim oferecida por um deles; e um vaso de cristal
da Boêmia, multicor, que herdei de minha família materna. Coloquei-o
à janela para receber a luz do sol nascente. Era 3 e 47 da
madrugada quando fui dormir, exausto. Acordei com um estranho ruído
no meu quarto avarandado. Entreabri os olhos e lá estava o Máximo
Augusto. Levantei-me de sopetão e acendi a luz da lâmpada de
cabeceira:
– O que é, homem, alguma catástrofe?
Máximo Augusto segurava, com cuidado,
uma pequena tigela. Chegou mais perto: era um frasco bojudo. Dentro
havia uma pasta esverdeada e meio florescente. Seu rosto estava
lívido, seus dentes cerrados, a pele que recobre as mandíbulas
repuxadas para trás. Veio até a luz e me mostrou o objeto: era um
frasco. Estendeu-me o objeto:
– Por favor, esconda isto.
– Mas o que é isto?
– É o resultado de minhas pesquisas de
toda uma vida. O tema de minha pesquisa é a Beleza. Sabe, a Beleza?
Aquela, que não muda com o tempo e permanece absoluta e em estase,
identificada com a Verdade, seu antípoda – vulgarmente falando. Esta
pasta dentro do frasco é o resumo de minha vida de pesquisas, mas
cheguei ao fim de minhas buscas. A Beleza solicita um certo gesto
terrível, que está contido nessa pasta. Sabe que gesto é este?
Máximo Augusto se exaltou, as veias
engrossaram na sua testa e no seu pescoço, os olhos projetaram-se
para fora das órbitas congestionadas:
– Sabe que gesto é este? Você sabe? Ele
estava apoplético. Temi pela sua vida, fui buscar-lhe um copo
d’água.
Ele se foi recompondo aos poucos.
Parecia velho e abatido.
– Agora, continuou ele, penso em mudar
radicalmente meus dias restantes. Vou mudar-me de cidade talvez.
Embarco amanhã para a Espanha, onde pretendo passar um bom tempo na
costa.
– E o que tem dentro do frasco, homem?
– Cheguei a um ponto radical: consegui
extrair a matéria originante do que se chama de identidade. Nessa
massa está contida toda a biblioteca genética da minha imagem, na
qual se inclui a de Miranda, que aqui se encontra total e inteira.
Na passagem da descoberta da identidade para a da alteridade dei de
cara com a Beleza e...
Interrompi-o, temendo pela sua vida.
Eu estava acostumado com surpresas, com
sensações de ubiloqüidade, com sonhos transformando-se em realidade,
com fenômenos paranormais e coisas assim, mas aquilo me deixou
boquiaberto.
Máximo Augusto fez uma continência,
inclinou-se como os orientais e desapareceu como por encanto.
Mais tarde, apressei-me em ir à sua
casa, em busca de detalhes. Estava totalmente fechada. Ninguém
atendeu à campainha, batidas nem a minhas palmas e meus gritos de “Ô
de casa!”.
Voltei para casa, fui para o gabinete,
ali fiquei meditando ao som da Fantasia para violino e piano, de
Schubert. Fui à janela e segurei a borda do parapeito com força.
Vi o meu copo de cristal da Boêmia com o
sol incidindo em cheio em sua festa de cores e brilhos. Fui até o
aparelho de som e introduzi o disco de Raul Seixas, faixa 4,
“Sociedade Alternativa”. Cheguei à janela de novo. Lá fora, no meu
gramado, uma criança tinha entrado pela cerca-viva de mirta, em
busca de sua bola que estava rolando até a janela onde eu me
encontrava. Vi o rosto afogueado de um menino de dez anos, se tanto,
o sol já alto dourando seus cabelos, gritando alegre para o outro
menino, que estava fora do gramado:
– Consegui, consegui! Continuaram a
jogar bola no meio da rua comprida, que se alongava numa ladeira até
a linha do horizonte. Meu Deus, como a vida pode ser simples e
plena! Foi o que pensei.
Coloquei o CD da Rapsódia Húngara, abri
a gaveta onde havia guardado o frasco de Máximo Augusto, tomei-o nas
mãos, fui até o quintal, cavei um buraco fundo; coloquei algumas
pedrinhas miúdas forrando o fundo do buraco; juntei uns gravetos
secos e os coloquei sobre as pedras; assentei o frasco lá dentro;
ensopei uma estopa em gasolina e a depus sobre o frasco; coloquei
mais pedras, maiores dessa vez, deixando sempre um vão aberto.
Acendi um fósforo e o lancei ali dentro. Afastei-me rapidamente. A
Rapsódia Húngara terminava.
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