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Nicolau Saião

 

AS CHAGAS

 

(Maria da Conceição Paranhos)



Desposo-vos meu Criador e Salvador, desposo-Vos. Conservai intacta minha fé, para que um dia possa eu celebrar convosco as bodas eternas. (Santa Catarina de Siena)

 

 

Aqui sangram meus olhos, mãos e pés

marcados como os Vossos. No abandono,

chamais-me com brandura, e eu Vos desposo

aos sete anos setenta vezes sete.

 

Que esse sangue me inunda, reme, unge,

e os demônios crocitam, ungueados,

e urdem planos vis naquela tumba

em que já enterrei desejos da carne.

 

Não quero para mim o amor de homem,

tão precário se mostra, no interesse

de um corpo perecível e padecente –

não, não é orgulho – e a cobiça é louca!

 

A traição se faz de muito amar,

e isto é o amor, dolorida é esta essência,

um eterno trair, por não tomar

do amado a posse externa, contingente,

 

prazeroso sim, que Deus assim o quis,

belo e bom a Seus olhos. Vê o ser:

em seu caminho tem o dom magnífico

de unir o corpo à alma em casamento

 

 

... deixá-lo, por saber de outro amor –

este, o dos tabernáculos da dor:

deslumbrante harmonia me seduz

alegria de amar em plena luz

 

dentro da alma sedenta do Infinito.

Já dispensei de Lúcifer o convite,

deserto ardente em que me vi proscrita,

rejeitada por todos na família.

 

Contudo. Em novéis águas ancorar,

escutando as mensagens em erma noite

de mãos em concha nos ouvidos cálidos –

nos ritos de passagem, sem pernoite,

 

pois a vigília é clara, e as orações,

apascentam este espírito em canções

nessas palavras com sabor de hóstia,

e serpentes fluindo em minha história.

 

Oh, sim, as garatujas infantis,

polida superfície, aquela, eu vejo

ilesa nos canteiros de jacintos,

nas margens e no sangue das abelhas,

 

e o dentro dos rochedos, na fissura

este vinho escarlate, este momento

é mineral, eu sei e agora, rígido –

este carvão das horas de tormento

 

amainado no pão da Eucaristia.

Oh, delícia maior, ó vida grata,

tua antevisão entra na vida e cria

os caminhos do amor em cada estrada.

 

......................................................

 

Dentro de ti tens feras, animália

que é venenífera. Mentor de bestas,

o horto de tua alma é envenenado

de improbidades vis, traições, malfeitos.

 

Ó miserável, aonde tu chegaste,

enfermo e vão, a compleição em chagas,

sem todavia ter vivido a Cruz –

vestido e apavesado, mas sem luz

 

que de cima te invade, e não percebes.

Tu denegriste a glória do teu Pai,

fora dos jardins santos de tua igreja

tal uma prostituta que se vai

 

sem honra e sem pudor, deleite ou paz.

E nunca te envergonhas, nunca cessas,

nessa bazófia estranha e alvarinha

bandoleiro e embusteiro incorrigível.

 

Os porcos atiraram-se nas águas,

penetrados da fúria do execrado –

destino malogrado dos doentes

de poder e de glória, os quais dispenso.

 

Espírito sem luz, tu perambulas

em florestas de urzes, a ferir-te,

pois permitiste ao demo o entranhar-te,

e te enleias à imagem que não excluis.

 

Tu já morreste, e quedas morto-vivo,

tal vampiro, estuário de pavores,

esquecido de ti, hostil a ti

pela concupiscência, por seu dolo.

 

Muita cal nos sepulcros violados

em festins do demônio, esse audaz,

esse profanador de tantas almas

ignorantes do torvo lupanar.

 

Vade retro Satana, eu te conjuro,

pelo Pai, pelo Filho e o Santo Espírito!

Foi-me dado o poder de ver a injúria,

porque descortinei obras do impuro

 

em minha vida exposta, a mim, banida,

quando este corpo foi-se do calcário

de que somos moldados, mais, a lápide

do corpo amortalhando a alma transida.

 

............................................................

 

Prostro-me ao chão, não mais irei comer,

nem beberei mais nada: o corpo falha

demasiado vai-se em vãos manjares:

Ele, somente Ele é alimento

 

no pão da vida, ó santa Eucaristia,

ó sacramento grato para o espírito

abrigado no seio de quem guia,

à Santa Madre Igreja, seus caminhos.

 

Pare este tempo, agora, somos carne

e sangue e nervo e transe, pois nos tange

um sentir invadido de relógios

num só carpir de fogo, em necrológio.

 

Se eu vier a morrer, aos trinta e sete,

sabeis que é de paixão a minha morte,

paixão por esta Igreja que nos pede

um sim, noiva de Cristo, seu consorte.

 

Este sangue minando das feridas

no corpo padecente, narram a vida

de uma pobre mulher cuja beleza

despediu-se da vasta cabeleira

 

que lhe cobria os ombros, dorso e pés.

Queriam-na rendida a um estrangeiro.

Já predestinada, alma flamejante

às bodas consumadas para o céu

 

celebradas bem cedo, sem retorno,

na solidão do quarto da menina,

sem platéia e sem palmas, pura entrega

ao sempiterno Amado, ao doce Esposo.

 

Deste lado direito sangra o flanco,

os lábios já gretados na agonia

de sede portentosa, e é vinagre

o que oferecem à boca consumida.

 

Um sol abrasador castiga o cenho,

pende a cabeça augusta, soberana,

há um gemido de dor, tudo estremece

penetrado de luz, e estertora um deus

 

e descobrem-se neves nesses sóis,

e revelam-se gelos nessas chamas,

e o desejo despido, sem tocar,

só o pensamento alado, inda mortal.

 

...........................................................

 

Eu, Catarina, só e analfabeta,

dito a minha sina  de dentro da cela:

já estou só voz, vejo só luz, sou só

expectação em corpo de donzela.

 

Quero, sim, a palavra que murmura,

achada no fulgor do pensamento

e no bater das cordas, paixão pura,

aliviando chagas e tormentos.

 

Essa palavra extrema é minha carne,

aqui é minha casa e minha cama,

daqui eu vos aceno, só enquanto

a casca desta alma não se quebra.

 

 

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