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Nicolau Saião, Postal de namorados

 

POEMAS DA LUZ INESPERADA

 

(Maria da Conceição Paranhos)

 

 

SONETO DIDÁTICO

 

Nem tudo é épico e oitava rima.

(Jorge de Lima. Invenção de Orfeu)

 

 

Nem tudo conta em doze ou conta em dez

— a despeito do gênio desta língua.

Usar lira na 4a., e tambores na 6a.

não preenche no amor a sua míngua.

 

Nem tudo se descreve arte maior

no decassílabo, que, mais se evita,

impõe-se em privação à nossa sede

— aqui vou, ali vais, gaita galega.

 

Penetra numa terra sem fronteiras

(sem armaduras e sem rimas raras)

e repousa naquelas altas leiras

 

a ouvir os imortais sussurros, fartos,

que sequer chegam à escrita em seus perjúrios

— abafados no horror dos sons espúrios.

 

 

 

 

AURORA

 

O anzol de tempo

me encontra silenciosa,

e as noites de luar ocidental

penetram dias de oriente.

 

Viajo para o Norte,

e salta o coração

nos pontos cardeais

e nos desvios de rota —

tão colaterais neste deserto,

perdição, se dormes,

potro de fogo e vento

na concha em que nasci,

o espelho sagital com

seus torsos.

 

Quando te toca a brisa de abril

nos trópicos

onde pernoita o pensamento.

 

Traça-se um trajeto para

o passo caapora

e felizmente assim

 

(ando para dentro

e por dentro de uma vastidão azul

entre a porta e a morte súbita).

 

Houve dias de tormenta em cabos nãos

a serem dobrados em pura calmaria.

O promontório púrpura

se inunda de ungueado som,

corvos crocitando

em céu de nuvens densas.

 

Sigo assim, eu em verme,

eu, peixe de Deus

em lesma expatriado —

purgado pelo sal,

espécie em redenção

de um viver tardio.

 

Aurora boreal

de um durar ausente

a emanar doces cintilas —

enquanto cai a sombra

do avantesma austral

arrastando este dia

para a limpidez da hora.

 

 

 

 

O DESDITADO

 

Je suis le Ténebreux, — le Veuf, — l`Inconsolée,

Le Prince d`Aquitaine à la Tour abolie:

Ma seule Étoile est morte — et mon luth constellée

Porte le Soleil noir de la Melancholie.

..................................................................................

 

Et j’ai deux fois vainquer traversé l`Achéron:

Modulant tour a  tour sur la lyre d’Orphée

Les soupirs de la Sainte et les cris de la Fee.

 

(El Desdichado. Gérard de Nerval, 1875)

 

 

A vida pulsa em cada tom, e ouço

palpitando-te o peito a dor e o luto

no alaúde lilás. Soa o clarim.

Enquanto o verso, livre, te seqüestra,

 

viúvo obscuro tanges tua corda,

na casa deste verso, e a perícia é louca.

 

Arrastas berro bárbaro na boca

se és poeta de todos que não falam,

 

mas és o desditado, és o bastardo

cavaleiro do tempo em espaço parco,

 

meio a voracidade da poesia imprecas,

que não te deixa, a ti, o deserdado,

 

mesmo se os vendavais te varram a vida,

e o grito da tua chaga purgue e lave

 

a tua voz extrema de cantor,

se lá chegares! É que jamais chegas,

 

jogo de júbilo face ao tormento.

Então teu corpo desce a rampa estreita.

 

 

 

 

SONETO DA LUZ INESPERADA

OU IGUARIA À MODA DE AMARALINA

 

Resta de mim somente algo de novo,

muito antigo e completo, feito fogo

ou verdade, tão novo como luz.

 

(Luis Antônio Cajazeira Ramos. Poemas avulsos)

 

 

Foi quando aqui cheguei. Nada sabia, ainda,

dos vultos imantados na casa vazia.

 

Revi teus olhos negros, chispando em faíscas,

que um dia me fitaram, com audácia incisiva,

 

quando abriste minha porta. Com aceno esquisito,

assentaste à varanda — fidalga, invadida!

 

Estava eu recolhida, pois fujo do atrito,

abomino intrusões, sou musa dos meus ritos.

 

Depois te retiraste. O assoalho varrido,

buscava teu semblante nos recantos nítidos.

 

A vida destruída num quintal de vinhas,

cacei serpentes vis, chorei em negro exílio.

 

Agora desce o sol na trama submergida

e imerjo nesta luz da morada vazia.

 

 

Salvador / Bahia, 2004

 

 

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