POEMAS
DA LUZ INESPERADA
(Maria
da Conceição Paranhos)
SONETO
DIDÁTICO
Nem
tudo é épico e oitava rima.
(Jorge
de Lima. Invenção de Orfeu)
Nem
tudo conta em doze ou conta em dez
—
a despeito do gênio desta língua.
Usar
lira na 4a., e tambores na 6a.
não
preenche no amor a sua míngua.
Nem
tudo se descreve arte maior
no
decassílabo, que, mais se evita,
impõe-se
em privação à nossa sede
—
aqui vou, ali vais, gaita galega.
Penetra
numa terra sem fronteiras
(sem
armaduras e sem rimas raras)
e
repousa naquelas altas leiras
a
ouvir os imortais sussurros, fartos,
que
sequer chegam à escrita em seus perjúrios
—
abafados no horror dos sons espúrios.
AURORA
O
anzol de tempo
me
encontra silenciosa,
e
as noites de luar ocidental
penetram
dias de oriente.
Viajo
para o Norte,
e
salta o coração
nos
pontos cardeais
e
nos desvios de rota —
tão
colaterais neste deserto,
perdição,
se dormes,
potro
de fogo e vento
na
concha em que nasci,
o
espelho sagital com
seus
torsos.
Quando
te toca a brisa de abril
nos
trópicos
onde
pernoita o pensamento.
Traça-se
um trajeto para
o
passo caapora
e
felizmente assim
(ando
para dentro
e
por dentro de uma vastidão azul
entre
a porta e a morte súbita).
Houve
dias de tormenta em cabos nãos
a
serem dobrados em pura calmaria.
O
promontório púrpura
se
inunda de ungueado som,
corvos
crocitando
em
céu de nuvens densas.
Sigo
assim, eu em verme,
eu,
peixe de Deus
em
lesma expatriado —
purgado
pelo sal,
espécie
em redenção
de
um viver tardio.
Aurora
boreal
de
um durar ausente
a
emanar doces cintilas —
enquanto
cai a sombra
do
avantesma austral
arrastando
este dia
para
a limpidez da hora.
O
DESDITADO
Je
suis le Ténebreux, — le Veuf, — l`Inconsolée,
Le
Prince d`Aquitaine à la Tour abolie:
Ma
seule Étoile est morte — et mon luth constellée
Porte
le Soleil noir de la Melancholie.
..................................................................................
Et
j’ai deux fois vainquer traversé l`Achéron:
Modulant
tour a tour sur la lyre
d’Orphée
Les
soupirs de la Sainte et les cris de la Fee.
(El
Desdichado. Gérard de Nerval, 1875)
A
vida pulsa em cada tom, e ouço
palpitando-te
o peito a dor e o luto
no
alaúde lilás. Soa o clarim.
Enquanto
o verso, livre, te seqüestra,
viúvo
obscuro tanges tua corda,
na
casa deste verso, e a perícia é louca.
Arrastas
berro bárbaro na boca
se
és poeta de todos que não falam,
mas
és o desditado, és o bastardo
cavaleiro
do tempo em espaço parco,
meio
a voracidade da poesia imprecas,
que
não te deixa, a ti, o deserdado,
mesmo
se os vendavais te varram a vida,
e
o grito da tua chaga purgue e lave
a
tua voz extrema de cantor,
se
lá chegares! É que jamais chegas,
jogo
de júbilo face ao tormento.
Então
teu corpo desce a rampa estreita.
SONETO
DA LUZ INESPERADA
OU
IGUARIA À MODA DE AMARALINA
Resta
de mim somente algo de novo,
muito
antigo e completo, feito fogo
ou
verdade, tão novo como luz.
(Luis
Antônio Cajazeira Ramos. Poemas avulsos)
Foi
quando aqui cheguei. Nada sabia, ainda,
dos
vultos imantados na casa vazia.
Revi
teus olhos negros, chispando em faíscas,
que
um dia me fitaram, com audácia incisiva,
quando
abriste minha porta. Com aceno esquisito,
assentaste
à varanda — fidalga, invadida!
Estava
eu recolhida, pois fujo do atrito,
abomino
intrusões, sou musa dos meus ritos.
Depois
te retiraste. O assoalho varrido,
buscava
teu semblante nos recantos nítidos.
A
vida destruída num quintal de vinhas,
cacei
serpentes vis, chorei em negro exílio.
Agora
desce o sol na trama submergida
e
imerjo nesta luz da morada vazia.
Salvador
/ Bahia, 2004
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