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Laurence Stephen Lowry, Incidente na rua

 

O SÍNDICO

 

(Maria da Conceição Paranhos)

 

Aos sábados, a sirene tocava às 08h45min. Ivan, sozinho no apartamento, demorava-se. Esperava o segundo toque às 08h46min. Então abria lentamente a porta. Após os cumprimentos e mesuras, dizia-lhe, como sempre, há 15 anos:

 

“— Desculpe, Sr. Clayton estava terminando o banho.”

 

Isto não sem antes molhar bem os cabelos, despenteá-los e ir enxugando-os enquanto falava. Em seguida, cintava mais o roupão de banho, toalha em volta do pescoço e mãos na cintura, um charme verdadeiramente. Ivan era um sedutor irresistível, seus belos cabelos negros semilongos, as costeletas bem definidas, retangulares, finas e compridas, o que fazia um contraste com aqueles cabelos reluzentes e sutilmente desordenados, ônix líquido e flou, glória do seu cabeleireiro, Alain Mettoudi, um francês de Marselha, “a cidade que começa com uma história de amor”, diz Alain até hoje, “entre Protis e Gyptis”. Não sei como foi a história. Um dia vou pesquisar. Mas sei que nesta história foi construída uma ponte sobre o plácido mar de Marselha.

 

Ele, o síndico, esboçava um gesto não se sabe de irritação contida, neutralidade ou indiferença ou todas, aliadas a certo olhar de lampejos rápidos, maléfico. Tudo veladíssimo. Era um homem acabado. Em grande parte por não aceitar o seu próprio desígnio, seu desígnio de dentro. Ele vivia ─ como diz meu sábio pai ─ serrando serragem. Pena. Sua falta de resignação diante da falência de sua empresa de construção civil era amarga e contaminava todos os seus atos, por óbvio sua vida doméstica e a de sua vizinhança.

 

E então Ivan lhe dizia:

 

“— Sr. Clayton, não quer entrar um pouco?”

 

Com aparente naturalidade, Ivan fazia esta pergunta. Sua corrosiva ironia dançava nos seus olhos vivos e pensava como o síndico era ridículo nas suas preocupações comezinhas. E aquela gestualidade enrustida! Queria o Clayton exibir uma superioridade da qual não dispunha nem por índole nem por história de vida.

 

Às vezes o síndico dava um ou dois passos soleira adentro. Jamais se sentara, em 15 anos, quando das suas visitas formais, olheiras, o rosto e o cabelo ensebados e o cheiro de gasolina (fazia manutenção do seu Fiat Uno já bem sambadinho aos sábados pela manhã). 52 sábados por ano durante aproximadamente 10 minutos, incluindo os rituais todos, 780 sábados em 15 anos. Horas, de pé! Ele pensava que iria humilhar Ivan com essa atitude que se queria cerimoniosa e fria. Mas o fato é que Ivan percebia uma faísca de maldade cortante no olhar de uns olhos verdes feios, de sapo, e no beiço caído. E o Sr. Clayton podia ser encantador. Sabia-o Ivan, que já o encontrara com humor benigno de homem de bem – isto ele era: um homem de bem.

 

“— O senhor precisa entender, Sr. Ivan, que não trabalhamos com previsões, mas com provisões. A situação do condomínio é preocupante.”

 

Nada exclamativo, tudo dito com desídia. Entretanto, Ivan gostava dele. Havia algo de comovente no Sr. Clayton. Talvez o seu desejo de ser correto em tudo.

 

O síndico rolava na boca aquilo que ele considerava um achado verbal. Isto fazia Ivan pensar ─ dizia-me ele ─ nos versos de Camões:

 

As armas e os barões assinalados

Que da Ocidental praia Lusitana,

Por mares nunca dantes navegados

Passaram ainda além da Taprobana,

Em perigos e guerras esforçados

Mais do que prometia a força humana

E entre gente remota edificaram

Novo Reino, que tanto sublimaram.

 

Era semelhante? Ivan gargalhava:

 

“─ Ora, meu amigo, tudo é palavra! O que vale mesmo será a convicção de quem a diz. Ou o modo como se a escreve. O resto é com quem ouve. Ou lê. Veja:

 

As taxas, provisões necessitadas

Que do saco sem fundo dessa grama,

Por previsões nem mesmo entressonhadas

Passaram ainda além de sua poupança,

Em perigos e guerras esforçados

Mais do que prometia a farsa humana

E entre gente esquisita edificaram

Um condomínio, que tanto sublimaram”.

 

A bem da verdade, o Ivan, culto que fosse, era meio doidivanas, mas nada mais direi que deponha contra sua saudosa memória. Amigo meu não tem defeito. Muito menos amigo morto, que passa ao Olimpo, pura veneração.

 

Mas foi assim que Sr Clayton ia mesmo em busca da taxa condominial – expressão que, particularmente, detesto. Detesto, aliás, qualquer taxa. Detesto tanto, que nem tomo táxi, pela semelhança da primeira sílaba com o morfema de base tax. Apesar do quê, não se pode confundir /ch/ com /ks/. Mas isto é a verdade da língua, seus sons. Todo o resto é arbitrariedade. Com a linguagem é assim. Sou lingüista, diga-se logo, para evitar mal-entendidos ou mal-entendimentos.

 

Ivan sistematicamente atrasava o pagamento de quase todas as suas contas, porém as pagava. Condomínio incluído. Não atrasava porque queria. Havia uma pessoa muito doente em sua família e com ela gastava quase todo o seu capital líquido, uma sobrinha querida e órfã, que vivia numa clínica particular em São Paulo, há anos. Além do mais, as despesas de viagem, pois ia visitá-la com freqüência, sentia a sua falta e queria dar-lhe todo o seu carinho e atenção. Era como uma filha mesmo. Ivan tinha, além disso, dois filhos casados, todos dois fora, realizando seu Ph. D. na Universidade de Nova York com bolsa da Fullbright. Claro que havia, a despeito da bolsa, grandes despesas. E havia a pensão de sua ex-mulher, que padecia, pobrezinha, de transtornos do humor, compradora compulsiva na euforia. Tragicamente paralisada na depressão, necessitava de medicação caríssima. Em qualquer dos pólos, Ivan despendia altas quantias, que a pensão não poderia dar conta. Ela nascera e fizera seus estudos no Espírito Santo, a família toda lá sediada. E Ivan não os incomodava em nada. Fora assim desde sempre: tudo nos seus ombros, mesmo que doessem.

 

Foi então que o Sr. Clayton, o síndico, resolveu convocar uma reunião de condomínio para que se deliberasse sobre o ônus fixo de um fundo de reserva. Isto é muito conveniente, acho eu. O Ivan também achava. O Sr. Clayton comunicou a reunião extraordinária verbalmente.

 

Os condôminos incluíam uma mulher judia, cosmopolita, sensível, a Dona Sarah Beckmann; um Secretário de Estado, depois Ministro, o Dr. Ranulfo Taurino (um dos 12 obás de Xangô na casa de mãe Stella de Oxossi, yialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá); Marcus Vinícius Abrantes, que só aparecia nos fins-de-semana, para receber seus amigos, namoradas e ficantes; uma criaturinha amarga com ares de mulher exemplar, mas bem maluca, a Hannah Serena, que de serena não tinha nada ─ embora vivesse dizendo “eu estou sempre bem, Ivan, eu estou sempre bem”. Fora casada com um diretor de empresa financeira, o Marco Gordinho. A sub-síndica era a mulher do Clayton, D. Arlete, uma portuguesa bem labreguinha e mal-educada, bonitinha, engraçadinha, neurotiquinha: Acordava todos, nos finais de semana, com suas ordens ao zelador sobre a limpeza e os jardins. Os filhos de Clayton, Gláucia e Claytonzinho, eram legais ─ a menina meio esquisita, do tipo clean, o menino um encanto (mas assim que entrou no mundo empresarial, já adulto, enlouqueceu quando começou a ganhar poder. Fazia ameaças por telefone, um horror). O nome do prédio era Jardim Atlântico, situado num desses excepcionais morros da Bahia, capital. De um lado o Oceano Atlântico, com a imagem do nosso Cristo daqui, o do Sermão da Montanha. Do outro, o U da Bahia de Todos os Santos. Um escândalo de beleza. Por isso Ivan ali permanecia.

 

Em conversa com a encantadora D. Sarah, sábia, fina, querida, Ivan desabafou:

 

“─ D, Sarah, não me importo com fofocas do “nó duro” deste prédio a meu respeito, sei que existem. Mas os atos arbitrários da corja terrorista, tirando Ranulfo, Marcus Vinícius e Dulcinéia” (esta era a mulher do Ranulfo, em segundas núpcias, uma graça de pessoa), “é insuportável. É pura mediocridade, falta de respeito, de educação doméstica mesmo, tudo banhado a paranóia claytoniana”.

 

Ela respondeu calmamente:

 

“─ Tenha paciência com eles, Ivan. Não são más pessoas. Uns e outros são traumatizados por perdas graves, das quais nunca se refizeram, perdas materiais, inclusive, como Clayton.”

 

“─ Não se justifica, D. Sarah, todos nós sofremos perdas, a senhora então! E não ficamos amargos nem aborrecendo os outros.”

 

“─ Procure colocar-se no lugar deles, meu filho: você é bonito, bem nascido, culto, refinado ─ cabe a você perdoar, sem jogar a primeira pedra, como vocês mesmos, católicos, dizem.”

 

Ivan não agüentava mais a pressão. O Sr. Clayton deu de ir à casa de Ivan diariamente, com choramingos, o gogó instável e tremendo, os olhos vermelhos, excessivamente irrigados pela soturna irritação contra Ivan que o acometia então. Ivan quieto, olhar distante, lacônico, “não se preocupe, Sr. Clayton, afinal sempre pago”. Um dia o síndico disse que, se pudesse, pegava uma metralhadora e matava todos os negros da Bahia! Estes mesmos negros salvaram o edifício de ser incendiado por completo devido a um curto-circuito no apartamento da Hannah, o purgante louco. E Arlete? Diante de um problema normal com os filhos de Ivan quando crianças, traquinagem de menino, disse que “teve de levar Clayton para a varanda do fundo e acalmá-lo”, pois dissera que ia resolver no revólver. Isto foi em um São João, quando as crianças colocaram bombinhas numa lata e a explodiram na frente da porta de serviço de Clayton. Os dois detestavam crianças. Podavam todas as brincadeiras que estas arquitetavam com as do prédio vizinho, o Morada Ipiranga.

 

O fato é que com uma dívida já alta de condomínio, Ivan ainda teria de pagar o fundo de reserva. Decidiu levantar dinheiro no banco, com um empréstimo, para sanar a situação. Pronto, estava resolvido.

 

Foi quando resolveu tomar todas num certo sábado. O que era simples agastamento, tomou proporções cada vez maiores.

 

Na madrugada de 1º de dezembro de 1999, dia dos 15 anos de sua sobrinha, a Walkíria ─ menina de meiguice e de caráter ─ como, aliás, os seus filhos, felizes e bons, graças a Deus ─ Ivan certificou-se se D. Sarah, Marcus Vinicius, Ranulfo e Dulcinéia estavam fora (passavam fora o fim-de-semana com freqüência). Estavam.

 

Neste mesmo dia, escreveu um poema, que jogou pela janela como aviãozinho para a casa da vizinha da esquerda, Dona Maria da Assunção. Transcrevo-o abaixo.

 

Colocou uma bomba-relógio na garagem do prédio para as 3:00h e foi dormir.

 

Tenho muitas saudades do Ivan.

 

O poema:

 

OS ANJOS

 

O mal não virá sobre ti, e o flagelo não se aproximará da tua tenda, porque mandou [Deus] os seus Anjos em teu favor, que te guardem em todos os teus caminhos. Eles levar-te-ão nas suas mãos, para que o teu pé não tropece em alguma pedra”. (Sl. 90, 10-12)

 

 

 

– Serafins, Querubins, Tronos, Dominações,

Potestades, Virtudes, Principados,

Arcanjos, Anjos vinde refulgir

no antro das dores temporais!

 

– Vinde, vinde sempre e mais, assim vos quero

e anseio nesta vida humana e dolorida!

 

Estão todos aqui, cabeças coroadas,

as faces rutilantes, o hálito de lírios,

imaculado o espírito, guiando os homens,

já se alça nesse ar a minha testa em exílio.

 

 

Nosso Pai vos dotou por conhecê-Lo, amá-Lo,

servi-Lo e proclamar Suas grandezas vastas,

executar suas ordens, gerir as espécies

e qualquer indivíduo que sofre e padece.

 

Perdido o Paraíso dos haustos amenos,

dos aromas de essências, das brisas ligeiras,

sentidos em consenso, gestos de harmonia

e a visão da Nascente eternal e primeira

 

minha alma se debate entre terríveis penas

das hostes de inimigos, pesados cilícios,

espíritos celestes, com os poderes vastos,

livrai o meu espírito em horror e sacrifício!

 

Ó proteção angélica, nossa ida é chã,

sem vós não aportaremos no sol amanhã,

corpo tantalizado no esforço e na dor,

demônios nos assolam e estrondeiam o horror.

 

Vinde, hóstias de luz, banir o Inimigo

a semear na alma os esporos do medo

para os muros impuros, as masmorras cegas,

onde a memória chora pelo céu antigo.

 

 Já me vejo envolvida em vossa luz castiça,

resplandeceis quais sóis e mais que sóis brilhais

vós, santos dos conselhos, defensores bíblicos,

participais de Deus na antevisão beatífica.

 

Ó zelosos da Luz, aclarai o pretérito

para um agora pleno de frutos gozozos

ao perceber a Face, a grande Face aberta

à visão do esplendor com a qual me consolo!

 

Coros em multidão, já ouço a voz multíssona:

 

Santo, Santo, Santo é o senhor Deus dos exércitos!

 

 

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