O
SÍNDICO
(Maria
da Conceição Paranhos)
Aos
sábados, a sirene tocava às 08h45min. Ivan, sozinho no
apartamento, demorava-se. Esperava o segundo toque às 08h46min. Então
abria lentamente a porta. Após os cumprimentos e mesuras,
dizia-lhe, como sempre, há 15 anos:
“—
Desculpe, Sr. Clayton estava terminando o banho.”
Isto
não sem antes molhar bem os cabelos, despenteá-los e ir
enxugando-os enquanto falava. Em seguida, cintava mais o roupão de
banho, toalha em volta do pescoço e mãos na cintura, um charme
verdadeiramente. Ivan era um sedutor irresistível, seus belos
cabelos negros semilongos, as costeletas bem definidas,
retangulares, finas e compridas, o que fazia um contraste com
aqueles cabelos reluzentes e sutilmente desordenados, ônix líquido
e flou, glória do seu
cabeleireiro, Alain Mettoudi, um francês de Marselha, “a cidade
que começa com uma história de amor”, diz Alain até hoje,
“entre Protis e Gyptis”. Não sei como foi a história. Um dia
vou pesquisar. Mas sei que nesta história foi construída uma ponte
sobre o plácido mar de Marselha.
Ele,
o síndico, esboçava um gesto não se sabe de irritação contida,
neutralidade ou indiferença ou todas, aliadas a certo olhar de
lampejos rápidos, maléfico. Tudo veladíssimo. Era um homem
acabado. Em grande parte por não aceitar o seu próprio desígnio,
seu desígnio de dentro. Ele vivia ─ como diz meu sábio pai
─ serrando serragem. Pena. Sua falta de resignação diante da
falência de sua empresa de construção civil era amarga e
contaminava todos os seus atos, por óbvio sua vida doméstica e a
de sua vizinhança.
E
então Ivan lhe dizia:
“—
Sr. Clayton, não quer entrar um pouco?”
Com
aparente naturalidade, Ivan fazia esta pergunta. Sua corrosiva
ironia dançava nos seus olhos vivos e pensava como o síndico era
ridículo nas suas preocupações comezinhas. E aquela gestualidade
enrustida! Queria o Clayton exibir uma superioridade da qual não
dispunha nem por índole nem por história de vida.
Às
vezes o síndico dava um ou dois passos soleira adentro. Jamais se
sentara, em 15 anos, quando das suas visitas formais, olheiras, o
rosto e o cabelo ensebados e o cheiro de gasolina (fazia manutenção
do seu Fiat Uno já bem sambadinho aos sábados pela manhã). 52 sábados
por ano durante aproximadamente 10 minutos, incluindo os rituais
todos, 780 sábados em 15 anos. Horas, de pé! Ele pensava que iria
humilhar Ivan com essa atitude que se queria cerimoniosa e fria. Mas
o fato é que Ivan percebia uma faísca de maldade cortante no olhar
de uns olhos verdes feios, de sapo, e no beiço caído. E o Sr.
Clayton podia ser encantador. Sabia-o Ivan, que já o encontrara com
humor benigno de homem de bem – isto ele era: um homem de bem.
“—
O senhor precisa entender, Sr. Ivan, que não trabalhamos com previsões,
mas com provisões. A situação do condomínio é preocupante.”
Nada
exclamativo, tudo dito com desídia. Entretanto, Ivan gostava dele.
Havia algo de comovente no Sr. Clayton. Talvez o seu desejo de ser
correto em tudo.
O
síndico rolava na boca aquilo que ele considerava um achado verbal.
Isto fazia Ivan pensar ─ dizia-me ele ─ nos versos de
Camões:
As
armas e os barões assinalados
Que
da Ocidental praia Lusitana,
Por
mares nunca dantes navegados
Passaram
ainda além da Taprobana,
Em
perigos e guerras esforçados
Mais
do que prometia a força humana
E
entre gente remota edificaram
Novo
Reino, que tanto sublimaram.
Era
semelhante? Ivan gargalhava:
“─
Ora, meu amigo, tudo é palavra! O que vale mesmo será a convicção
de quem a diz. Ou o modo como se a escreve. O resto é com quem
ouve. Ou lê. Veja:
As
taxas, provisões necessitadas
Que
do saco sem fundo dessa grama,
Por
previsões nem mesmo entressonhadas
Passaram
ainda além de sua poupança,
Em
perigos e guerras esforçados
Mais
do que prometia a farsa humana
E
entre gente esquisita edificaram
Um
condomínio, que tanto sublimaram”.
A
bem da verdade, o Ivan, culto que fosse, era meio doidivanas, mas
nada mais direi que deponha contra sua saudosa memória. Amigo meu não
tem defeito. Muito menos amigo morto, que passa ao Olimpo, pura
veneração.
Mas
foi assim que Sr Clayton ia mesmo em busca da taxa condominial –
expressão que, particularmente, detesto. Detesto, aliás, qualquer
taxa. Detesto tanto, que nem tomo táxi, pela semelhança da
primeira sílaba com o morfema de base tax. Apesar do quê, não se
pode confundir /ch/ com /ks/. Mas isto é a verdade da língua, seus
sons. Todo o resto é arbitrariedade. Com a linguagem é assim. Sou
lingüista, diga-se logo, para evitar mal-entendidos ou
mal-entendimentos.
Ivan
sistematicamente atrasava o pagamento de quase todas as suas contas,
porém as pagava. Condomínio incluído. Não atrasava porque
queria. Havia uma pessoa muito doente em sua família e com ela
gastava quase todo o seu capital líquido, uma sobrinha querida e órfã,
que vivia numa clínica particular em São Paulo, há anos. Além do
mais, as despesas de viagem, pois ia visitá-la com freqüência,
sentia a sua falta e queria dar-lhe todo o seu carinho e atenção.
Era como uma filha mesmo. Ivan tinha, além disso, dois filhos
casados, todos dois fora, realizando seu Ph. D. na Universidade de
Nova York com bolsa da Fullbright. Claro que havia, a despeito da
bolsa, grandes despesas. E havia a pensão de sua ex-mulher, que
padecia, pobrezinha, de transtornos do humor, compradora compulsiva
na euforia. Tragicamente paralisada na depressão, necessitava de
medicação caríssima. Em qualquer dos pólos, Ivan despendia altas
quantias, que a pensão não poderia dar conta. Ela nascera e fizera
seus estudos no Espírito Santo, a família toda lá sediada. E Ivan
não os incomodava em nada. Fora assim desde sempre: tudo nos seus
ombros, mesmo que doessem.
Foi
então que o Sr. Clayton, o síndico, resolveu convocar uma reunião
de condomínio para que se deliberasse sobre o ônus fixo de um
fundo de reserva. Isto é muito conveniente, acho eu. O Ivan também
achava. O Sr. Clayton comunicou a reunião extraordinária
verbalmente.
Os
condôminos incluíam uma mulher judia, cosmopolita, sensível, a
Dona Sarah Beckmann; um Secretário de Estado, depois Ministro, o
Dr. Ranulfo Taurino (um dos 12 obás de Xangô na casa de mãe
Stella de Oxossi, yialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá); Marcus Vinícius
Abrantes, que só aparecia nos fins-de-semana, para receber seus
amigos, namoradas e ficantes; uma criaturinha amarga com ares de
mulher exemplar, mas bem maluca, a Hannah Serena, que de serena não
tinha nada ─ embora vivesse dizendo “eu estou sempre bem,
Ivan, eu estou sempre bem”. Fora casada com um diretor de empresa
financeira, o Marco Gordinho. A sub-síndica era a mulher do
Clayton, D. Arlete, uma portuguesa bem labreguinha e mal-educada,
bonitinha, engraçadinha, neurotiquinha: Acordava todos, nos finais
de semana, com suas ordens ao zelador sobre a limpeza e os jardins.
Os filhos de Clayton, Gláucia e Claytonzinho, eram legais ─ a
menina meio esquisita, do tipo clean, o menino um encanto (mas assim que entrou no mundo
empresarial, já adulto, enlouqueceu quando começou a ganhar poder.
Fazia ameaças por telefone, um horror). O nome do prédio era
Jardim Atlântico, situado num desses excepcionais morros da Bahia,
capital. De um lado o Oceano Atlântico, com a imagem do nosso
Cristo daqui, o do Sermão da Montanha. Do outro, o U da Bahia de
Todos os Santos. Um escândalo de beleza. Por isso Ivan ali
permanecia.
Em
conversa com a encantadora D. Sarah, sábia, fina, querida, Ivan
desabafou:
“─
D, Sarah, não me importo com fofocas do “nó duro” deste prédio
a meu respeito, sei que existem. Mas os atos arbitrários da corja
terrorista, tirando Ranulfo, Marcus Vinícius e Dulcinéia” (esta
era a mulher do Ranulfo, em segundas núpcias, uma graça de
pessoa), “é insuportável. É pura mediocridade, falta de
respeito, de educação doméstica mesmo, tudo banhado a paranóia
claytoniana”.
Ela
respondeu calmamente:
“─
Tenha paciência com eles, Ivan. Não são más pessoas. Uns e
outros são traumatizados por perdas graves, das quais nunca se
refizeram, perdas materiais, inclusive, como Clayton.”
“─
Não se justifica, D. Sarah, todos nós sofremos perdas, a senhora
então! E não ficamos amargos nem aborrecendo os outros.”
“─
Procure colocar-se no lugar deles, meu filho: você é bonito, bem
nascido, culto, refinado ─ cabe a você perdoar, sem jogar a
primeira pedra, como vocês mesmos, católicos, dizem.”
Ivan
não agüentava mais a pressão. O Sr. Clayton deu de ir à casa de
Ivan diariamente, com choramingos, o gogó instável e tremendo, os
olhos vermelhos, excessivamente irrigados pela soturna irritação
contra Ivan que o acometia então. Ivan quieto, olhar distante, lacônico,
“não se preocupe, Sr. Clayton, afinal sempre pago”. Um dia o síndico
disse que, se pudesse, pegava uma metralhadora e matava todos os
negros da Bahia! Estes mesmos negros salvaram o edifício de ser
incendiado por completo devido a um curto-circuito no apartamento da
Hannah, o purgante louco. E Arlete? Diante de um problema normal com
os filhos de Ivan quando crianças, traquinagem de menino, disse que
“teve de levar Clayton para a varanda do fundo e acalmá-lo”,
pois dissera que ia resolver no revólver. Isto foi em um São João,
quando as crianças colocaram bombinhas numa lata e a explodiram na
frente da porta de serviço de Clayton. Os dois detestavam crianças.
Podavam todas as brincadeiras que estas arquitetavam com as do prédio
vizinho, o Morada Ipiranga.
O
fato é que com uma dívida já alta de condomínio, Ivan ainda
teria de pagar o fundo de reserva. Decidiu levantar dinheiro no
banco, com um empréstimo, para sanar a situação. Pronto, estava
resolvido.
Foi
quando resolveu tomar todas num certo sábado. O que era simples
agastamento, tomou proporções cada vez maiores.
Na
madrugada de 1º de dezembro de 1999, dia dos 15 anos de sua
sobrinha, a Walkíria ─ menina de meiguice e de caráter
─ como, aliás, os seus filhos, felizes e bons, graças a Deus
─ Ivan certificou-se se D. Sarah, Marcus Vinicius, Ranulfo e
Dulcinéia estavam fora (passavam fora o fim-de-semana com freqüência).
Estavam.
Neste
mesmo dia, escreveu um poema, que jogou pela janela como aviãozinho
para a casa da vizinha da esquerda, Dona Maria da Assunção.
Transcrevo-o abaixo.
Colocou
uma bomba-relógio na garagem do prédio para as 3:00h e foi dormir.
Tenho
muitas saudades do Ivan.
O
poema:
OS
ANJOS
“O
mal não virá sobre ti, e o flagelo não se aproximará da tua
tenda, porque mandou [Deus] os seus Anjos em teu favor, que te
guardem em todos os teus caminhos. Eles levar-te-ão nas suas mãos,
para que o teu pé não tropece em alguma pedra”. (Sl. 90,
10-12)
–
Serafins, Querubins, Tronos, Dominações,
Potestades,
Virtudes, Principados,
Arcanjos,
Anjos vinde refulgir
no
antro das dores temporais!
–
Vinde, vinde sempre e mais, assim vos quero
e
anseio nesta vida humana e dolorida!
Estão
todos aqui, cabeças coroadas,
as
faces rutilantes, o hálito de lírios,
imaculado
o espírito, guiando os homens,
já
se alça nesse ar a minha testa em exílio.
Nosso
Pai vos dotou por conhecê-Lo, amá-Lo,
servi-Lo
e proclamar Suas grandezas vastas,
executar
suas ordens, gerir as espécies
e
qualquer indivíduo que sofre e padece.
Perdido
o Paraíso dos haustos amenos,
dos
aromas de essências, das brisas ligeiras,
sentidos
em consenso, gestos de harmonia
e
a visão da Nascente eternal e primeira
minha
alma se debate entre terríveis penas
das
hostes de inimigos, pesados cilícios,
espíritos
celestes, com os poderes vastos,
livrai
o meu espírito em horror e sacrifício!
Ó
proteção angélica, nossa ida é chã,
sem
vós não aportaremos no sol amanhã,
corpo
tantalizado no esforço e na dor,
demônios
nos assolam e estrondeiam o horror.
Vinde,
hóstias de luz, banir o Inimigo
a
semear na alma os esporos do medo
para
os muros impuros, as masmorras cegas,
onde
a memória chora pelo céu antigo.
Já
me vejo envolvida em vossa luz castiça,
resplandeceis
quais sóis e mais que sóis brilhais
vós,
santos dos conselhos, defensores bíblicos,
participais
de Deus na antevisão beatífica.
Ó
zelosos da Luz, aclarai o pretérito
para
um agora pleno de frutos gozozos
ao
perceber a Face, a grande Face aberta
à
visão do esplendor com a qual me consolo!
Coros
em multidão, já ouço a voz multíssona:
–
Santo, Santo, Santo é o
senhor Deus dos exércitos!
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