Home Poesia Prosa Traduções Colaborações Arquivo Contatos

Bem-vindo à homepage de Renato Suttana.

Nicolau Saião, Mariana 2 (arte digital)

 

POEMAS DE MIGUEL CARNEIRO

 

 

PERNAMBUCANAMENTE

 

Eu quero me pernambucar

andar por Olinda

para ver o Homem da Meia-Noite desfilar

caminhar pela Rua da Aurora

onde aquela morena ficou a me esperar

ir no sebo do Brandão

correr tudo que é estação

e procurar a primeira edição

de Bandeira, Carlos Pena e Jomar

 

Eu quero me pernambucar

cair na bagaceira

até o Galo da Madrugada passar

procurar pelos meus parentes

os Carneiros Leão que vivem por lá

 

Pedir a Lia

que me cante uma ciranda de Baracho

e uma outra da Ilha de Itamaracá

vou conhecer o filho de Samico

dar um pulo em Bezerros

para ver J. Borges me desenhar

 

Eu quero é me pernambucar

quero revisitar Miguel Arraes de Alencar

que governou a contragosto dos militar

vou passear por Cabrobó, Tacaratu, Orocó,

Carnaubeira, Penha, Itacuruba,

Afogados de Ingazeira, Exu, Inajá

vou até Limoeiro, Lagoa do Ouro,

Santa Maria do Cambucá

 

Vou pedir a Luiz

para me cantar um baião,

aquele de José Dantas

e viisitar Tamandaré, Cacimba do Padre,

Morro do Pico, Coroa do Avião,

vou zanzar pela Zona da Mata,

pelo o Agreste e pelo Sertão

 

Quero reler Avalovara,

vou mudar a minha cara

quero dançar com os índios Kapinawá,

Pankararu, Xucuru, Truxá

Quero viver em Pernambuco

Quero me pernambucar

 

Recordar Gregório Bezerra

rumar pra Serrita

e beijar Dom Hélder

para eu poder me humanizar

Quero viver em Pernambuco

Quero, quero me pernambucar

 

 

 

Folha Corrida

Deus criou o mundo em sete dias
e descansou no domingo
enfiando o pé na jaca
Ninguém é de ferro!
De curvas nasceu o homem
da costela amiga de Eva
minha irmã
segundo dizem
que peregrinava sozinha
pelo paraíso sem um Adão
Sou um torto
chamam-me até de malandrão
Sou um torto
torto por convicção
Se certo fosse
enfartado já estaria
em meio a tanta esculhambação
Preferi ser torto
vagabundo por profissão
Faço da literatura
minha tábua de salvação
Não me botem peia
pois não carrego maldade em meu coração
Não costumo ir a vossa porta
esmolar um naco de pão
Deixe-me com minhas migalhas
Eu nunca suportei patrão
Se o meu verso te incomoda
não leia
vá louvar os medalhão!
Eu sou torto, vagabundo e malandrão
Porém, nunca fui
e meu pai me ensinou
a jamais ser um ladrão
Sou um poeta

de longínquo sertão

 

 

 

TRIBUTO A UMA DIVA DO TEATRO BAIANO

 

Para Nilda,

com carinho.

 

Quando Martin Gonçalves, a chamado de Edgar Santos,
fundou a Escola de Teatro, Nilda Spencer estava lá,
contracenando com Maria Fernanda e Sérgio Cardoso.
Nilda, mãos delicadas, na moldura da ternura,
chuva fina que molha nossos telhados em lembrança,
gestos nobres num Palco iluminado.
Platéias, de pé, ovacionando-a.
Menino, com quatorze anos,
freqüentei as suas aulas de Dicção,
na tarde colorida daquele inesquecível verão.
Minha voz foi ficando sem cisco,
sem gôgo, sem atropelação.
Nilda, na memória,
doce, educada,
presente no território de meu coração.
Revejo, então, Adelino na Portaria,
Josito fumando na cabine de luz.
Corro os olhos,
Tia Lilia está moldando uma vestimenta,
Tia Cota na cantina envolta de flores de papel crepom amarelo.
Vejo minha Tia Cleusa,
decidida passando banho de Água de Alevante,
Procuro por João,
bigode aço,
me livrando dos fuxicos,
da intromissão.
Vejo os dois leões,
Nilda, Nilda naquela tarde...
Sempre cheirosa,
irradiando alegria,
pura emoção.

 

 

 

HÁ UM CORPO EM CHAMAS DE UM HOMEM NO PANTANAL MATOGROSSENSE

 

Em memória de Francisco Anselmo Gomes de Barros, “Francelmo”

 

Domingo,

dia que Deus descansou depois da labuta

após criar o mundo:

de céus, planetas, terra, rios, mares,

bichos, plantas e o homem sobre a face da terra.

Em Campo Grande,

Iracema Sampaio

chora.

Dom Pedro Casaldáliga

ora.

Manuel de Barros

procura sentidos nesse gesto.

Almir Sáter e João Bá

se perguntam

porque o Tuiuiú está em silêncio?

Na Bahia,

meu avô, Augusto Asclepíades, diria:

“O mundo termina em fogo.”

Mas, não durmo,

e minha mão arde,

nessa lembrança de fogaréu.

Por que, heim, Anselmo,

foste tão glorioso na tua própria coivara?

Eu, sei,

Sabino Alves Sampaio

está perplexo diante das labaredas.

Há em mim

essa vontade incomensurável

de te enviar para te salvar:

caminhões de “Paraqueimol”.

Os peixes ainda conversam,

falando de tua história.

São tambaquis, piranhas

na mansidão dos igarapés,

entre garças e jacarés.

O Bugre te louva.

E até penso

que o povo de Mato Grosso,

de Tocantins,

do Pará,

fazem de tua chama,

luzeiro de um novo tempo

que se descortinará.

Nós,

ficamos por aqui,

doidos de dores.

Enquanto

Tu queimas numa praça de Campo Grande,

eu peço ao Cão,

que pare com toda essa devastação.

 

14/11/2005

 

 

 

BALANCETE

 

Sou um homem carregado de tragédias,

que enxerga no tempo sinais anunciadores.

Numa época em que Deus

se acha ausente na maioria dos corações.

Vivi dolorosas quadras,

em que dizer a Verdade,

incomodava muita gente.

E, no entanto,

sobrevivi.

Em meu peito sempre pulsou:

Fraternidade, justiça e amor.

Se algum dia

falarem de mim,

digam apenas:

"Foi um poeta que por aqui passou".

 

 

 

PSALMO 666

 

Pássaros de fogo

acossados neste seu torpor

com o fio da ira

encaibrando os cérebros

são daqueles que vomitam nos bares

e beijam a parceira

com o dernier bafo colonizador

sonham com currais de fêmeas

de vulvas abertas

na espera do mergulho abrasador

 

Pássaros de fogo

estonteados e submissos

de olhar de cachorro arruinado

com seus sentimentos de livros

catalogados e despersonificados

pela grande selva babilônica

galgam patamares escrotos

numa época em que as classes

são binárias e revogáveis

e se digladiam:

ricos e fodidos

 

Pássaros de fogo

de hálito mênstruo

é o frescor dessa geração insana

e sem rumo.

 

Retorna ao topo

Outros escritos de Miguel Carneiro